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Carlos Carvalho

Doutor em Linguística Aplicada e professor na Universidade Estadual do Ceará - UECE.

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Racismo linguístico

"Há racismo, sim, no uso que sempre se fez de palavras como denegrir, e o ato de questionar seu uso hoje está longe de ser uma alucinação'"

Manifestação Juventude Negra (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
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Recentemente, li um texto intitulado “Polícia etimológica” em um desses jornalões da grande mídia. Como se o “equívoco” já não fosse gritante nas duas palavras que intitulam o artigo, pois é uma versão abobalhada de “patrulha ideológica”, a coisa ainda fica pior quando os quatro parágrafos que constituem o texto transbordam de preconceito, ignorância política e linguística. Para surpresa de zero pessoas, não há nada de novo no front, uma vez que a mídia corporativa brasileira está repleta de “especialistas” emitindo opinião sobre tudo e todos, usando como fontes apenas as vozes que ecoam em suas próprias cabeças, haja vista o caso daquela jornalista que ironizou a fala de Lula por ele falar “adevogado”. Uma “jênia”! Diria Paulo Henrique Amorim. 

O artigo em questão, como para dar respaldo ao festival nonsense ali esboçado, começa por citar a escritora Camille Paglia e sua opinião acerca do que se convencionou chamar de “politicamente correto”. Na sequência, a articulista recupera um fato ocorrido em um programa de televisão qualquer, quando na ocasião o âncora corrigiu uma colega que havia usado a lexia “denegrir” durante sua participação ao vivo no tal Programa. Longe de ser um transtorno mental, uma alucinação coletiva ou uma praga, como querem alguns reacionários, o politicamente correto é uma forma de cobrar respeito e justiça àquelas pessoas que são, cotidianamente, vitimas das mais variadas formas de preconceito e agressão. Contudo, é bastante confortável ser contra o politicamente correto e tachar o outro de “vitimista”, quando se é bem nascido, branco, e ter tido a oportunidade de estudar nas melhores escolas que o dinheiro pode pagar. E não me venham com esse papo tacanho de “meritocracia”, cuja existência, sabemos, é tão real quanto o saci e a Fada do Dente.

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Assim como a palavra “denegrir”, há inúmeras outras que devem ser definitivamente evitadas. Como comprovação do que digo, basta dar uma olhada na lexia “negro” em qualquer um dos nossos dicionários de língua portuguesa (em língua inglesa se dá o mesmo). Assim, orientar alguém a não falar palavras ofensivas, sejam elas relacionadas a gênero, crença ou etnia, não se constitui como censura, mas como um apelo ao uso do bom senso e ao exercício da decência e da ética. O curioso é que no caso em questão, a autora do artigo recorre à etimologia numa tentativa vã de justificar o injustificável, fazendo uso “policial” da etimologia para criticar aquilo que chama de “polícia etimológica”. Pois é!

Há racismo, sim, no uso que sempre se fez de palavras como “denegrir”, e o ato de questionar seu uso hoje está longe de ser uma alucinação ou “um delírio de intelectuais”, como bradam as vozes na cabeça da articulista, que “buscam criar um paraíso igualitário a partir do mundo das ideias desconsiderando o mundo real”. E aqui caberia uma belíssima discussão acerca do que a autora compreende por “mundo das ideias” e sua relação com o “mundo real”. Aí já seria querer demais. Mas já ficaríamos bastante satisfeitos se a autora do tal artigo tivesse deitado olhos, por pelo menos uns vinte minutos, acerca daquilo que se compreende por preconceito linguístico, racismo linguístico e tudo o mais que nos ensinam a Sociolingüística e a Linguística Aplicada, por exemplo. 

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Sobre tal questão, teria sido oportuna a leitura do trabalho de Gabriel Nascimento, Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo (2019), quando diz que: “o preconceito racial é entrelaçado com o social e o linguístico” naquilo que chama de “racismo linguístico, e que se desenha através do linguicídio, ou seja, do extermínio do outro não branco”. Mais adiante, o autor aponta que: “uma vez que admitimos que o racismo está na estrutura das coisas, precisamos admitir que a língua é uma oposição nessa estrutura”. Nascimento entende que “o racismo é produzido nas condições históricas, econômicas, culturais e políticas, e nelas se firma, mas é a partir da língua que ele materializa suas formas de dominação”. Logo, qualquer tentativa de atacar o “politicamente correto”, tentando descontruir as ressignificações de termos racistas em uso na nossa sociedade, é jogar o jogo do colonizador, do escravocrata contemporâneo e, além disso, é ignorar a realidade selvagem que persegue, cerca, ataca e fere de morte o outro não branco.

O texto do tal jornalão mete os pés pelas mãos e mistura alhos com bugalhos, quando toma posicionamentos rasos e equivocados sobre temas como sociedade, etimologia, neurose, paranoia, ignorância, antirracismo, alucinação, feminismo, chacinas, delírios e realidade. E tudo isso em quatro parágrafos. Em resumo, o texto em questão é todo ele um conjunto de equívocos sociohistoricos, linguísticos, políticos e culturais por meio dos quais se percebe um lugar de fala privilegiado, emoldurado por um racismo linguístico que salta aos olhos, assim como um latente e completo desconhecimento (ou não?) do que seja racismo estrutural e de como os preconceitos estão enraizados na linguagem humana.

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