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Taciano Valério

Professor UFPE/Caruaru

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Essa gente que somos nós

(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
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Em tempos de genocídio e de mortandades atrozes, somos tomados pela necessidade de questionarmos nossa existência no mundo através da não existência do Outro. Há pessoas próximas que morreram nesta pandemia e outras que estão morrendo. Na linguagem popular chamamos de curso natural da vida, algo inapreensível como representação para muita gente.

Esse “curso natural da vida” nos ajuda a banalizar e torcer o pescoço para a morte dos corpos que não encontram legitimação em nossa sociedade - ou “que não importam”- corpos que Judith Butler denomina de abjetos por serem “estranhos”, e sendo assim considerados porque conspiramos contra eles. Tais corpos são sensíveis e feitos de carne e osso, obviamente, mas que pesam porque são diferentes daquilo que em dado momento nos incomoda por serem singulares ou intangíveis.

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No entanto, o que nos incomoda está sempre ao nosso lado e não cansamos em apontar o dedo ao nosso vizinho nomeando, através de maneirismos e falas do nosso vocabulário, como “essa gente”,  “essa gente do nordeste”, “essa gente do interior”, “ essa gente da favela”, “essa gente baixa”, “essa gente gay”, “essa gente do movimento afro”, “ essa gente do sindicato”, “ essa gente do mato” “ essa gente de cor” , “ essa gente das ciências humanas”, “essa gente artista”, “ essa gente do MST”, “ essa gente do Brasil 247”, “essa gente da esquerda”, “essa gente do SUS”, “ essa gente cotista”, “ essa gente feminista”...Todo mundo tem pelo menos um “Essa gente” para chamar de seu enquanto lugar de exclusão.

O lugar em que dizemos “Essa gente” enquanto fala e a sua reprodução incide nas práticas discursivas e heranças atávicas, cuja procedência depõe contra nosso suposto domínio e saber civilizatório. Inumeráveis gentes que ao serem pronunciadas inviabilizam as suas vozes como potência naquilo que elas são: uma minoria enquanto maioria silenciada.

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Paralelo a “Essa gente” tem-se uma Outra Gente: “gente que produz”, “gente da elite”, “gente da metrópole" “gente do agro”, "gente que pode”, “gente branca”, “gente normal”, “gente da globo", "gente de deus”, “gente do sul”, “gente que faz e acontece”, “gente da direita”, “gente de nome”, “gente das finanças", “gente da alta”, “gente que sabe comer”, “ gente de sangue”, “ gente profissional”, “gente que manda”, “ gente fina e elegante”. Para essa Outra gente dá-se o nome de gente do poder que domina e mata. Para os primeiros, gente abjeta, gente que incomoda, gente que perturba, gente que tem também poder e saber, mas não usa em multidão.

Diante de tanta gente há cada um de nós num jogo dançante e escorregadio. As mortes acontecem quando existe uma não nomeação de uma gente por alguém que oprime e normatiza o seu poder de classificar e matar. Quando criança escutamos a expressão “aquele menino escurinho”, “aquela bichinha”, “aquele matuto”, “aquele crioulo”. Aceitamos...matamos. “A palavra mata a coisa”, disse Lacan. Um Lacan tomado aqui de forma selvagem sem os cuidados dos “S” e as suas articulações das cadeias significantes, mas com a fervura daquilo que está nos matando faz algum tempo: a nossa língua.

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A língua nos mata quando não identificamos as suas excrescências com vestígios colonizadores que reproduzimos. Então, no afã de cortarmos a língua do outro, cortamos nossa própria língua.  Mesmo entre nossa gente excluímos e matamos gente da gente. Cancelamos, tornamos fragilizados quando imprimimos o discurso de legitimação do ódio ao dizer que: “eu sou melhor do que tu”. Assim, como exemplo: somos negras, feministas, militantes de esquerda, mas sou melhor do que você porque sou europeia e você uma latino-americana. Ou seja, usamos a lógica de pertencimento, lugar de fala, para também excluir o outro de mim de forma sutil.

A filósofa Judith Butler nos alerta sobre esses espaços em que no seio de quem está numa luta em conjunto há os rescaldos para os semelhantes se desassemelharem-se entre si. A luta desvia-se de fora para dentro onde a nossa força contra os opressores se transforma em ódio entre nós e também para conosco. Logo, na condição de sermos oprimidos pelo opressor que mora lá fora (outra gente) passamos a reproduzi-lo entre “Essa gente” (nossa gente) imprimindo a opressão entre nós e daí o que é realidade passa a ser ficção porque desconfiamos até mesmo de quem fala a nossa língua.

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Talvez isso explique - um pouco - nossa dificuldade em juntarmos a esquerda em multidão.  Há sempre um grupo criando um manual diante disso ou daquilo para julgar o outro de si mesmo. Nesse manual há variáveis que prolongam muito mais o distanciamento do que a aproximação, construindo um outro espaço de exclusão para nossa própria gente/Essa gente.

O que é mais comum no momento é andarmos sozinhos, sem multidão numa condição de desalento e de um diálogo improdutivo. Tal fragilidade sentimos desde a queda de Dilma, quando ficamos desnorteados diante dos retrocessos, sucessão de golpes e da escolha insana para um insano ocupar a cadeira presidencial número zero. Daí vimos que “essa gente da esquerda, do interior, do Nordeste, do mato, essa gente/nós… era realmente uma pedra no meio do caminho de gente da paulista, capital, do dinheiro”.  Foram escancaradas as verdades tropicais/tupiniquins pelo representante dos 57 milhões de votos: mata-se primeiro “essa gente” e o que se faz com o cadáver é assunto estatístico e de CPFs cancelados.

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Na pandemia a morte veio a galope. Atingiu inicialmente essa gente que viaja de avião, depois gente que anda de ônibus, gente que anda a pé, gente velha, gente nova, gente da gente. Hoje, depois que naturalizamos a morte de centenas de milhares de pessoas, continuamos a dizer que morrer é simplesmente o curso natural da vida. Há mortes que poderiam ter sido evitadas e outras que seriam inevitáveis, pois fazem parte do imponderável.

A outra gente quer continuar tornando “Essa gente” inacessível sacralizando a tragédia como ordem natural das coisas e destino de Deus. Deus, hoje em dia, é a metáfora da classe hegemônica branca, eurocêntrica, heteronormativa. Com esse Deus no coração eu me torno a “Outra gente” e deixo “Essa gente” no meio do caminho. Um Deus finanças onde seu tempo é dinheiro às custas da carnificina.

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Como podemos buscar no seio de tantos equívocos e pautas identitárias um espaço de diálogo produtivo com a gente/essa gente?

Talvez os filósofos Negri e Hardt nos apontem algum caminho: tornar-se nem povo e nem massa, mas multidão. Para eles, o conceito de povo remete a uma falsa unidade sendo visto pelas instâncias dominadoras como algo submetido, sujeição ao poder. Já a massa é vista como um corpo de gente irracional, perigosa pela sua quantificação e paixão inerte. Ser multidão não se constitui nem massa, nem povo, mas uma reunião de pessoas diferentes que se constituem únicas em suas singularidades e pluralidades. Assim, diante de Negri e Hardt, quando o europeu olha para o latino americano como povo ou massa ele reproduz, ainda, a ideia do dominador mesmo que sejam semelhantes às suas lutas.  Assim como alguém da capital olha alguém do interior. No entanto, ao se verem em multidão as diferenças são movidas para o diálogo no querer saber do outro diante daquilo que podem usar em nome da multidão. Trata-se de Um Saber Usar para Um Saber Existir nos domínios da Multidão.

A multidão é composta de inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade ou identidade única – diferentes culturas, raças, étnicas, gêneros e orientações sexuais; diferentes formas de trabalho; diferentes maneiras de viver; diferentes visões de mundo; e diferentes desejos. A multidão é uma multiplicidade de todas essas diferenças singulares (HARDT & NEGRI, 2005, p.12).

Sigamos no sofrimento e na dor, como fiéis escudeiros ao Deus de Malafaia e do Mercado, ou reagimos a nós mesmos caminhando cada um com as suas singularidades e contradições, mas numa só multidão em rebelião contra o neofascismo em moda que mata Essa gente/nossa gente…

Referências

NEGRI, Antonio; HARDT, Michael Multidão: guerra e democracia na era do império. Rio de Janeiro: Record, 2005.

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