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Liliana Tinoco Bäckert

Jornalista e mestre em Comunicação Intercultural pela Universidade da Suíça Italiana, apresenta coluna semanal na Rádio CBN e é autora de livro e textos sobre vida no exterior

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Os bons e os maus refugiados

Haveria um quê de racista na diferente recepção dos ucranianos na Europa, em comparação com outros povos que também fugiram de conflitos?

(Foto: Reprodução)
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Entre os horrores e perdas humanas, há uma semente sendo plantada por ocasião da tragédia da Guerra na Ucrânia. Paira no ar, retratado aqui e acolá pela mídia europeia, uma certa mão na consciência misturada com mea-culpa sobre racismo e preferências étnicas em relação ao desigual acolhimento de refugiados. 

A imprensa tem passado a mensagem de reconhecimento de que há algo estranho. Diante da quase unânime manifestação de carinho e ajudas humanitárias em várias esferas dispendidas aos ucranianos, não deu para ignorar que o mesmo não aconteceu com os sírios, os afegãos, os eritreus ou os iraquianos, por exemplo.

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O despertar da imprensa

Vale a pena conferir o ponto de vista dos europeus. A imprensa vem trazendo títulos interessantes, como: “Refugiados árabes veem padrões duplos no acolhimento europeu aos ucranianos” (Swissinfo), “A abordagem diferente da Europa aos refugiados ucranianos e sírios desenha acusações de racismo” (CBC), “Eles são civilizados e se parecem com a gente: a cobertura racista da Ucrânia” (The Guardian).

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É importante destacar, neste ponto, que a discussão aqui não é sobre merecimento de ajuda ou de uma recepção calorosa. Os ucranianos ou qualquer um que se refugie devido a uma guerra merecem e deveriam ter garantida toda a colaboração humanitária possível, isso sem falar do mínimo, que é dignidade, alimentação e segurança.

É preciso falar sobre preferências

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A reflexão passa pelo interessante avanço de consciência diante de uma óbvia diferenciação e o quanto esse discernimento poderia ser aproveitado para ajudar no progresso nesse campo. Até mesmo para educar sobre o fato de que refugiados sofrem muito, independentemente da cor da pele, religião e etnia.

O jornal suíço Tages Anzeiger trouxe um artigo sobre o tema cujo título me inspirou: “os bons e os maus refugiados”. Assim, direta, a redação se deixou influenciar pelo texto do autor e fotógrafo sírio Joud Hasan, publicado em Der Spiegel da Alemanha.

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Na fala de Hasan, transcrita pelo jornal, vem o desabafo: “Não faz muito tempo a Europa encolhia os ombros enquanto famílias árabes, asiáticas e africanas passavam fome e congelavam na fronteira entre Belarus e Polônia. Essa mesma polícia, que acolhe milhões de ucranianos, tinha então humilhado e espancado aqueles que procuravam proteção. As pessoas que congelam no mesmo frio são tratadas de forma diferente porque têm uma origem e cor de pele diferentes".

"Como primeira e segunda classe"

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Em uma entrevista na Alemanha, a ativista dos direitos da mulher síria Huda Khayti perguntou “onde foram as duras sanções do Ocidente quando o exército russo estava em fúria contra a população civil síria? De uma perspectiva europeia, parece haver algo como refugiados de primeira e segunda classe.

“Nós estamos nos perguntando porque ucranianos são bem-vindos em todos os países enquanto nós, sírios, estamos ainda morando em tendas, embaixo de neve, enfrentando a morte, e ninguém tem olhado por nós?”, disse um refugiado à Agência de notícias Reuters. 

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O status de proteção S concedido pela primeira vez

O governo suíço decidiu conceder a refugiados ucranianos o visto "S" de residência, um status de permanência nunca antes utilizado pelas autoridades. Para a professora de direito da Universidade de Friburgo, Sarah Progin-Theuerkauf, trata-se de uma abertura sem precedentes. O status de proteção S, dado num piscar de olhos aos ucranianos, não beneficiou refugiados sírios, iraquianos e eritreus. 

Progin-Theuerkauf considera positiva a decisão do governo de ativar o status de proteção. No entanto, compreende a crítica de que existe uma diferença de tratamento.

Diante dos exemplos mencionados - e há outros - restam poucas dúvidas: o público europeu de fato distribui sua empatia de acordo com padrões desiguais. 

Seria mesmo racismo?

A empatia e vontade de ajudar, nesse caso, se baseia menos no racismo e mais em um fenômeno humano, segundo a filósofa americana Jennifer Page, que trabalha como professora assistente na Universidade de Zurique. Ela aponta duas evidências que comprovam que a compaixão aumenta quando a vítima pertence ao mesmo grupo étnico. 

Em um estudo, são mostradas aos participantes imagens de pessoas que sofriam de dor. Se pertencessem ao mesmo grupo étnico, suas áreas cerebrais responsáveis pela empatia eram significativamente mais ativadas do que com imagens de indivíduos diferentes. Outros fatores como idade, gênero ou aparência desempenharam um papel importante também. 

"Central nessa análise é o conceito de empatia do trabalho do filósofo do Iluminismo Adam Smith", diz Jennifer Page. Em sua obra "Teoria dos Sentimentos Éticos" de 1759, Smith descreve um londrino fictício, educado humanisticamente, que "roncaria na mais profunda segurança à noite" mesmo que um terremoto tivesse engolido a China. A distância geográfica também tem um valor no terreno da sintonização.

Mas se o sistema, baseado em etnia, cor da pele e semelhança, colaboram para um determinado grupo, então há componente racista. 

As reportagens deixam claro que há um certo desconforto por parte de alguns europeus. Os próprios especialistas, ao justificarem as questões, muitas vezes fazem uso de conjunção adversativa para marcarem que há ali, no coração da Europa, a “raça” também dita preferências.

Discussão vai além do racismo

Trata-se, entretanto, de um tema mais profundo. Entram aqui questões de uma guerra mais próxima, que desestabiliza a Europa e economias importantes, e que coloca inclusive perigo do uso de armas nucleares. 

Fatores de política de migração também explicam os diferentes graus de empatia demonstrados pelo público ocidental. Gerald Knaus, austríaco que dirige o think tank European Stability Iniciative em Berlim, explica: “ao contrário dos ucranianos, os refugiados do Oriente Médio não fugiram diretamente de uma zona de guerra, mas em alguns casos permaneceram por muito tempo em outros países. Os ucranianos, por outro lado, não tiveram outra chance a não ser procurar proteção na União Europeia”.

Knaus, que é um dos pesquisadores de migração mais renomados internacionalmente, acredita que “a população da Europa não veja o ditador sírio Assad como um perigo imediato, mas Putin, com suas ameaças de armas nucleares, sim. Isso facilita a identificação com esses refugiados”. 

E complementa: “Além disso, quase exclusivamente mulheres e crianças vêm da Ucrânia. A questão sobre se há terroristas entre eles ainda não foi colocada”. Muitos habitantes da Europa, inclusive brasileiros, criticaram o acolhimento de refugiados muçulmanos dizendo que eram terroristas.

Diplomatas e especialistas dizem que estados europeus querem abrigar ucranianos em parte para enfatizar que são contrários a Putin. A professora da Northeastern University em Boston e diretora do programa de política, filosofia e economia, Serena Parekh, diz que “se crise dos refugiados é usada como uma das ferramentas de Putin para desestabilizar o Ocidente, então uma resposta calma, eficiente e ordeira é uma boa reprimenda a isso". “Por um outro lado, é duro ver que ucranianos são brancos, a maioria cristãos e europeus e que, por isso, não há xenofobia contra eles".

Questão de humanidade

Entretanto, como disse a chefe das Nações Unidas para refugiados ACNUR na Suíça, Anja Klug, é contraproducente jogar diferentes grupos de refugiados contra os outros. “Não podemos acusar ninguém que ajuda os ucranianos. Isso é um absurdo.”

Entretanto, Klug e Knaus compartilham uma preocupação: que essa enorme crise de refugiados esteja absorvendo toda a atenção e recursos. E que, por causa disso, condições devastadoras como as do Afeganistão estejam simplesmente sendo esquecidas. 

Para o Tages Anzeiger, “discutir a questão dos refugiados ucranianos nas categorias de desigualdade e de dois pesos e duas medidas é intelectualmente possível. Porém, pouco provável que convença alguém de uma política de refugiados fundamental mais humana”. Entretanto, eu acredito que o início de processo de mudança passe sempre pela aceitação do problema e por abertura de discussões. Talvez, quando tudo isso passar, a conscientização terá sido um considerável ganho.

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