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Maria Luiza Alencar Mayer Feitosa

Doutora em Direito Econômico pela Universidade Coimbra, com pós-doutorado em Estado e Sociedade pela UFSC; ex-diretora da Faculdade de Direito da UFPB (2013 a 2016); professora titular e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB

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Sigilos de 100 anos, desinformação e desrespeito

Como Bolsonaro fragilizou os postulados do governo aberto e da transparência pública

(Foto: Foto: REUTERS/Paulo Whitaker)
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Artigo escrito em parceria com Weuder Martins Câmara, advogado e mestrando em Direito pelo PPGD, UFRN

Ao longo dos últimos quatro anos, período que compreendeu a gestão do presidente Jair Bolsonaro, aconteceu um fenômeno que impactou diretamente os preceitos relativos a “transparência pública” e “governo aberto”. Eleito em 2018 como um outsider da política, a despeito de exercer mandatos de deputado federal pelo Rio de Janeiro por seguidos 28 anos, Bolsonaro direcionou sua narrativa de campanha para o combate à corrupção e a honestidade pessoal. No entanto, ao longo do seu mandato (2019 a 2022), o mandatário federal decretou centenas de sigilos, todos pelo período de cem anos, de maneira que, na prática, privatizou e indisponibilizou informações – classificadas como “pessoais” por ele e sua equipe – com destaque para o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI-PR), comandado pelo General Augusto Heleno, campeão em sigilos.

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De acordo com levantamento realizado pela ONG Transparência Brasil, foram, ao todo, 1.379 sigilos decretados pelo governo federal entre os anos de 2015 e 2022, 80% dos quais impostos durante o governo Bolsonaro. Destaque-se que existem dois principais instrumentos legais regulamentadores da matéria, com base na Constituição Federal e em protocolos internacionais. O primeiro é a Lei nº 12.527/11, conhecida como Lei de Acesso à Informação (LAI), em cujos termos um decreto de sigilo pode ser admitido como restrição de acesso a dados e informações pessoais de agentes públicos, no propósito de preservar-lhes a intimidade, a vida privada, a honra e/ou a imagem. O segundo é o recente marco regulatório da proteção de dados pessoais concentrado na Lei nº 13.709/2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), cuja vigência começou pouco antes do início da gestão de Jair Bolsonaro, tendo sido esta lei amplamente utilizada nas suas justificativas de sigilo, de acordo com a Transparência Brasil, relatório de 2021.

O Direito à Informação na Constituição Federal, nas Leis de Acesso à Informação e nos Parâmetros da OCDE

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A LAI foi criada no propósito de conferir transparência aos atos praticados pelos órgãos públicos dos poderes executivo, legislativo e judiciário, assim como de tribunais de contas, autarquias, fundações públicas e empresas públicas. Seu objetivo é regulamentar o acesso a documentos oficiais de interesse público, conforme parâmetros previstos na Constituição Federal de 1988, assim, é possível concluir que o artigo 31 da LAI, que dispõe sobre o tratamento das informações pessoais para preservar a intimidade e a vida privada de agentes públicos, constitui exceção à regra de publicidade dos atos praticados por esses agentes. 

Por sua vez, a LGPD surgiu no contexto de avanço massivo do meio digital e do uso de novas tecnologias, com larga aplicação pela Administração Pública brasileira, principalmente no que tange à manutenção organizacional transparente, impessoal e em consonância com os preceitos constitucionais de gestão pública – de igual modo, pela LGPD, o controle do acesso a dados privados dá-se para evitar excessos danosos às pessoas que exercem o múnus público.

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No caso do governo Bolsonaro, o recurso reiterado ao sigilo de cem anos sobre informações relativas à agenda pública de visitas presidenciais, gastos em cartão corporativo, saúde do presidente no auge da pandemia de covid-19, entre outros temas, foram artifícios utilizados para ocultar informações públicas. Desse modo, um levantamento realizado pelo Transparência Brasil, de 2022, constatou uso indevido do art. 31, §1º, inciso I, da LAI, para negar informações de interesse público, em quantitativo expressivamente maior do que o ocorrido nas gestões anteriores (foram 513 negativas, desde 2015, sendo 413 casos de uso indevido do art. 31 da LAI para negativas apenas nos últimos quatro anos) fato que caracteriza grave incumprimento do princípio da publicidade e evidente má-fé, ao tornar sigilosos dados públicos, sem motivação relevante, apenas para obstaculizar o acesso público à informação devida. 

Nesse contexto, além da má aplicação da LGPD e da LAI e da afronta ao direito constitucional de acesso à informação, previsto no ordenamento jurídico brasileiro pelos arts. 5º inciso XXXIII; art. 37, § 3º, inciso II; e art. 216, § 2º da Constituição Federal de 1988 – que, por sua vez, se desdobra nos princípios da publicidade e da transparência – cabe mencionar que os atos sigilosos do governo Bolsonaro afrontam um pacto internacional de governança aberta do qual o Brasil é fundador e signatário, desde 2011. Trata-se da Parceria internacional para Governo Aberto (OGP, do inglês Open Government Partnership), proposta pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que incita à adoção de práticas governamentais mediante aplicação dos princípios de transparência, acesso à informação pública e participação social. 

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Esclareça-se que o Brasil não é membro da OCDE, mas participa de vários comitês e postulou seu ingresso na Organização em abril de 2017. Com Bolsonaro, em janeiro de 2022, foi enviada uma carta ao secretário-geral da Organização, Mathias Cormann, na qual o então mandatário afirmou que o Brasil estaria “finalmente” alinhado às práticas da entidade, com ênfase nas questões ambientais e nos valores da liberdade individual e da democracia

Pelo visto e considerados os atos antidemocráticos recentes, parece que não era bem assim.

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Segundo a OCDE, o Governo Aberto teria como objetivo aumentar a confiança dos cidadãos nos governos, promovendo entre eles a colaboração e o acesso à informação. O conceito ainda inclui as práticas de compartilhamento de dados e o uso de tecnologias inovadoras, para tornar os serviços públicos acessíveis e eficientes. A proposta tem sido diretamente associada ao incremento de melhorias na responsabilização dos governos, com redução da corrupção e aumento da responsabilização dos líderes políticos. 

Ressalte-se, por oportuno, a existência de críticas que pesam sobre as boas práticas e as boas intenções da OCDE que envolvem até mesmo denúncias de espionagem internacional sobre outros países e o chamado lawfare, uso do direito para perseguir lideranças políticas progressistas. Mas isto seria outro assunto, por ora, cabe não esquecer que essa Organização acompanha a atuação de setores estratégicos dos países, como as estatais, por exemplo, prevalentes em serviços públicos e indústrias de infraestrutura (energia e petróleo, transportes e telecomunicações, entre outras), e esse desempenho contribui para a definição, pela OCDE, dos parâmetros de eficiência econômica e competitividade geral do país. 

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O fato é que a OCDE monitora a implementação de ações do chamado Governo Aberto. Assim, guia os países membros a adotarem as tais melhores práticas pelo incremento de linhas orientadoras e ferramentas para mensurar os resultados, por meio de relatórios individualizados, restando possível identificar, pela avaliação da OCDE, onde houve evolução ou não das práticas do Governo Aberto, para cada participante da iniciativa. 

Seria muito interessante saber o que a OCDE pensa dos sigilos de cem anos do presidente anterior. Porque, recorde-se, boa parte da campanha presidencial de Jair Bolsonaro, especialmente a de 2018, foi pautada no discurso do combate à corrupção, de fim da “velha política” e de utilização de parâmetros técnicos para decisões governamentais. Esses temas estão imbricados com as noções de transparência pública e governo aberto, opostas aos decretos de sigilo expedidos durante o mandato.

 

Plano de ação para o governo aberto durante o governo Bolsonaro: falsas metas e contradições

 A relação entre a gestão do ex-presidente Bolsonaro e o governo aberto começa antes mesmo de sua eleição e posse, tendo em vista que o 4º Plano de Ação Brasileiro foi elaborado no ano de 2018, para execução até o ano de 2021, quando foi atualizado pelo 5º Plano de Ação Brasileiro. Este documento contou com o planejamento parcial da equipe designada pelo então chefe de executivo. Em linhas gerais, um programa como esse deve se pautar pelos postulados de publicidade, responsabilidade, participação cidadã e eficiência dos serviços públicos, além de abranger medidas como: estabelecimento de padrões de governo aberto para a divulgação de informações; fortalecimento da cidadania; prudência na utilização dos recursos públicos; utilização de tecnologias de informação para facilitar acesso à informação e ao conhecimento; incentivo à inovação para aprimorar os serviços públicos.

O plano foi instaurado a partir da definição de suas temáticas, com a participação do Comitê Interministerial de Governo Aberto (CIGA), instituído, no âmbito do Poder Executivo federal, pelo Decreto nº 10.160/2019, responsável, entre outras iniciativas, por orientar a implementação e elaboração dos Planos de Ação do Brasil. Outra participação importante veio com o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil, composto por representantes de diferentes segmentos ou representações sociais. 

Após debates, reuniões e oficinas, o 5º Plano de Ação foi lançado com foco nos seguintes temas: cadeias agropecuárias e dados abertos; meio ambiente, florestas e dados abertos; combate à corrupção no setor público; maus tratos a animais e governo aberto; direitos humanos e dados abertos; transparência de imóveis públicos federais; ciência de dados para vigilância sanitária; transparência em ciência: novos mecanismos de avaliação para o avanço da ciência aberta; controle social da dívida ativa; governo aberto no licenciamento ambiental federal – LAF; participação social para melhoria dos dados eleitorais abertos; e acessibilidade para participação no legislativo.

Esse Plano de Ação considerou que a falta de informações e/ou dados disponibilizados de forma completa e acessível dificulta o exercício do controle social, interno e externo, especialmente no caso do combate à corrupção, podendo haver desvio de recursos, abuso de poder, conflito de interesses e outras formas de corrupção. As informações devem, em tese, incluir detalhes sobre contratos, licitações, leis e regulamentos, projetos, orçamentos, gastos e receitas públicas, declarações de patrimônio e conflitos de interesses. 

Com relação ao governo Bolsonaro, tudo não passou, como se diz no Nordeste, de conversa fiada, areia nos olhos. O primeiro estudo realizado pela organização Transparência Brasil que indicou falta de transparência na gestão Bolsonaro ocorreu em junho de 2020, durante a pandemia de Covid 19, atestando que a análise de dados do portal e-SIC, do Governo Federal, mostrava aumento inexplicável no uso de justificativas controversas para negar atendimento a pedidos de informações, em números superiores às gestões anteriores.

São estes, em suma, os resultados da análise:

O governo Bolsonaro apresenta a menor proporção de acessos concedidos sobre o total de respostas aos pedidos: 65%, contra 73% de acessos concedidos durante o governo Temer e 71% no final do governo Dilma.

A proporção de acessos negados sobre o total de respostas aos pedidos aumentou no governo Bolsonaro: foram 7%, comparados aos 6% registrados nos oito anos dos governos Dilma e Temer.

Sete dos nove termos controversos analisados em negativas de acesso tiveram seus picos de crescimento durante o governo Bolsonaro: trabalho adicional, fishing, desproporcional, desarrazoado, pedido genérico, dados sigilosos, dados pessoais.

 O encaminhamento de pedidos via e-SIC à Ouvidoria (e-Ouv) se tornou recorrente e cresceu rapidamente nos últimos meses. 

 No mesmo sentido, chama atenção a Nota Técnica produzida pelo Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, composto por mais de 20 entidades da sociedade civil, meios de comunicação e grupos de pesquisa científica, sobre falhas na divulgação de dados relativos à Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) causada pela pandemia de Covid-19. Nos termos do documento, foram identificados ao menos sete pontos centrais de comprometimento da transparência pública sobre a pandemia de janeiro a novembro de 2020 – apesar de a Lei 13.979/2020 reconhecer a informação como ferramenta crucial para as medidas para enfrentamento da emergência e determinar que o Ministério da Saúde mantivesse dados públicos e atualizados sobre os casos de Covid-19 no país.

Posteriormente, em novembro de 2021, o levantamento “LAI 10 anos: atendimento a pedidos no governo federal” constatou que os anos de 2019 e 2020 se igualaram ao segundo maior índice de negativas a pedidos de informação desde maio de 2012, quando a LAI entrou em vigor. A partir de 2013, o GSI respondeu negativamente a mais da metade dos pedidos que recebeu, com destaque para o primeiro ano do governo Bolsonaro, quando 75% das respostas foram negativas.

Foi igualmente feito um levantamento segundo a LGPD, qual seja “LGPD: reforço a negativas de acesso a informações”, finalizado em dezembro de 2021. Esse estudo verificou que as respostas do governo federal apontavam a LGPD como argumento para negativas de acesso a informações, como, por exemplo, não constar menção à lei no pedido, assim, o número de respostas classificadas como “acesso negado”, sob a justificativa de que os pedidos não mencionavam a LGPD como “assunto” e nem a citavam em seu conteúdo, saltou de 19, em 2019, quando apareceram pela primeira vez, antes mesmo de a LGPD entrar em vigor, para 178 em 2021.

A conjugação desses blocos de dados (LAI e LGPD) culminou no estudo completo intitulado "Sigilo de 100 anos": o uso do art. 31 da LAI para negar informações”. Ficou constatado que, entre mais de 1,3 mil negativas a pedidos de informação que mencionavam o argumento da proteção de dados pessoais, no período de 2015 a 2022, o governo Bolsonaro foi o maior em quantidades de negativas com base no art. 31, § 1º, inciso I da LAI. Nos termos do documento, o GSI concentra as negativas indevidas na gestão Bolsonaro, tendo negado acesso até mesmo a documentos desclassificados, ou seja, cujo sigilo já caducou, sob dois argumentos: “presença de dados pessoais” e “existência de um sigilo específico para informações de atividades de inteligência”. 

Parece escárnio. O estudo mostra que entre os dez órgãos que apresentaram os maiores números de negativas com base nessa resposta, de fevereiro de 2019 a outubro de 2021, os campeões são GSI e o Ministério da Saúde (em época de pandemia!).

De acordo com esse estudo, restou evidente, nos casos analisados, que a manutenção de sigilo total sobre os documentos solicitados foi absolutamente inadequada e muitas vezes ilegal. Um exemplo disso foi o sigilo de cem anos para evitar que o Exército punisse o General Pazzuelo que, na ativa, participou de ato político no Rio de Janeiro. É possível inferir que, além de não empreender ações de transparência, não havendo menção a qualquer trabalho, oficina ou debate que questione os atos executados pelo governo Bolsonaro, o governo, na verdade, fragilizou a lei, usando-a como manobra para implementar o seu inverso.

Durante a campanha, o candidato vitorioso prometeu um "revogaço" nos sigilos, o que foi efetivamente feito, agora, a sociedade brasileira aguarda o resultado para conhecer as manobras que lhe retiraram o direito fundamental à informação ao tempo em que revelarão os bastidores indecentes do governo anterior.

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