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Claudia Schiedeck

Foi a primeira reitora do IFRS (2008-2016), coordenou a Câmara de Relações Internacionais do CONIF, possui doutorado em Educação e pesquisa a internacionalização da educação

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O escravismo nosso de todo dia

Nós, moradores da região, temos que nos comprometer mais para que tais fatos nunca mais ocorram no quintal da nossa casa

Força-tarefa encontrou 207 trabalhadores, de 18 a 57 anos (Foto: Reprodução/PF)
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 Moro na região da Serra Gaúcha há mais de 40 anos, 20 dos quais em Bento Gonçalves e os outros 20 em Garibaldi. E, por isso, sinto-me no dever de inicialmente pedir desculpas aos trabalhadores humilhados, torturados e encontrados em situação de escravidão contemporânea na nossa região. Não há nada que possa reparar essa vergonha pública pela qual estamos passando, uma vez que não é admissível permitirmos que seres humanos sejam tratados dessa forma em pleno século XXI.

 Em 1997, fui concursada para trabalhar no Curso Superior de Viticultura e Enologia, na antiga Escola Agrotécnica Federal Presidente Juscelino Kubistchek. Mesmo sendo professora de língua portuguesa, aprendi a amar o vinho como tantos outros que se debruçaram um pouco mais sobre o tema. E aprendi a conhecer a realidade dos vitivinicultores da nossa região. Na sua maioria, são pequenas propriedades familiares, muitas delas sofrendo com a ausência de mão de obra, quer seja porque as famílias diminuíram de tamanho, quer seja porque os filhos e filhas estão nas cidades. Quando não possuem vinícolas próprias, esses pequenos agricultores dependem fundamentalmente de vender sua produção para as empresas maiores ou cooperativas (ainda muito fortes na região).

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 Os fatos que tomaram conta da mídia sobre a mão de obra em situação análoga à escravidão vinculada algumas vinícolas me traz uma tristeza profunda. Primeiro, porque afeta todo um setor que se dedicou muito nos últimos anos para ser referência no país e fora dele. Segundo, porque as pessoas não conseguem separar o joio do trigo, entrando numa lógica perversa de culpar a tudo e todos, sem perceber que esse processo catártico de ódio afeta diretamente pessoas simples que dependem economicamente da venda de seu produto: as uvas.  

 É importante que se diga que esse não é um fato isolado na região. Aqui temos haitianos, senegaleses e venezuelanos vivendo em situações degradantes, todos arregimentados pelo sonho da Nova América. O resto do Brasil não está imune também a esses problemas, uma vez que existem empresas maquiladoras ilegais que contratam bolivianos, colombianos, africanos para trabalhar na produção de roupas de marcas piratas, que também vivem em condições sub-humanas. Setor que muitos de nós alimentamos economicamente ao comprar em mercados populares, sem sequer nos preocuparmos com a origem das mercadorias. Nosso problema é mais profundo que a escravização de pessoas para a colheita da uva na serra gaúchos. A mentalidade que subjaz não só nossa região, mas também muitos outros rincões do país, é a lógica do escravismo, como diz Jesse Souza (A Elite do Atraso). A eterna separação entre quem é gente e quem não é gente. Entre o europeu caucasiano, trabalhador e produtivo, e o negro africano (ou o indígena latino-americano), que é preguiçoso e imprestável. Para a mentalidade escravista contemporânea, o nordeste significa o não-gente. Assim como os indígenas yanomamis. Desconsideram cultura, exalam xenofobia e se apegam às piores disfunções da alma humana.  

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 Além disso, esse pensamento se mistura a uma legislação que permite a terceirização de mão de obra que, de fato, permite a transferência de responsabilidade nas relações trabalhistas para uma empresa intermediária, a qual não é fiscalizada adequadamente. Terceirizar serviços no Brasil se adere perfeitamente à mentalidade escravista. Contrata-se uma terceirizada para que ela lide com aqueles que não são gente para que a empresa principal não tenha que ‘se ocupar’ com pessoas que não queiram trabalhar ou que ‘incomodem’ no cotidiano das tarefas, ou ainda para se eximir de questões judiciais trabalhistas. Com isso, a empresa se exime dessa tarefa e a terceirizada lucra o que pode. Alguns dos maiores escândalos de corrupção no setor público no Brasil tem origem em empresas de terceirização.

 Para completar o quadro do desespero, algumas entidades e políticos da região tentam politizar o caso para tirar o foco do que realmente importa. Com isso, não contribuem para amenizar o estrago que continua a ser feito para todas as vinícolas e pequenos agricultores da Serra Gaúcha. Ao contrário, acirra um debate ideológico e surreal sobre o assunto, uma vez que não há dúvidas de que houve crime e que existem muito mais coisas a serem apuradas.  

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 Os culpados devem ser punidos exemplarmente e isso inclui qualquer um que tenha contribuído para tal prática! As empresas devem assumir os erros cometidos e traçar estratégias para que esses acontecimentos horrendos não voltem a se repetir! Nossa região possui empresas vinícolas sérias e que trabalham dentro da legalidade. As milhares de famílias que sobrevivem do cultivo da uva não podem ser responsabilizadas por atos ilegais cometidos por alguns poucos.  

 Um fraterno abraço a todos e todas as trabalhadoras do setor vitivinícola da Serra Gaúcha que trabalharam e trabalham legal e incansavelmente de sol a sol para promover seu produto e o turismo na região em que vivem. E minha solidariedade a todos os trabalhadores resgatados e suas famílias. Nós, moradores da região, temos que nos comprometer mais para que tais fatos nunca mais ocorram no quintal da nossa casa.

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