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Rogério Skylab

Músico e compositor

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Mortos-vivos

Toni Negri pergunta sobre qual ação política deveria ser implementada para prolongar na história o esplendor do acontecimento e da subjetividade

(Foto: Lapoujade)
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O IMOBILISMO POLÍTICO 

Foi no ano de 2014, pela “Les Editions de Minuit”, que seria publicado, pela primeira vez, “Deleuze, les mouvements aberrants” de David Lapoujade, traduzido por Laymert Garcia dos Santos e publicado no Brasil em 2015 pela “n-1 edições”. Meu objetivo é acompanhar de perto o capítulo 9 do referido livro, “Fender a Mônada”, e tentar compreender o imobilismo político internacional depois de algumas primaveras. 

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O que Lapoujade sublinha em relação a Deleuze é a sua singularidade ou mesmo a sua solidão. A pergunta de Toni Negri sobre qual ação política deveria ser implementada para prolongar na história o esplendor do acontecimento e da subjetividade, será respondida por Deleuze com um significativo silêncio. A inconveniência da pergunta vem justamente da suposição de que somos capazes de agir. E o que Deleuze sugere (aqui, Lapoujade focaliza principalmente os seus dois livros sobre cinema), é a mudança do problema: a questão não é saber o melhor modo de agir entre várias opções, mas se tornar capaz de agir. Nada mais sugestivo diante da nossa realidade política. 

AS MINORIAS DE FATO E AS MINORIAS DE DIREITO 

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A questão então reside na crise da ação. E, nesse aspecto, a questão da potência, a doutrina das faculdades, terão um lugar privilegiado na filosofia deleuziana, nos remetendo também a Spinoza. Como reerguer as forças da profunda intuição vital, as potências de vida, já que essas forças podem vir a ser excluídas, como o são realmente, ao não se submeterem às arborescências do mundo exterior? Esse reerguimento, através do qual se readquire a capacidade de agir, vai ser obtido através do intolerável ou do impossível (as possibilidade esvaziadas da minoria, que deixa de responder às múltiplas redistribuições da divisão de trabalho). A percepção do impossível suscitaria as potências diante do choque afetivo. É que o afeto, ao contrário de um sentimento pessoal, é a efetuação de uma potência de matilha: potências moleculares que se erguem, levando a algo político enquanto processo coletivo e real. E essa é justamente a ideia de “devir”. A condição da ação política, ação essa que se dá ao nível molar, como a luta pelo direito das mulheres, dos negros, dos trans (minorias de fato), é estabelecida através das potências revolucionárias, as quais engendram a potência de agir nas minorias de direito. Evidentemente que a minoria de fato está ligada à minoria de direito. Mas elas se dão em níveis diferentes: as minorias de fato enfrentam este ou aquele aspecto da axiomática no campo das possibilidades existentes, enquanto as minorias de direito enfrentam os próprios fundamentos desfundados, reivindicando serem percebidas e ditas de maneira diferente. 

O DEVIR-MULHER E O DIREITO DAS MULHERES 

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A potência de agir é engendrada ao nível molecular. Daí a ideia de “devir”: a mulher-molecular é as partículas de feminidade que atravessam tanto os homens quanto as mulheres. O devir, ao contrário da transformação subjetivo-fantasmática, tem um caráter de simultaneidade: não é aquele que se é que devém, mas aquele que se será, embora se continue a ser quem se é. Em outras palavras, são as potências que compõem a mulher que fazem num homem o devir-mulher. E em razão dessas potências é que um homem se solidariza com os direitos das mulheres. O devir está, portanto, ligado ao campo molecular das potências. Há realmente uma luta junto aos outros – Lapoujade vai chamar atenção à luta de Deleuze ao lado de aliados como Spinoza, Leibniz, Bergson, com os quais teria causas em comum. Mas haveria também outra espécie de combate, que se realizaria dentro de si mesmo, entre as potências que exprimem as relações de força. E, segundo Lapoujade, o signo dos problemas em Deleuze ou das lutas consigo próprio seriam os movimentos aberrantes, as experiências-limites. A resposta a esses problemas (as noções, os conceitos, as teses gerais) viriam sempre posteriormente: Deleuze, o filósofo do acontecimento; Deleuze, o pensador da imanência; Deleuze, o filósofo vitalista. 

POTÊNCIA E DIREITO 

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Quando Lapoujade chama atenção para o fato de que são duas frentes e uma única e mesma luta, a das minorias contra o capitalismo e contra os Estados, essas duas frentes seriam da potência enquanto atos de resistência, e, do direito enquanto atos de fabulação: devir e estética; potência e direito. Ainda que seja uma única e mesma luta, são duas frentes: uma que reside no combate de si próprio e nas forças que esse combate faz levantar (estaríamos incapazes de agir justamente pelo adormecimento dessas forças ou dessas potências de vida); já a outra frente reivindicaria que a minoria seja percebida de outro modo e que se fale de outra maneira a respeito dos problemas por ela suscitados. É curioso que, sob esse duplo aspecto, Lapoujade ora retome uma ideia que estará presente em Anti-Édipo, diferenciando o real e a fabulação - a emoção primária não é delirante nem alucinatória, é absolutamente real, dando à alucinação o seu objeto - em outras palavras, o devir-animal é um processo real, sem que seja real o animal que o homem se torna (estamos aqui sob o prisma da potência, dos processos intensivos) - (Deleuze, 2011 , p. 33); ora Lapoujade retoma um exemplo dado em Cinema 2, quando Deleuze comenta a visão da fábrica pela heroína de Rosselini:  será através da fabulação, isto é, pelas palavras e pela visão, que vai se fabricar o real - subjetivo e objetivo se tornando aqui indiscerníveis (Deleuze, 1990, p.16). 

O IMPOSSÍVEL 

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O que chama atenção no estudo de Lapoujade sobre Deleuze, será a importância concedida ao Acontecimento: a capacidade de ação não será obtida pela força da boa vontade, mas a partir de algo que venha de fora e quebre o encadeamento de clichês físico, ótico, sonoro e psíquico – acarretando um choque perceptivo e suscitando as potências. A passagem que nos libertaria do niilismo passivo se daria não pela abertura de novos possíveis, não pela criação de novos espaços-tempos seletivos, na perspectiva do porvir e da abertura (toda a questão democrática contemporânea parece esbarrar nessa problemática), mas justamente pela renúncia à ideia de porvir (valeria a pena compararmos aqui a leitura de Marx empreendida por Derrida, que analisei no texto anterior, ESPECTROS , onde será concedida muita importância à ideia de porvir). É quando o possível se fecha a populações inteiras se tornando a forma do impossível, e quando esse impossível se torna intolerável, sentido como uma realidade que ofende as potências da vida, é justamente aí que estas se levantarão, aqui e agora, numa luta intempestiva. E a atuação dessas forças será justamente contra a forma de interioridade que rege o Aberto: a forma Um-Todo, que articula a linguagem e a visão, produzindo o encadeamento destas e levando ao que Lapoujade vai chamar de submissão maquínica. A quebra dessa interioridade estaria na desarticulação entre ver e falar. Os movimentos aberrantes, para Lapoujade, seriam os movimentos da potência (a faculdade de agir, inclusive), quando atingem o seu fora, para além de todo o mundo exterior: o insensível da sensibilidade; o inimaginável da imaginação; o impensado do pensamento. Desarticular o ver e o falar, o que seria uma forma de se ver e de se dizer de maneira diferente da imposta pela axiomática, estaria ligado à potência de atingir o fora, não o exterior. Daí porque essas duas frentes, potência e fabulação, se articulam numa mesma luta. MÔNADA 

Sobre a questão da mônada (o título do capítulo em análise já traz algumas pistas: “Fender a Mônada”), Lapoujade vai recorrer ao livro “A Dobra”: “se o mundo está no sujeito, nem por isso o sujeito deixa de ser para o mundo. Deus produz o mundo antes de criar as almas, pois ele cria para esse mundo, que ele coloca nelas” (Deleuze, 2012). Esse conceito, que Deleuze retira de Leibniz, dá margem ao neo-leibnizianismo: ser para o mundo; recriar o vínculo do homem com o mundo, que os processos de sujeição e submissão da axiomática romperam (Deleuze, 1990, p. 208). Através da mônada poderá se ter então duas perspectivas antagônicas que o seu próprio conceito guarda: o mundo está no sujeito – a mônada exprime o mundo; mas o sujeito é para o mundo. A crise da ação, o niilismo passivo, advém da oposição entre o homem e o mundo, implementada pela submissão maquínica – a transformação da massa em amostras, dados, mercados, bancos. A transformação da sociedade disciplinar em sociedade de controle introduz esse dado novo: não há mais mundo exterior, somente mundo-tela, cidade-cérebro, mesa de informação. Nesse sentido, haveria uma diferença entre o espaço totalitário, próprio da sociedade disciplinar, e o espaço aberto do mundo exterior, um mundo sem fora, que vai constituir a sociedade de controle: no primeiro caso, há a unificação das massas em sujeito, operado a partir de fora pela manipulação e propaganda dos aparelhos de estado; no segundo caso, as massas não podem mais formar um sujeito unificado capaz de agir, e se transformam em amostras e dados. É quando as percepções, as ações, o pensamento e o enunciado tornam-se decorrentes de clichês, assim como o porvir que passa a ser estabelecido pela moldura de todos os possíveis. É sob essa perspectiva da mônada enquanto expressão do mundo que, segundo Lapoujade, a atividade de comunicação é nula, posto que se é desprovido de corpo, pensamento e mundo, as redes constituindo tão somente relações que não são mais de causalidade (a ações humanas não teriam assim nenhum efeito sobre o mundo). A onipotência da informação, nesse caso, é proporcional a sua ineficácia. 

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OS ATOS DE FALA INFUNDADOS E O TEMPO EXTERIOR 

A ideia de recriar o vínculo do homem com o mundo passaria pelo processo de fender a mônada ou quebrar a pressuposição recíproca que junta ver e falar. Desarticular essa relação ou mesmo ver a mônada como anterior a essa articulação, isto é, como a membrana entre o dentro e o fora, que vai propiciar os cortes irracionais ou os movimentos aberrantes. Evidente que a questão estética entra nesse jogo de desarticulação através da fabulação (é a questão do direito na sua luta em fazer existir o que não tem legitimidade) – vai além da luta em legitimar o que existe, em legitimar pretensões dentro do campo do porvir. Renuncia-se a toda pretensão, no campo minado das possibilidades, mas não a todo direito. Foucault, por exemplo, anuncia nova visibilidade e nova enunciabilidade às populações das prisões; Kafka produz variações intensivas, desarticulando a linguagem, empobrecendo a linguagem, calando a linguagem e tornando impossível a mais ínfima informação ou palavra de ordem; e James Joyce, também através de tensores, sobrecarrega a linguagem de desvios tortuosos. Todos esses são atos de fala infundados que apelam para um povo que ainda não existe, mas que se faz nascer de falas e visões. Uma forma de enfrentar os próprios fundamentos através da língua inteira, e não este ou aquele aspecto da axiomática. 

A esses novos modos de povoamento, aos quais estarão ligados os atos de fabulação, vem se somar uma outra frente: as potências, suscitadas pelo choque perceptivo do Impossível. Essas forças, de uma profunda intuição vital, se erguem e nos levam a algo não pessoal, porém, coletivo e real. Aqui estamos no nível molecular das potências e das multiplicidades: o devir-animal, por exemplo, são as potências que compõem o animal e nos fazem devir. O que devem é um outro corpo ao fazer corpo com outras potências – animais, vegetais, sociais, políticas, cósmicas. Daí a noção de aqui e agora: agir de uma maneira inatual, contra o tempo, nos interstícios do todo, interstícios esses que constituem o seu fora, chegando ao tempo exterior, mais profundo que o passado (antimemória) e mais longínquo que a realidade externa (antihistória). 

MORTOS-VIVOS 

A experiência-limite e o direito de fazer existir fazem parte da desterritorização absoluta, indispensável para que haja a ação política. O Acontecimento ou o Impossível libera novos possíveis no Aberto para as minorias que souberem explorar suas potencialidades, antes que estas potencialidades venham a ser capturadas nas arborescências da axiomática. Mas fazer existir é lutar contra a morte que o capitalismo nos faz passar, nos transformando em mortos-vivos, zumbis sem futuro. Afirmar-se um cadáver dentro da música popular brasileira, de uma certa forma, é iluminar os clichês que fazem parte dessa indústria milionária e incorporar, como um cavalo, todos os seus mortos-vivos. Não é uma contraposição aos artistas que permanecem atuantes. É antes a integração de todos eles na sua condição básica de zumbis, como um primeiro movimento em direção ao Fora.  

Biografia 

LAPOUJADE, David. Deleuze: os movimentos aberrantes; tradução de Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 edições, 2015 

DELEUZE, Gilles. A imagem-Tempo; tradução de Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: editora brasiliense, 1990 

DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco; tradução de Luiz. B. L. Orlandi. São Paulo: editora Papirus, 2012 

DELEUZE, Gilles. O Anti-Édipo; tradução de Luiz. B. L. Orlandi. São Paulo: editora 34, 2011 

DELEUZE, Gilles. Cinema 1 – A imagem-movimento; tradução de Stella Senra. São Paulo: editora 34, 2018

 

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