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Fernando Horta

Fernando Horta é historiador

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O sequestro de uma data

"O 7 de setembro está sendo roubado por Bolsonaro. Deixa de ser uma data do Estado para ser um bastião de disputa política", analisa Fernando Horta

Jair Bolsonaro (Foto: Adriano Machado/Reuters)
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As comemorações da “independência” do Brasil parece ser um “fato” atinente à própria existência do Brasil. É como se sempre esta data estivesse ali significando a mesma coisa e isso é falso. O 7 de setembro é uma data controversa para o Estado brasileiro. Ao longo da história ela teve diversos significados e foi apagada ou reforçada conforme determinados interesses. Agora, o 7 de setembro está sendo roubado por Bolsonaro e sua família. Deixa de ser uma data do Estado brasileiro para ser um bastião de disputa política que será usado pela extrema direita de agora em diante. Precisaremos perguntar se queremos o 7 de setembro na memória pública brasileira.

Não é mais segredo que as datas comemorativas são escolhas do poder vigente para fazer lembrar e fazer esquecer pontos do passado, direcionando ativamente a construção de uma memória pública que consubstancia valores e interesses que são transformados em “nacionais”. O significado da “independência” varia muito a partir do local na sociedade em que se está. O consenso acadêmico é de uma “mudança pelo alto”, sem (ou com pouca participação) dos interesses de grupos mais abaixo nas hierarquias socioeconômicas. Essa mudança pelo alto apagou os diversos projetos que se tinha para o Brasil pós independência. A manutenção de D. Pedro I refletiu uma ruptura controlada que pudesse diminuir a pressão das elites portuguesas sobre o Brasil no final do XIX, mas que não permitisse qualquer movimento popular (aos moldes do que vinha ocorrendo no restante da América Latina) que pudesse implicar em mudanças políticas.

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Na prática, para a vida da população brasileira pouca coisa mudou entre o antes e o depois da independência.

O golpe militar da república reorganizou a história sobre a independência. A república se esforçou por mostrar que o império brasileiro havia sido uma camisa de força colocada pelos Orleans e Bragança contra “a vontade de liberdade do povo brasileiro”. É a república brasileira (comandada por positivistas, latifundiários e o comércio ligado ao café) que escolhe jogar luz na Inconfidência Mineira e sombra na Conjuração Baiana, por exemplo. O sentido era reforçar a perversidade atribuída ao império, mostrando que o “desejo de liberdade” era algo existente antes do império e que os Orleans e Bragança teriam usurpado a vontade “do povo” atrasando a república. É claro que esta construção é tremendamente enviesada. Esconde que as elites não apenas apoiaram Pedro I, mas efetivamente fizeram a independência para que nada mudasse.

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De qualquer forma, a república diminui a importância sobre o 7 de setembro e elege o 15 de novembro como data magna no Brasil. Durante toda a República brasileira (até 1964) o 7 de setembro foi uma data menor do que o 15 de novembro. “Comemorar” o império não era prioridade da república.

O golpe de 64 luta pela memória brasileira. Era preciso robustecer o exército brasileiro até para contrabalançar os danos na imagem da instituição em função das torturas e da brutalidade do período militar. Para isso o exército constrói a mentirosa história da sua formação a partir do século XVII e a Lenda dos Guararapes. Por esta mitificação, o exército brasileiro teria surgido muito antes do Brasil. O exército constrói um caminho de explicação de si que sai da Batalha dos Guararapes (1649) e vai para a Independência (1822) e chega na Proclamação da República (1889). O 7 de setembro, é portanto, uma data militar que dava entendimento ao argumento de que o exército é quem “faz” o Brasil. Tendo sido pela “mão amiga” que o povo brasileiro teria atingido tudo o que hoje tem.

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No final dos anos 80 e nos 90, o 7 de setembro passa a ser ressignificado como uma das duas ou três datas do Brasil. O 7 de Setembro se junta à Proclamação da República e à Inconfidência Mineira para compor uma história branca, elitista e liberal que viria a embalar o projeto neoliberal até 2003. A constituição de 1988 disputava os sentidos de nação no Brasil e tentava recolocar os militares no lugar de toda “mão armada” numa democracia liberal. Nada de “mão amiga”, mas de uma instituição subserviente ao poder civil e com atribuições especificadas em lei. É claro que esta disputa política não foi fácil e nem atingiu aos objetivos que os constituintes queriam. Sarney foi o fiador do acordo que protege os militares enquanto dava “espaço” para os civis retornarem ao comando das instituições brasileiras.

A verdade é que até 2003, se usarmos o dístico da bandeira como espelho da nossa história, o 7 de setembro sempre foi “ordem”, enquanto o 15 de novembro era o “progresso”. Às elites os dois eram importantes, mas claramente a ordem era militar e o progresso, republicano.

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É com Lula e Haddad que novamente ocorre uma luta pelos sentidos de Brasil. Se é verdade que o “Grito dos excluídos” é de 1995, ele já significa uma disputa pela memória. No meio das lutas contra o neoliberalismo havia a lembrança de que o processo da independência marca a institucionalização da exclusão da imensa maioria do povo brasileiro. A reorganização dos currículos de história na LDB, a obrigatoriedade do ensino de História da África e das histórias regionais dos povos autóctones marca uma virada sem precedentes nessa disputa pela memória do Brasil. Isso veio junto com a Comissão da Verdade, com os esforços de parte do Ministério Público em trazer os criminosos de farda para a justiça e com o movimento social que questiona nomes de ruas e pontes, por exemplo, para figuras odiosas do período militar. Na verdade, mesmo o ato de Paulo Galo, em 2021, é uma disputa política pela memória do Brasil, somente possível porque não se aceita a Independência como a data magna da nação. Os sujeitos sociais passam a buscar na história suas próprias ressignificações com o objetivo de construir suas identidades. E isso é válido e normal.

E agora?

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Agora, Bolsonaro, desde 2020, vem sequestrando o 7 de setembro. A data passa a significar a força do militar sobre o civil. O controle da pátria sobre o povo e uma ode ao “não político” que “subverteu a velha política em nome do Brasil”. É um verdadeiro absurdo o sentido que o 7 de setembro assumiu. Nunca foi uma data “da nação” eis que claramente excludente, rememorava o controle e ordem do império. Mas agora não é sequer mais uma data militar. É uma ode a Bolsonaro. Serve somente a ele. Política e socialmente. Bolsonaro tem parte do exército por sócia de suas aspirações golpistas, mas está raptando o 7 de setembro de forma que dificilmente ele retornará. Por anos o 7 de setembro vai ser o bastião da memória bolsonarista. Teremos atos de violência pelo país inteiro “lembrando” o “capitão” que agora deixa de ser um posto do exército para se tornar parte da identidade fascista no Brasil. Veremos isso nos anos seguintes. Esse pesadelo que foi o governo Bolsonaro vai se perpetuar numa memória heroica e falsa que raptou o 7 de setembro do colo dos militares. E com a ajuda da banda intelectualmente deficiente dos militares, o exército está ajudando aos golpistas e destruindo a sua própria memória.

O 7 de setembro nunca foi nosso. Nunca foi do povo. Nunca foi dos excluídos. Agora, porém, também não é mais do “Brasil” ou mesmo do exército. Virou uma data de Bolsonaro. Do fascismo brasileiro e do golpe contra as instituições.

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