CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
Rogério Skylab avatar

Rogério Skylab

Músico e compositor

41 artigos

blog

Dasein e democracia

Uma passagem do estudo de Nancy nos leva a lembrar de Henry James, mais especificamente o aspecto das impressões

Heidegger (Foto: Heidegger)
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Em “Ser-com e Democracia”, Nancy expõe a sua ontologia dentro do conceito de Dasein e sublinha o regime de imanência do sentido na democracia, diferentemente de como é entendido enquanto poder (soberania de um povo) ou enquanto administração (gerenciamento) da vida comum.

No primeiro tópico, Nancy vai focalizar duas considerações feitas a respeito da partícula “com”, uma de fundo estrutural e outra, crítica. No primeiro caso, o “com” toma o aspecto de contingência, isto é, fora do campo do saber: “expressaria apenas a contiguidade espacial ou temporal; e essa contiguidade, segundo as perspectivas dos sujeitos, seria insignificante se não incluída sob uma instância superior como “o povo”, “o amor”. Para essa perspectiva estrutural, o ordenamento é feito sempre seguindo uma lógica: ou da identidade ou do vínculo de um com o outro – vínculo que pode advir de uma relação explícita e inteligível (comércio, contrato, paixão) ou de uma significação precisa de co-presença (vínculo social, político ou religioso).

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

A outra consideração, de fundo crítico, é que a contiguidade é desvalorizada caso não remeta a um encadeamento de razões e caso não remeta a uma unidade, seja de essência, tempo ou espaço. 

Mas em Heidegger, a partícula “com” é dotada de importância: é conceito; expressa a heterogeneidade, a exterioridade e a aproximação dos sujeitos ou objetos; a co-presença é desprovida de significação; e a importância e valorização da partícula “com” vem justamente do fato de ser insignificante.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

II- Uma passagem do estudo de Nancy nos leva a lembrar de Henry James, mais especificamente o aspecto das impressões: esboço de relações, percepções mínimas, relações pré-conscientes, uma certa disposição que presidiria uma relação efetiva. Numa relação afetiva forte está implícito um certo acordo: o escutar, o entender, daí a importância das palavras. Mas esquecemos que as palavras, isto é, as significações e os afetos fortes, aqueles aos quais atribuímos significações ou valores, somente são possíveis sob o fundo dos recursos mais ordinários e secretos do afeto em geral – e tais recursos se manifestam pela simples justaposição. Essa é a importância da natureza morta enquanto pintura: ausência de homens e animais; nenhum drama; o “com” puro ligando elementos diferentes e nós, que estamos a olhar a pintura. Às vezes, um elemento só, os aspargos de Manet, remetem a uma ação mínima – alguém os comerá depois. Mas, por enquanto, são puros valores pictóricos (formas e cores) propondo uma simples presença – estão ali no quadro, próximos de nós, manifestando um “com” despojado, elemental. É capaz de produzir significações: por exemplo, a ideia de comê-los. Mas a mera justaposição já é potência de fazer sentido, é abertura de sentido: para mim, em sendo pintor, aqueles aspargos de Manet valeriam como cor, mas para uma outra pessoa, pode valer para lembrar-lhe que nunca comeu aspargos na vida – e assim ao infinito. A mera presença abriria então vários sentidos: vale uma coisa para um sujeito e vale outra para um outro. Essa troca entre os entes, no caso, o quadro de Manet e o espectador, poderíamos exemplificar como uma primeira justaposição. Porque haveria uma segunda espécie de justaposição, que não seria uma troca entre os entes, mas entre os signos:  esses aspargos de Manet toma todas as formas, todos os aspectos e todas as imagens que têm sido trocadas entre todos os entes – é uma recomposição de entes dados (os aspargos reais diante de Manet) em entes produzidos (os aspargos pintados, transformados em quadro). Essa transformação é que leva Heidegger a dizer que somente o homem é formador do mundo, o refazendo e o recriando. O primeiro “com” estaria ligado à natureza e o segundo à técnica. Fazer a gente empurrar moinhos e barcos, não é uma relação entre entes: é usar o vento (ente dado) de uma forma que lhe interesse, produzindo algo novo (ente produzido). Assim como o aspargo natural não é o aspargo quadro, o vento que balança as folhas não é o vento que empurra os barcos: essa deformação é a técnica, um segundo “com”, uma segunda natureza.

III- Duas consequências ou implicações do “com”, que Nancy chamará de suas coordenadas essenciais são: primeiramente, o caráter de proximidade e distância – o réptil é próximo da pedra porque esta o esquenta; e, ao mesmo tempo, é distante dela porque não vive de sua mineralidade (de qualquer maneira, observamos que essa proximidade-distância não assumem uma mera espacialidade); a outra coordenada é a multiplicidade – uma coisa única não poderia estar com outra no mundo e nem mesmo fazer um mundo (Hegel dizia que não há coisa única porque o uno é sua negação).

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

A questão da proximidade não implicar uma mera espacialidade ou apenas uma justaposição, vem do valor afetivo aí implicado, abrindo uma coexistência que compromete uma partilha a partir de si mesmo, uma divisão regulada pela comunicação. Não é mais uma co-presença em exterioridade, que, se assim o fosse, partilhar uma comida seria apenas reparti-la em partes iguais. Partilhá-la, sob esse aspecto interior, é trocar algo de apaziguamento da fome e do prazer dos sabores (não é mais o primeiro “com” da natureza, mas o segundo, da troca de signos). E o que o sentido do ser põe em jogo, segundo Heidegger, é essa perspectiva existencial e não apenas categorial como um valor posicional ou topográfico. A compreensão do sentido do ser passa pela compreensão existencial do “com” – o sentido do ser é posto em jogo pela coexistência, que é uma qualidade constitutiva e originária do Ser. Enquanto o humanismo pressupõe uma essência humana, desvalorizando o “com”, Heidegger, através do conceito de “dasein”, vai considerar a totalidade dos entes (o sentido do ser não pode limitar-se ao sentido do existir humano, mas é o fato de ser de um ente, qualquer que este seja – antes de ser uma qualidade ou propriedade do que é, é antes o fato de ser de um ente, ser-com ou a fatualidade do “com”). Essa anterioridade, inclusive, põe por terra o conceito de receptáculo, tão presente no senso comum: o receptáculo ou espaço comum do ser-com, preexistindo à posição dos entes. O que o dasein indica é que o espaço comum nasce dessa posição, está compreendido como justaposição e disposição: se posicionar é situacional em relação aos outros e é o ato de se colocar ou de desaparecer (o absurdo da coisa única é que não pode se colocar sem desaparecer imediatamente). 

São justamente essas as duas coordenadas essenciais do “com”: justaposição (coexistência) e disposição (espaçamento enquanto ação de se colocar ou de desaparecer).

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

IV- O conceito de democracia para Nancy, poder do povo, poder de todos enquanto estão juntos, poder de uns com os outros, tem, no entanto, um elemento diferencial que será sublinhado: a disposição da justaposição. Não é suficiente a justaposição porque esta pode ser obtida através da autoridade de um princípio externo – enfim, um poder exterior que aglutine sob coação as forças dispersas e divergentes de uma massa fragmentada por múltiplos lugares (nesse caso, o “com” tem apenas a função de igualdade imposta). A democracia, no sentido pleno da palavra, é quando a justaposição, através do “com”, seja partilha de sentido, o que acaba levando à disposição, isto é, a nenhuma hierarquia ou subordinação (a disposição é consequência da partilha de sentido, quando o “com” deixa de ser um elemento de igualdade e passa a ser um condutor de sentido). A transcendência aqui não está num ente superior e exterior, próprio da Teocracia, mas no fato de que o sentido se produz no movimento de uma transcendência em plena imanência (o ato infinito no finito), um passo mais além como simples abertura do aqui e agora – abertura infinita.

Quando se pensa na Arte e nas formas, ou na cidade democrática e nas formas inéditas, ou mesmo na disposição (espaçamento) e na justaposição (proximidade), ou no Ser-com e nos seres, estamos pensando no caráter universal e multiversal da imanência do sentido. O sentido como “povo” ou democracia tem a seu cargo a manifestação de um sentido geral e a manifestação de uma multiplicidade de sentidos de diversos regimes e escalas. Entende-se porque o espaço infinito não se determina por qualquer figura ou conceito (estamos aqui no sentido geral que não admite nenhuma subordinação a qualquer figura). Sob esse aspecto, o Homem, apresentando a relação linguagem como a relação das relações, é o sentido geral do povo em seu caráter mutiversal; A relação homem-povo adviria dessa relação “geral e múltiplo”. A mesma relação entre o segundo “com” e o primeiro.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

V- Retomando as duas coordenadas essenciais do “com” (multiplicidade e coexistência), o povo responde à exigência de dar ao sentido uma atmosfera de formação e circulação, através dos registros de sentido e do registro político, respectivamente. No que tange à formação de sentido, ele será múltiplo e singular segundo as várias dimensões da vida – é através dessa multiplicidade de recortes e disposições, que o sentido tem lugar. Mas no que tange à sua circulação (comunicação), caberá aos poderes (não há relação sem exercício de poder) uma das duas posturas: a de cunho democrático fornece a energia para a propulsão de envios de sentido – para tanto, a política deve proceder de um pensamento rigoroso do “com” em sua infinitude (está no “com” as condições de abertura de sentido); já a postura anti-democrática é quando, ao invés de apenas dar condições para a circulação do sentido, o poder toma a figura do sentido. Dentro, portanto, de uma perspectiva democrática, o registro político estaria inserido apenas na circulação do sentido, dando condições de abertura ao outro (justaposição). Disposição (multiplicidade-singularidade) e justaposição (comunicação) seriam a atmosfera do sentido, mas o “com”, ao qual está restrito o registro político numa democracia, se desdobra numa ontologia (antropológica ou metafísica). Essa é a relação entre democracia e ontologia-antropologia: o ethos democrático está fincado em escolhas profundas de fundo metafísico, onde o que está em jogo não são os bens trocáveis – é sob esse fundo de singularidade-inequivalência do dasein (Ser-com) que a democracia tem seu sentido.

Assista o programa Desentrevista: 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO


 

 

 

 

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Carregando os comentários...
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Cortes 247

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO