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Rene Guedes

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O cinema de Loznitsa e a tragédia ucraniana

A expulsão do cineasta Sergei Loznitsa da academia de cinema da Ucrânia talvez tenha sido a notícia do campo cultural mais relevante sobre a guerra até agora

(Foto: Divulgação)
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A recente expulsão do cineasta Sergei Loznitsa da academia de cinema da Ucrânia, em resposta à posição do cineasta contra o cancelamento dos cineastas russos críticos ao regime russo, talvez tenha sido, até o presente momento, a notícia do campo cultural mais relevante sobre a guerra russa-ucraniana.

Justo o cineasta que, dias antes, publicara um manifesto de incontido fervor patriótico, conclamando a resistência contra os russos. A histeria antirussa, cancelando qualquer traço da cultura russa – de compositores e escritores do século XIX até esportistas e musicistas da atualidade – é decerto um dos capítulos mais vergonhosos da história recente europeia. E Loznitsa, ao se insurgir (ao menos em parte) contra essa onda irrefreável, acabou de certa forma afetado por ela.

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A noticia me fez refletir sobre os filmes que o cineasta dedicou sobre a história recente do seu país. Refiro-me, especificamente, ao extraordinário documentário “Maidan (2014)” e da antificção “Donbass (2018)”.

O cineasta é inimigo declarado de Putin. O seu cinema possui uma missão: investigar, apontar, questionar e refletir o passado soviético e suas implicações sobre a moderna Rússia. No cinema soturno de Loznista, a experiência histórica soviética é cinza e amarga. Uma experiência sociológica baseada no esforço titânico da construção de um estado totalitário e brutal. No seu espantoso documentário ”Funeral de Estado (2019)”, o cineasta narra os últimos dois dias de exéquias de Stalin, a partir de impressionantes registros cinematográficos de jornalistas, cineastas e técnicos, convocados à época pelo estado soviético para documentar o evento. O filme é um primor de pesquisa, de tratamento e recuperação visual, de edição e de linguagem cinematográfica. E também um eficiente estudo sobre o totalitarismo e suas implicações sobre o inconsciente coletivo de uma nação.

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O cineasta investe toda a sua filmografia neste mergulho crítico na psique russa. E é sempre muito ácido. Numa entrevista para um jornal europeu, por conta do lançamento do seu “Donbass (2018)”, diz o cineasta: ”A Rússia não tem passado nem futuro. Apenas um presente infinito…”

Logo, revisitar o cineasta é receber uma perspectiva importante sobre o conflito.

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“Maidan (2014)”, de Sergei Loznitsa

Começo, portanto, pelo poderoso “Maidan (2014)”. O cineasta traz a sua câmera para os eventos da praça Maidan, em Kiev, durante a revolta civil – os chamados Euromaidans – que protestavam contra Viktor Yanukovych, o então presidente ucraniano. Eles exigiam uma aproximação da Europa e um afastamento da órbita de Moscou.

O filme se inicia com a multidão cantando o hino ucraniano. Só escutamos as pessoas que estão no palco, conduzindo as manifestações. São vozes quase decorativas. O filme quer mesmo é mostrar a multidão. A câmera de Loznitsa está fascinada por elas. A imagem é muito poderosa, simbólica até. Por trás do fervor patriótico, tem algo que as liga. Um frenesi religioso, uma fome de liberdade e de pertencimento. O hino voltará a fazer parte ao menos mais duas vezes durante o longa de duas horas.

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Através de pouquíssimos textos, que estruturam o documentário e servem para estabelecer os seus atos narrativos, o filme vai descrevendo os acontecimentos por meio de uma câmera distante e longe dos seus principais atores. Tudo é movido pelas massas, o que é obviamente uma simplificação dos eventos, mas atende aos princípios do seu realizador. Como se aquelas pessoas estivessem ali movidas por um sentimento maior. Destacar um ou mais protagonistas descaracterizaria a mensagem do longa e a visão do documentarista. O momento histórico que ele quer registrar é o rompimento dos grilhões russos, como um valor totalizante e intrínseco do povo ucraniano.

A câmera imóvel é absorvida pelo ambiente. As pessoas desviam do quadro, enquanto perambulam pela praça. O filme se desloca de algum prédio onde pessoas trabalham na organização e, paulatinamente, mergulha nos acontecimentos da praça. Através da naturalidade da linguagem de Loznitsa, os sons, cantos e o agito das pessoas mostradas na tela, vão nos indicando a tensão crescente daquele lugar.

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Raras vezes o palco, montando na praça e centro nervoso das manifestações, é mostrado. Nestes poucos momentos, líderes religiosos, seja discursando ou em cânticos, dão um tom sacramental ao filme. Mais uma peça do seu discurso moral. Quando religiosos e não políticos (ucranianos e estrangeiros) são mostrados, a narrativa escolhe, mais uma vez, eleger o povo como protagonista da revolta. E, envolto na benção religiosa, abraça o código cultural mais profundo da população. Não existem tintas – ou interesses – políticos ali. Ao menos, é o que o filme defende.

Um filme é sempre uma experiência particular. Cada de um nós pode – e deve – se apropriar do que vê para articular os nossos mais variados sentidos sobre a obra. Da mesma forma, cabe ao seu realizador o direito maior de dar à obra o sentido que quiser. A troca – ou diferença – de percepções é sempre um estranhamento criativo essencial para o desenvolvimento do próprio cinema. Bem, o realizador de “Maidan” produz uma obra poderosa, sedutoramente imagética sobre os eventos na praça. Escolhe mostrar o fervor popular, sacramentado nos cânticos religiosos e nos funerais, que encerram o longa. Uma brilhante peça política, que celebra o despertar da cidadania ucraniana e a alvorada de um sonho europeu.

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O filme é uma corrida de sentidos, onde as imagens gritam mais do que qualquer discurso. Não existe contradição ali, no movimento ou no seu arco de apoios. Ou mesmo na violência das suas ações. As únicas cenas que demostram alguma suspensão das certezas inabaladas do filme são aquelas que mostram um policial sendo alvejado (por quem?), em cima do telhado de um dos prédios que circundam a praça. No mais, a pulsão de liberdade e coragem popular molduram nossas sensações e emoções. Em especial na metade final do documentário.

A obra é um libelo europeu tocante. Talvez a homenagem recente mais direta ao sonho europeu, já abalado pela troika financeira e incapacidade das economias mais frágeis atenderem às exigências do rigoroso banco central europeu. Ainda assim, incompleto para entendermos os desdobramentos daquele movimento de massas. E nem se espera esta resposta do filme. De qualquer filme. Mesmo um documentário. O documentarista enxerga o mundo através das suas lentes. Cabe a nós problematizá-lo e dar-lhe as muitas interpretações possíveis.

O longa não demonstra interesse nas articulações de políticos estadunidenses e europeus durante as manifestações. O filme não mostra a participação de extremistas, que aos poucos vão tomando parte das manifestações. O filme não aceita contradições. Ele é realizado no fervor do momento, quase como um grito. Não quer refletir nada, mas sim sentir. Não tem o distanciamento temporal que nos faz ver a realidade com mais sobriedade, mas pulsa paixão.

Entre “Maidan” e “Donbass”, a Ucrânia experimentou toda a sorte de problemas. Cinco dias depois da queda do presidente Yanukovych, a Rússia invade a Criméia, majoritariamente russa, e a anexa. Ao leste, as províncias de Luhansk e Donetsk revoltam-se contra os rumos de Kiev e declaram independência. Na sequência, o exército ucraniano e milícias de inspiração neofascistas tentam sufocar esse levante ao leste. Segue-se uma guerra de baixa intensidade, mas quente o suficiente para ceifar mais de 15 mil vidas.

Politicamente, o país também fica longe da estabilidade. Antigos líderes fascistas e colaboracionistas dos alemães na Segunda Guerra, como Stepan Bandera, foram em alguma instância reabilitados. Estátuas foram erguidas, ao passo que o russo e o seu legado eram crescentemente combatidos. Monumentos russos e ou soviéticos eram cancelados. Uma lei, aprovado pelo congresso em 2019 (que já tramitava desde 2012), exige que o ucraniano seja a única língua oficial do país, multando o seu uso por oficiais públicos, para profunda irritação de Moscou e as numerosas regiões ucranianas ao leste, majoritariamente russófilas. A desestruturação política causada pelo movimento Euromaidanista abriu as portas para os aventureiros políticos de plantão, como Petro Poroshenko, corrupto e ligado aos oligarcas mais nebulosos do país, além de entusiasta da radicalização do discurso político contra os russos. Além disso, é preciso afirmar, o movimento Euromaidanista, como muitos outros naquela época, em várias outras parte do mundo, também não trouxe uma elevação do debate político, mas sim, sua absoluta capitulação à radicalização afobada de agentes políticos aventureiros e descompromissados com qualquer agenda verdadeiramente nacional. Ao caos resultante, promessas – nunca cumpridas – de uma absorção do país pelo consórcio europeu.

Em meio ao turbilhão dos eventos, o realizador apresenta o seu “Donbass (2018)”, feito, segundo ele, para “desmistificar as mentiras de Moscou” acerca do conflito no extremo leste ucraniano.

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“Dombass (2018”, de Sergei Loznitsa

A obra é estruturada sobre quase-esquetes, que retratam o cotidiano daquela guerra esquecida entre ucranianos e separatistas do Donbass (Luhansk e Donetsk), onde o humor desajeitado é entrecortado – ou interrompido – pela mais inaudita violência, brutal e estúpida, como em qualquer guerra.

Aqui, a lente de Loznitsa percorre o universo daquela república russófila com intenções muito mais claras do que em “Maidan”. O tom ácido e jocoso da obra retrata os russos – ou ucranianos russófilos – como possuidores dos mesmos vícios da nacionalidade russa: embrutecida, corrupta, cínica e profundamente tirânica.

Numa determinada cena, um jornalista alemão tenta passar por um check-point, e é confrontado por milicianos, que perguntam: “Você é fascista? Se você não é, certamente o seu pai foi”. Ao meu ver, uma forma grosseira de desmitificar as acusações russas das infiltrações de unidades paramilitares de aberta inspiração nazista, seja na estética como no discurso. Ao escolher essa frase, cuspida por um miliciano embriagado, ele descaracteriza essa evidência e, mais uma vez, fecha os olhos para as contradições da sua Ucrânia.

O filme deglute e vomita as imperfeições do universo russo, apresentadas em sequências desconcertantes e, algumas delas, absurdas. Numa cena, pessoas da sociedade civil tentam apoio de um político local para um evento cultural desimportante e de fundo moral e religioso. É possível encontrar, no canto superior do enquadramento, o quadro de Stalin, como se o ditador, mesmo defenestrado na própria União Soviética após a sua morte, irradiasse ainda sua energia tirânica para toda a alma russa. Numa outra cena, um militar ucraniano é amarrado num poste por dois soldados, como forma de penitência e humilhação (que de fato ocorreram naquela região), até que ele é admoestado por uma malta de pessoas enfurecidas, gritando e ameaçando um homem desarmado. A mise-en-scène emula a espontaneidade documental, tornando a cena indiscutivelmente muito poderosa. Mas ela é antificcional, como aliás é todo o filme, que opta por transitar entre a realidade documental e o absurdo, sem estabelecer, no entanto, nenhuma relação emocional com o público. Passíveis, nos resta acompanhar o estranho desenrolar personagens, alguns mais realistas, outros incrivelmente grotescos.

E aí chegamos no momento mais nevrálgico do longa, a indigesta cena do casamento. Tudo ali é feito para nos agredir, sobretudo pelo descalabro estético e moral representado pela cena. Um casal desengonçado e barulhento celebra suas bodas em meio milicianos armados, políticos corruptos e outros coadjuvantes daquela tragédia. A cena é eficiente em mostrar a fratura racional daquele ambiente, mas ao mesmo tempo flerta com o pior tipo de caracterização preconceituosa.

Por outro lado, o filme é bastante eficiente ao apresentar como uma guerra de baixa intensidade se desenvolve, operando numa zona cinzenta onde a vida civil e militar convergem. Então, lançadores de foguetes de saturação disparam indigentemente contra uma determinação direção, e como se aquilo fosse uma banalidade, são recolhidos e se movimentam para um outro local. A guerra interrompe a ordem da vida civil, mas sem a urgência e a violência de um conflito convencional.

A visão unidimensional do diretor mais uma vez ignora a atividade de batalhões extremistas do lado ucraniano. Alguns, inclusive, incorporado às fileiras regulares do exército. Também ignora os motivos que levaram alguns cantões russos na Ucrânia para o rompimento formal com Kiev.

Mais uma vez, não se exige e espera este tipo de posicionamento do filme. O filme é de Loznitsa e segue a sua visão dos acontecimentos. Seu cinema é absolutamente honesto nos seus princípios e intenções.

No ocidente, seus filmes são celebrados, muito por seu merecimento. Não existe documentarista como ele, que vai, filme a filme, refinando sua técnica impressionante, uma combinação árdua de talento, sensibilidade e árdua pesquisa. Mas o seu posicionamento marcadamente antirusso, ou abertamente conflituoso em relação a Putin, atrai indiscutivelmente o interesse e apoio ocidentais.

Ao apontar fervorosamente os pecados russos, Loznitsa não reflete – ao menos através do seu cinema – as crescentes contradições do seu próprio país. Seu cinema ignora a Ucrânia que abriga a estética neofascista de alguns grupos, que não resolve muitas das demandas clamadas pelos Euromaidanistas, que preserva – e amplia – o poder dos seus oligarcas e que soterra, paulatinamente, o discurso politico tradicional, pavimentando o caminho para aventureiros.

Num momento de crescente tensão contra o vizinho indigesto, a experiência conciliadora seria mais uma das forças contrárias ao impulso da guerra. Da leitura das possibilidades reais do país. De navegar pelos muitos interessantes que circundam a Ucrânia, eleita como novo campo minado da nova-velha-guerra-fria, sem esbarrar nas ciladas da história.

No momento em que eu escrevo essas pobres linhas, a guerra já entra no 33º dia. Devorando a razão. E inaugurando um novo momento geopolítico. Deixemos o cenário mais complexo para os analistas e fiquemos com o horror da tragédia humana que se apresenta para os nossos olhos já cansados de tanta violência.

Tomar consciência sobre estes eventos por meio do cinema é necessariamente contar com a contribuição de Loznitsa para essa reflexão. Mas é importante entender seus limites, muito mais políticos do que fílmicos.

Que a guerra acabe logo.

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