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Paulo Moreira Leite

Colunista e comentarista na TV 247

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Golpe em câmera lenta é a onda do século XXI

"Os golpes de Estado em estilo clássico, com tanques nas ruas, deixaram de integrar o roteiro das iniciativas anti-democráticas", observa Paulo Moreira Leite

(Foto: Reprodução)

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1 - Como entender a conexão que aproxima o golpe contra Dilma e a impunidade que mantém Jair Bolsonaro fora da cadeia

Por razões que se pretende debater nos parágrafos seguintes, há uma velha novidade na cena política deste século XXI.

Todos já percebemos que os golpes de Estado em estilo clássico, com tanques nas ruas, cenas de violência explícita, prisões e mesmo execuções de lideranças perseguidas pela nova ordem deixaram de integrar o roteiro obrigatório das iniciativas anti-democráticas de nosso tempo.

Ainda que a memória política permaneça ilustrada pelo golpe de 31 de março 64 no Brasil, a violenta deposição de Salvador Allende no Chile, em 1973, os golpes de 1930, 1943, 1955, 1962 e 1976 na Argentina, nem sempre as coisas se passam dessa forma, como se vê pela disputa eleitoral que concentra olhares e nervos de 2024 - a eleição presidencial norte-americana.

Como observa o colunista Mark Danner, há meses o planeta acompanha a campanha presidencial de 2024, na qual Donald Trump se mobiliza para levar em frente um projeto de "golpe em câmera lenta, que acompanha sua carreira desde o início, quando se mostrou capaz de deslegitimar o sistema político para quase metade da população". (The New York Review of Books, 5/10/2023).

Para Danner, qualquer que venha a ser o destino de Trump, "na Casa Branca ou numa cela de penitenciária, a destruição da confiança do país em suas instituições irá permanecer como a herança tóxica do trumpismo".

Não se trata de um caso isolado, mas a demonstração clara de que os projetos de desmanche institucional também corroem as instituições instaladas no centro do mundo capitalista - e não apenas nas periferias do sistema. Assiste-se a um trabalho de sabotagem interna, possibilitando que as instituições políticas sejam paulatinamente esvaziadas de sua energia democrática e de sua capacidade de responder às necessidades da maioria da população.

No mesmo processo, forças em atividade na máquina do Estado dissolvem as referências mais elementares do Estado Democrático de Direito, para transformar as instituições num braço automaticamente alinhado a interesses conservadores, com auxílio cada vez mais visível de um Ministério Público ativo e atuante na mesma direção.

Conceito cada vez mais presente nas publicações que são referência internacional, o assunto tem relevância óbvia na América do Sul, essa região na qual, com ou sem câmera lenta, os golpes de Estado são uma realidade dramática e ameaçadora desde o nascimento da República.

Em seu último livro publicado, o professor Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019), um dos mais relevantes intérpretes do sistema político brasileiro, registrou o fenômeno.

Em "A democracia impedida -- o Brasil no século XXI”, publicado em 2017, no ano seguinte à deposição de Dilma Rousseff, o professor não fala de "câmera lenta", expressão que ainda não fora padronizada entre estudiosos antenados. Emprega um termo aparentado, "golpe constitucional" ou "parlamentar", para denunciar a deposição de uma governante eleita, evitando banalizar acontecimentos de gravidade indiscutível, assinalando também diferenças importantes entre os dois processos.

"Ao contrário de golpes militares - que, se bem sucedidos, procuram desde logo consolidar as condições que os protegeram, desalojando os oficiais opositores de posições de poder e introduzindo pela força, se necessário, as modificações propícias à estabilização - os golpes parlamentares em democracias representativas dispensam a liderança e a violência institucional escandalosa, armada ou jurídica", escreve Wanderley Guilherme.

2 - "Não havia uma ditadura declarada, afinal de contas o presidente havia assumindo legalmente o país", diz historiador sobre golpe no Uruguai

Um dos marcos deste processo é mais antigo do que se pensa. Trata-se do regime nascido no Uruguai durante o governo de Jorge Pacheco Areco, vice que assumiu a presidência após a morte repentina do titular, em dezembro de 1967.

Entre dois vizinhos maiores pela geografia, pela população e pelo PIB, que já se encaminhavam para a formação de ditaduras de longa duração, instituídas pelo velho aparato de guerra apontado contra um povo transformado em inimigo doméstico, o governo Areco não demorou a mostrar seus planos de construir uma ditadura num processo lento e gradual.

"As medidas adotadas por Areco assemelhavam-se às de um país ditatorial," descreve o historiador José Rodrigo de Araújo Silva, no artigo “Golpe em Câmera Lenta: Estado de Sítio e o Cinema Político de Costa Gravas”, onde se vale de uma obra-prima do cinema político mundial - o filme “Estado de Sítio” -- para debater uma novidade da Ciência Política.

"Não havia uma ditadura declarada, afinal de contas o presidente havia assumido legalmente o país. Contudo, os meios utilizados para manter a ordem foram próximos aos meios que países como o Brasil utilizaram para legitimar o estado de exceção", acrescenta o professor, referindo-se ao período Médici da ditadura militar.

Num instrumento incompatível com qualquer ordenamento democrático, o governo uruguaio decretou as Medidas Prontas de Seguridad, equivalentes locais dos Atos Institucionais da ditadura brasileira. Lá como aqui, eram instrumentos de múltiplas utilidades, fosse para determinar um quadro de arrocho salarial ou para instituir um ambiente de feroz repressão sobre o movimento operário e sobre a luta estudantil.

"Com essas e outras medidas, o estado de terror passou a fazer parte do cotidiano da população," explica Araújo Silva, deixando claro que o país caminhou para uma metamorfose interna, capaz de submeter a sociedade uruguaia a uma ditadura especialmente feroz, impensável numa nação habituada a ser classificada como a "Suíça sul-americana", em função de uma estabilidade política sem comparação com os vizinhos.

3 - Uma nova mudança gigantesca no plano mundial iria ocorrer décadas mais tarde, na abertura do período histórico contemporâneo. Sua raiz se encontra na reação norte-americana aos atentados de 11 de setembro de 2001.

Numa resposta que definiu os traços principais da nova conjuntura mundial dos dias de hoje, pelo emprego da totalidade dos instrumentos políticos, militares e econômicos abrigados em seu arsenal imperial para pressionar China e Rússia ao mesmo tempo, Washington desenhou uma nova divisão de poder e riqueza no planeta.

Mostrou que os demais governos até podiam não gostar de submeter-se a seu domínio, mas "teriam imensas dificuldades para escapar de sua influência", como observa Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia, em artigo intitulado "Caminho norte-americano para a Guerra Econômica", publicado na revista Foreign Affairs (edição janeiro-fevereiro 2024).

Aquele situação hoje chamada de hiperglobalização, para diferenciar mudanças de patamar ocorridas ao longo de um processo - de séculos - trouxe consequências impensáveis para o destino de homens e mulheres de todo o planeta, na União Europeia e no Brasil, na Rússia, na China, nos EUA e na África.

Sem desprezar a narrativa convencional sobre as origens da hegemonia econômica dos Estados Unidos sobre os destinos do planeta, Henry Farrell e Abrahamn Newman apontam para emergência, nas décadas finais do século XX, de um fator de outra natureza, de valor estratégico impensável até há pouco.

Trata-se do controle sobre o sistema mundial de cabos e mensagens de fibras óticas de todo o planeta, que atravessam o território norte-americano, onde são gravados e enviados para exame nos serviços de informação e segurança nacional, num processo que permite investigar projetos que ameaçam interesses norte-americanos e encaminhar sanções correspondentes em resposta.

Paul Krugman vai além e esclarece: "aonde quer que os cabos aterrisem, Washington monitora seu trajeto -- basicamente fazendo um registro de todo o conjunto de dados que permite ao Conselho de Segurança Nacional examinar os dados. Assim, os Estados Unidos podem facilmente espionar tudo aquilo que outras empresas, e outros países, estão fazendo. Isso pode definir quando seus competidores ameaçam seus interesses e definir sanções significativas em resposta".

"Para proteger interesses dos Estados Unidos, lentamente Washington transformou redes de economia em instrumentos de dominação," escrevem Henry Farrel e Abraham Newman.

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* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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