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Carmen Garcez

Formada em História (USP), é doutoranda na UDESC. Pesquisa a relação entre Estado e a pesca artesanal em Florianópolis.

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“Sobrou pra mim o bagaço da laranja”. Estado ampliado, ideologia e consciência em 2 minutos e 57 segundos

Jovelina Farias Belfort trabalhou muitos anos como empregada doméstica e vendedora ambulante de linguiça. Na infância, vivida entre as rodas de samba suburbanas cariocas nos fundos de quintal, sonhava um dia ser cantora. Foi na década de 1980 que passou a integrar a escola de samba Império Serrano, em Madureira, onde desfilava na ala das baianas e ganhou o nome artístico de Jovelina Pérola Negra.

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Jovelina Farias Belfort trabalhou muitos anos como empregada doméstica e vendedora ambulante de linguiça. Na infância, vivida entre as rodas de samba suburbanas cariocas nos fundos de quintal, sonhava um dia ser cantora. Foi na década de 1980 que passou a integrar a escola de samba Império Serrano, em Madureira, onde desfilava na ala das baianas e ganhou o nome artístico de Jovelina Pérola Negra. Era também compositora e debutou no mercado fonográfico aos 40 anos de idade, quando interpretou “Bagaço da laranja”, uma parceria com Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho, e “Feirinha da Pavuna”, de sua autoria. Chegou a gravar diversos discos, mas a carreira musical foi interrompida em 1998 quando morreu devido a um infarto, aos 54 anos. De acordo com informações do site Catraca Livre, a artista tinha uma obra bastante singular em que misturava composições alegres e jocosas, festejando a boemia e fazendo críticas à realidade política e social do país. Eu nunca tinha ouvido falar de Jovelina até este ano de 2021, quando a sambista foi mencionada em um podcast do canal Revolushow, um projeto de vertente socialista que semanalmente veicula pela internet bate-papos com personagens e militantes de esquerda. Para o episódio As encruzilhadas da crise e da pandemia, de 2 de junho de 2020, a equipe do programa convidou o jurista e filósofo Alysson Leandro Mascaro para uma conversa sobre a atual situação de crise no Brasil, institucional e sanitária. O longo papo, uma rica reflexão sociológica e filosófica de 2 horas e 20 minutos de duração, teve mais de 60 mil downloads individuais e mais de 120 mil plays (até o final de 2020), tornando-se um “clássico instantâneo” tamanha a sua repercussão. Esses números são informados na apresentação do livro que os criadores do canal decidiram publicar com a íntegra da entrevista. A mesma apresentação, escrita pelo podcaster João Carvalho, revela ainda que a menção de Mascaro a Jovelina foi capaz de elevar “como nunca dantes na história desta nação” as buscas realizadas na internet pela música “Bagaço da laranja”.

Mas, afinal, o que foi dito da cantora e sua música, e por quê? Qualquer fato ou fenômeno social sobre o qual refletimos precisa ser colocado em seu contexto. Por isso, caminhemos sem pressa.

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Logo no início da entrevista com Mascaro, um dos participantes levantou a questão de como tem se discutido hoje no país que estamos vivendo um cenário muito mais próximo de 1964 do que a realidade da suposta Constituição Cidadã de 1988. E isso mesmo depois de as estruturas dominantes terem sido, de alguma forma, permeadas por setores mais à esquerda – mesmo que de uma esquerda capitalista liberal. Raciocinando então numa perspectiva de longa duração, ou até de média duração, como analisar a atual crise brasileira? Estaríamos simplesmente vivendo a crise de um modelo, o neoliberalismo, ou uma crise estrutural do próprio sistema capitalista? Com o advento da pandemia no início de 2020, como pensar uma crise dentro de outra crise? Que relações poderíamos estabelecer entre a crise do capitalismo e a Covid-19?

O entrevistado nos adverte, então, sobre a importância das teorias sociais para se entender o mundo em que vivemos. Como bom cientista marxista, é com as categorias dessa ciência que ele nos leva, ao longo de toda a conversa, a uma análise da sociedade relacionando política, Estado, economia e direito a partir do átomo do capitalismo, a mercadoria – que se desdobra na forma-valor e segue numa dinâmica de valorização do valor, que conduz à acumulação. Para Mascaro, a pandemia, portanto, não veio “estragar o paraíso da sociedade capitalista contemporânea”, ela já era, por si, uma desgraça.

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Esse caminho metodológico permite uma compreensão dos acontecimentos mais recentes ocorridos no Brasil, como o golpe de 2016 contra a presidência de Dilma Rousseff, a ascensão do bolsonarismo e um de seus corolários, a política irresponsável e mercantilista que tem marcado o comportamento do Estado brasileiro na condução da pandemia. Mais ainda, pode explicar uma outra questão que tem me inquietado e indignado nos últimos quatro anos, como, certamente, também a um grande número de moradores deste país: por que diabos uma população que vem sendo tão maltratada e enganada não se rebela? Como é possível, depois de tanto desemprego, tantas mortes (pela pandemia, pela violência policial, pela fome...) não haver sequer um mínimo indício de insurgência? 

Em O 18 de brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx desenvolve, no calor dos acontecimentos, uma análise do golpe de Estado que o sobrinho de Napoleão desferiu na França em 2 de dezembro de 1851. Considerando o exemplo francês, ele aponta o papel da luta de classes como força motriz da história e revela o caráter limitado e contraditório da democracia burguesa, argumentando que todas as revoluções burguesas não fizeram mais que assumir o antigo aparato estatal e o aperfeiçoaram para oprimir as classes espoliadas. Marcuse, em texto que entrou como prólogo em uma edição brasileira do 18 de brumário, registra que, ao escrutinar o processo de evolução da Revolução de 1848 em direção ao domínio autoritário de Luís Bonaparte, Marx antecipa a dinâmica da sociedade burguesa tardia: a liquidação do seu período liberal, consumada em razão da sua própria estrutura. Ou seja, a república parlamentarista teria se transformado num aparato político-militar encabeçado por um “grosseiro sublime”, uma “superstição calculada”, um “anacronismo genial-idiota” (termos usados por Marx na Nova Gazeta Renana ainda em 1850 para se referir a Luís Bonaparte) que tira das mãos da burguesia as decisões que ela não consegue mais tomar e executar por força própria. Há uma derrocada do movimento socialista, quando então o proletariado sairia momentaneamente de cena – e a Europa ainda não conhecia o horror do fascismo, como nos lembra ainda Marcuse. Cabe acrescentar que o sobrinho e herdeiro de Napoleão tinha sido o primeiro presidente francês eleito por voto direto, mas, impedido de concorrer a um segundo mandato pela Constituição, organizou o golpe em 1851 e assumiu o trono como imperador no ano seguinte. Como explicar que uma burguesia que havia deposto a monarquia após a chamada Primavera dos Povos tenha consentido a instauração do Segundo Império por Luís Bonaparte? Diante dessa questão, recordo o primeiro parágrafo do 18 de brumário, em que Marx faz referência a Hegel ter comentado que todos os grandes fatos e personagens da história mundial são encenados duas vezes, mas se esqueceu de acrescentar que a primeira vez é como tragédia, a segunda como farsa. No entanto, como se pôde ver no processo francês, o resultado não foi nada farsesco. Marx constata que, mesmo que a queda da república parlamentar contivesse o germe do triunfo da revolução proletária, Bonaparte derrotou o Parlamento e a França apenas escapou do despotismo de uma classe para cair sob o despotismo de um indivíduo, mais exatamente sob a autoridade de um indivíduo sem autoridade. A luta foi conciliada de tal modo que todas as classes ficaram de joelhos diante da “culatra do fuzil, igualmente impotentes e caladas”. Entende-se por que, nesse estudo sobre o golpe à nação francesa, o Mouro (conforme as filhas de Marx o chamavam) propõe pela primeira vez a tese de que o proletariado não deve tomar o Estado, mas sim desmantelá-lo.

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A analogia entre o Brasil atual e a França do século XIX não ocorre por acaso. Se o povo francês teve de suportar um “escroque” no governo – para aludir a outra metonímia utilizada para denominar Luís Bonaparte, desta vez consagrada pela voz de José Paulo Netto –, os brasileiros agora têm de engolir goela abaixo um outro escroque, um ge-no-ci-da que foi colocado na presidência da república porque a burguesia neoliberal (nacional e internacional) não estava mais suportando um Brasil dirigido por segmentos da esquerda – mesmo que uma esquerda capitalista liberal, blá-blá-blá... Ou seja, se por um lado Marx reconhece que há teleologia no processo histórico, e que a luta de classes é o motor da história em direção ao socialismo, ele sabe também que os homens não fazem a sua história como querem. Ao menos uma massiva parte dos homens.

A forma política estatal

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Tomando como eixo de análise o próprio capitalismo e como ele engendra as sociabilidades, e as reproduz, como orienta a teoria marxista aplicada por Alysson Mascaro, continuo minhas considerações para entender a demonstração de apatia de meus compatriotas. Por que estamos suportando, por tanto tempo, um Estado racista, homofóbico, fascistoide e miliciano com Jair Bolsonaro no comando, tanto quanto em um passado não muito remoto suportamos uma ditadura militar por mais de vinte anos? Há uma linha temporal que permanece, um modelo histórico que se repete?

Mascaro sustenta que o Estado deve ser entendido como a forma política característica do modo de produção capitalista, fundado no seio das explorações, das dominações e das crises da reprodução do capital, ou seja, como uma derivação da forma-valor. Apoiado em Karl Marx, Antonio Gramsci, Nicos Poulantzas, Louis Althusser, Evgeni Pachukanis e Joachim Hirsch, no livro Estado e forma política o autor elabora um constructo teórico para a compreensão da totalidade social a partir da dinâmica das próprias formas sociais – tanto no que diz respeito à sua derivação como no que tange à relação entre elas, à medida que uma forma conforma a outra.

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As formas emanam das relações sociais, e às diferentes interações sociais correspondem também formas sociais específicas, que são sempre mutáveis historicamente. É a generalização das trocas no capitalismo que constitui uma forma econômica correspondente, a forma-mercadoria – que, posteriormente, configura a totalidade das relações sociais, como o dinheiro, a mensuração do trabalho, a propriedade e o mais-valor, o sujeito de direito e a política. Desse modo, a forma-mercadoria é constituinte da realidade capitalista e constituída pelas interações sociais que estão na base dessa mesma realidade.

Embora houvesse política antes do capitalismo, o poder político e o poder econômico nas sociedades escravagistas e feudais eram quase sempre indistintos, não havia a forma política estatal. Foi no capitalismo que, pela primeira vez, o político se apartou do econômico. No modo de produção escravista, a eventual relação entre os senhores gerava uma ação política de arranjos instáveis, como no caso dos egípcios, em que havia um mando mais centralizado, de um grande senhor, ou no caso das sociedades gregas e romanas, mais pulverizadas, em que era preciso uma interação política maior. De todo modo, nesses povos não se identifica o poder, ou mesmo a administração compartilhada ou comum aos senhores, como uma forma terceira, apartada da relação entre senhores e escravos, independente e acima de suas vontades. 

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Na Idade Média europeia, a coincidência entre os poderes político e econômico é explícita. Os senhores feudais concentram os poderes sociais de tal modo que pouco resta a outras formas de mediação ou imposição social. Embora a Igreja tenha papel forte nesse período, não concorre com o poder econômico-político feudal, pois o poder clerical se dá com a concordância dos senhores em submeter partes de seu domínio ao arbítrio e regulação da Igreja. Ao funcionar ideologicamente em favor das relações feudais, o aparato religioso ocorre mais como uma região da vida social generalizada e tradicionalmente concedida pelos poderes feudais à Igreja do que como força automotriz.

É na Idade Moderna que se encontra o germe da forma política atual, como uma fase de transição, decisiva para a consolidação do poder político estatal capitalista. Embora ainda não se apresentassem todas as estruturas da reprodução econômica capitalista, já existe uma classe burguesa, um intenso circuito de troca de mercadorias, mas a política absolutista respalda privilégios estamentais e ainda se acha atrelada à Igreja. Dá-se nessa fase um processo contraditório e conflituoso que consolida instituições e padrões de poder a partir de movimentações sociais e de classes, não necessariamente funcionais ou intencionais, que culminará nas revoluções burguesas – a partir das quais será sepultada definitivamente a concentração pessoal dos poderes na figura do rei e se instaurarão os aparatos que tornam o Estado um terceiro necessário perante os indivíduos e as classes. 

Portanto, historicamente, o Estado precede a forma política estatal, cujas bases está na assunção do sistema geral de trabalho assalariado. Se é ao longo da Idade Moderna que se alteram as relações de produção, a formação dos Estados nacionais se inicia ainda em fins da Idade Média e é apenas na Idade Contemporânea que o Estado se torna plenamente terceiro. Por esse motivo Mascaro diz que a instalação da forma política estatal deve ser analisada como um processo, assim como a consolidação da forma-mercadoria e da reprodução capitalista. As unidades estatais se estabelecem sobre a fragmentação das relações feudais, e a forma política definitiva, que dá identidade ao Estado como instância separada dos indivíduos e das classes, surge com as revoluções burguesas. Mais intensamente ao longo da Idade Moderna, tanto o econômico interfere e reelabora o político e o jurídico quanto se dá o contrário. A constituição do circuito geral de trocas, até se chegar ao trabalho realmente abstrato, consolida a implantação de formas políticas e jurídicas, as quais, por sua vez, constituem e reforçam as próprias relações econômicas capitalistas.

Numa crítica aos que enxergam continuidade entre os antigos sistemas de mando político e o Estado atual, Mascaro argumenta que o específico do Estado, em termos históricos, não está na originalidade de aparatos, instituições ou funções, mas da sua forma. O que poderia haver de parecido entre os aparatos políticos antigos e o Estado capitalista é, eventualmente, apenas a aparelhagem. Muitos assemelham os funcionários dos senhores de escravos e feudais e os funcionários dos reis à burocracia do Estado atual, ou as masmorras do passado ao sistema prisional de hoje. No entanto, a posição estrutural de tal aparato e de suas instituições se dá de modo distinto à do Estado contemporâneo. 

Nas sociedades escravagistas e feudais, o aparato existe como extensão ocasional ou meramente funcional da administração direta do senhorio. Na atualidade, o aparato existe por uma necessidade estrutural do sistema de trocas. E a reprodução social necessita, estruturalmente, da forma política apartada dos agentes privados da produção. Pois a forma-mercadoria está tecida em relações que são lastros tanto ao capitalista como ao trabalhador assalariado, explorado. Por isso o Estado se apresenta para todos – todos, para a exploração, são constituídos e tornados iguais para as trocas e, por extensão, também para a penetração de suas vontades no plano formal do Estado.

Se em muitos aspectos existe uma continuidade, uma vez que o Estado moderno se apoia em algumas instituições já estabelecidas, reconfigurando-as, a sua articulação estrutural é radicalmente distinta, pois sua forma e sua estrutura resultam da reprodução da totalidade social: do valor, da mercadoria, do capital e do trabalho assalariado. Daí o autor dizer, insisto, que o aparato moderno é “Estado sobre todos”. Nas sociedades escravagistas e feudais, em que não há separação entre a exploração econômica e o poder político, ambos nas mãos dos senhores, as formas políticas são a extensão burocrática do soberano ou, então, a articulação funcional dos senhores – portanto, menos Estado e mais clube de encontro das vontades senhoriais. Já a forma política estatal, a despeito de eventuais instituições ou nomenclaturas comuns, será sempre específica do capitalismo.

O Estado ampliado

Ainda seguindo as pegadas de Mascaro, argumento que o Estado, como o elemento terceiro do tripé Estado-capital-trabalho, não se sustenta sozinho. Ele se encontra intimamente ligado ao todo social de duas maneiras: por ser um garante da reprodução do capital – à medida que a exploração do trabalho e a troca de mercadorias entre indivíduos se fazem estruturalmente pelo Estado, e não suplementarmente – e, também, por viabilizar a reprodução da sociedade capitalista ao se aglutinar a diversas instituições sociais e com estas formar um aparato repressivo e de constituição ideológica. É essa conexão entre Estado e instituições sociais que permite compreender a política contemporânea, no tecido social capitalista, como um Estado ampliado. 

Tanto na noção de hegemonia proposta por Gramsci, como na de aparelhos ideológicos de Estado formulada por Althusser, o Estado é expandido para além do núcleo governamental-administrativo pelo qual é tradicionalmente identificado. O domínio político de uma classe, assim como sua prevalência na exploração econômica, não se efetivam apenas com a repressão estatal, mas principalmente pela “vivificação ideológica”, por toda a sociedade, de seus valores, de sua inteligibilidade operacional e sua forma de reprodução social. Não se trata de algo imposto por uma classe sobre outra, mas que ocorre pela própria dinâmica das classes em antagonismo, que reserva ao Estado o papel de criar condições para garantir as relações de produção, tanto no nível da infraestrutura como na constituição ideológica.

São considerados aparelhos ideológicos núcleos de sociabilidade como a escola e a família, além das religiões, sindicatos, meios de comunicação de massa e sistemas culturais valorativos. Enquanto o sistema educacional prepara, separa e direciona os indivíduos para seus papéis na divisão social do trabalho, alimentando a separação de classes, a família dá sustentação às mínimas condições de existência do trabalhador. Mas todos os aparelhos, agindo em amplas regiões do todo social, são responsáveis pela produção e reprodução social.

Todos os aparelhos que atuam no plano ideológico, constituindo subjetividades e relações sociais, agem também em menor grau no plano repressivo, com as sanções sociais, morais e religiosas. Mas eles se estabelecem em conjunto com outros aparelhos estatais notoriamente repressivos e que são também, em nível menor, ideológicos – como as forças armadas e das polícias. Nas sociedades capitalistas, a separação do poder político ante as classes econômicas possibilita ao Estado praticamente controlar os aparelhos repressivos. Os aparelhos ideológicos, por sua vez, tanto perpassam o Estado – naquele núcleo pelo qual é identificado tradicional e juridicamente – como se espalham por regiões do plano político não imediatamente estatais. No entanto, como são redes sociais que corroboram para permitir a reprodução social geral e a do Estado em específico, e por este são parcialmente controlados, tais aparelhos são tidos como aparelhos ideológicos de Estado, no sentido dado por Althusser.

A disputa por hegemonia é uma possibilidade estratégica política no interior do Estado ampliado. No entanto, se o poder estatal é constantemente apropriado por classes específicas por meio da posse dos cargos, de mandatos e do controle de suas instituições jurídicas, os aparelhos ideológicos, por sua vez, por serem mais amplos que o núcleo de poder estatal (governo e administração), e dada sua concretude material no corpo das relações sociais, podem ensejar práticas distintas e mesmo contrárias às que operam a partir do controle do núcleo central do Estado. Ou seja, justamente porque o Estado não é apenas um núcleo repressivo, sua materialidade em aparelhos também ideológicos possibilita contraideologias a partir desse mesmo espaço estatal ampliado. 

É por isso que Althusser diz que nenhuma classe pode deter o poder de Estado de maneira durável sem exercer ao mesmo tempo sua hegemonia sobre e nos aparelhos ideológicos de Estado. Porque os aparelhos ideológicos de Estado podem ser tanto o alvo como o local da luta de classes. Uma classe que assume o poder, ou uma aliança de classes, não domina com facilidade os aparelhos ideológicos e simultaneamente os aparelhos repressivos, não apenas porque as antigas classes dominantes podem conservar neles posições muito fortes, por muito tempo, mas também porque as classes exploradas podem achar meios e oportunidades de se exprimir neles ou utilizando as contradições existentes nos aparelhos ideológicos de Estado, ou conquistando posição de combate em seu interior.

Por fim, Mascaro sublinha que só se deve separar o Estado das instituições que formam um Estado ampliado quando se trata de uma descrição teórica. É somente na tradição de um saber jurídico que o Estado é tomado de modo restrito (governo, administração burocrática, força militar, poder normativo etc.) e separado das instituições sociais que lhe são íntimas (educação, meios de comunicação de massa etc.) – estas muitas vezes compreendidas como entes privados ou “sociedade civil”, tomada aqui em oposição ao Estado. Mas, também, o Estado ampliado não é mera soma de entes autorreferentes, pois a ligação do núcleo político do Estado com seus aparelhos amplos é dinâmica, com peculiaridades históricas e contradições estruturais. É por razões estruturais que o Estado é ampliado: ao controlar regiões do todo social, o Estado garante, em primeiro lugar, sua própria existência; em segundo, a própria reprodução do capitalismo no qual se assenta existencialmente.

E aqui acredito que chegamos bem perto de responder a uma parte das minhas tantas perguntas. Se a penetração das ideologias dominantes é tão determinante a ponto de obscurecer as consciências, se as ideologias têm tanta força para impregnar subjetividades e sedimentar o consentimento, está claro que a batalha deve se dar no nível das ideias, como formulou Althusser. Admitir que uma ordem social negue calor, alimento e abrigo a seus membros, como referiu Terry Eagleton em seu Ideologia: uma introdução, ou que um psicopata (mais uma metonímia!) se recuse a fornecer vacina a uma população em risco, depois de mais de 4 mil mortes diárias por Covid-19 e mais de 340 mil desde o início da pandemia, não é, absolutamente, nada natural. Se uma teoria social ou uma teoria da ideologia pode ter valor, este é o do esclarecimento sobre as formas de luta política possíveis para uma libertação de ideias tão letais – infelizmente tão naturalizadas entre os bolsomínions, os faria limers e outros defensores da sociedade de classes, do neoliberalismo e da privatização dos serviços públicos, como a educação e a saúde, além dos atributos ambientais que garantem a vida aos seres humanos.

Dito isso, falta ainda responder à minha primeira indagação: afinal, por que Alysson Mascaro citou a artista carioca na entrevista que deu ao Revolushow?

Jovelina e a teoria social marxista

A alusão feita a Jovelina Pérola Negra e as poucas informações que obtive ao garimpar na internet sobre sua biografia serviram de inspiração para este ensaio. No bate-papo publicizado via podcast, Mascaro se referia à superioridade da filosofia marxista, sobre outras, para o entendimentos das sociedades humanas. Citou Heidegger, Hanna Arendt, Foucault, Nietzsche, Carl Schmitt e disse que Bezerra da Silva, um sambista do morro do Rio de Janeiro, nunca havia lido nenhum desses filósofos para saber que entre uma arma na mão e a Constituição, o que vale é a arma. Pessoas como Bezerra da Silva, para Mascaro, têm muito mais sabedoria política e social do que muitas que entram na faculdade e aprendem que as instituições e as lei – eu acrescentaria aqui as políticas públicas – salvam o mundo.

Ele também trouxe o exemplo de Jovelina e sua música “Bagaço da laranja”, que denotam muita sapiência ao dizer a seus ouvintes o que se reserva ao pobre num mundo em que o capital é quem faz a determinação social. A afirmação bastou para fazer bombar as buscas na internet pelo pagode de Jovelina e Zeca Pagodinho. Se ela estivesse viva, talvez tivesse podido aproveitar seus direitos autorais. Não sei se o Zeca aproveitou.

O que Mascaro quis demonstrar, como ele mesmo diz, é que o campo intelectual é tão importante quanto a prática. Nenhum marxista é só praxista. Neste ponto, faço um parêntese para prestar uma franca homenagem a Marx, pela solidez e profundidade de seu pensamento. Essa figura grandiosa, que tantas vezes penhorou o casaco com que enfrentava o frio londrino para poder continuar escrevendo, deixou um legado extraordinário para a ciência social. E, claro, agradeço a Mascaro por me mostrar as trilhas que me permitem encontrar respostas à minha inquieta indignação.

Tomei conhecimento de que Jovelina Pérola Negra nasceu em julho de 1944. Na época, o planeta aguardava ansioso pelo final do conflito que os livros de história sacramentaram como a Segunda Grande Guerra, ou a Segunda Guerra Mundial. Por uma ironia da história, ou graças a uma bem planejada estratégia do exército soviético, a Batalha de Berlim, ocorrida entre abril e maio de 1945, pôs fim ao nazismo e presenteou o mundo com o suicídio de Adolf Hitler, em 30 de abril daquele ano, e o suicídio de Joseph Goebbels no 2 de maio seguinte. A Alemanha se renderia definitivamente aos aliados em 8 de maio.

Os soviéticos tiveram de 20 mil a 25 mil mortos na futura capital da Alemanha unificada e 81 mil mortos ao longo da operação inteira. Mais de 450 mil alemães foram mortos, feridos ou desaparecidos, incluindo civis. O Brasil hoje está chegando perto desses últimos números em mortes devido à pandemia. O que me faz pensar de novo no prólogo de Marcuse, originalmente escrito como epílogo para a edição alemã do 18 de brumário publicada em 1965, portanto apenas duas décadas depois que a humanidade havia se livrado dos horrores do fascismo e do nazismo. Em seu texto, esse filósofo judeu alemão, associado à Escola de Frankfurt, “corrige” Marx e propõe uma alteração nas frases introdutórias de Marx: “os fatos e personagens da história mundial que ocorrem, por assim dizer, duas vezes, na segunda vez não ocorrem mais como farsa. Ou melhor: a farsa é mais terrível do que a tragédia à qual ela segue”.Penso também na frase com que Mauro Iasi encerrou sua fala numa live já nestes tempos pandêmicos, em 2020, durante a semana de aniversário de Marx: “O irracionalismo é a forma de manifestação da ideologia do capital em crise”.
Em tempo: transcrevo a seguir a letra da música de Jovelina, para os mais curiosos. Trata-se de uma demonstração, em 2 minutos e 57 segundos, da aplicação de uma competente teoria social marxista.

BAGAÇO DA LARANJA

Fala, minha comadre, Jovelina

Vamo lembrar aquele tempo

Que a gente andava lá pela Dagmar da Fonseca

Só se for agora, né, Zeca!

Fui no pagode, acabou a comida

Acabou a bebida e acabou a canja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

É que eu fui no pagode, acabou a comida

Acabou a bebida e acabou a canja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Me disseram que no céu

A mulher do anjo é anja

Eu falei pra você, sobrou pra mim

O bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Vou engomar meu vestido

Todo enfeitado de franja

Eu falei pra você, sobrou pra mim

O bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Fui no pagode, acabou a comida

Acabou a bebida e acabou a canja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Eu te dou muito dinheiro e tudo você esbanja

Eu já disse a você, sobrou pra mim

O bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Olha lá, seu coronel

O soldado quer peixe e canja

O que sobrou pra mim

O bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Toma cuidado, pretinha, que a polícia já te manja

Eu já disse a você, sobrou pra mim

O bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Não lhe dou mais um tostão

Vê se você se arranja

Eu falei pra você, sobrou pra mim

O bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Só caroço de azeitona que veio na minha canja

Eu já disse a você, sobrou pra mim

O bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Vou vender minha fazenda

Vou vender a minha granja

Eu falei pra você, sobrou pra mim

O bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Você sempre foi solteira, um marido não arranja

Eu já disse a você, sobrou pra mim

O bagaço da laranja

É, sobrou pra mim o bagaço da laranja

Fui no pagode, acabou a comida

Acabou a bebida e acabou a canja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Sobrou pra mim (Esse é o partido alto)

O bagaço da laranja

Fui no pagode (É só pra quem sabe)

Acabou a comida

Acabou a bebida e acabou a canja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Fui no pagode, acabou a comida

Acabou a bebida e acabou a canja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

Sobrou pra mim o bagaço da laranja

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