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Othoniel Pinheiro Neto

Doutor em Direito pela UFBA, Defensor Público do Estado de Alagoas e Professor de Direito Constitucional

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Tribunais Constitucionais sempre foram um pesadelo para governantes autocratas

Diante dessa escalada autoritária no Brasil, o papel obrigatório dos democratas é encontrar meios para proteger a força e a independência do Poder Judiciário, especialmente do Supremo Tribunal Federal, para que esses se firmem como barreiras ao autoritarismo do atual ocupante da cadeira presidencial

Manifestação em Brasília (Foto: Reprodução/Twitter/George Marques)
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O Estado Absolutista foi um fenômeno predominante na Europa entre os séculos XVI e XVIII, quando ainda não estavam consolidadas a separação dos poderes, a supremacia da lei e as próprias constituições modernas como forma de limitação do poder. O Rei Luís XIV (1638-1715) personificou bem essa época, sendo a ele atribuída a famosa frase “O Estado sou Eu”, representando a absoluta concentração dos poderes em sua pessoa. 

Com o descontentamento crescente da centralização de poderes na figura do Rei, a Revolução Francesa vai surgir como fruto de uma combinação de diversos fatores de origem social, econômica, política e filosófica, cujo objetivo central foi derrotar o absolutismo para estabelecer barreiras às pretensões autoritárias dos governantes, por meio de uma Constituição que obrigatoriamente estabelecesse a separação dos poderes e a lei como baliza para atuação estatal, daí o princípio constitucional da legalidade administrativa: a Administração Pública só poderá fazer o que a lei autoriza

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Na história da humanidade, governantes autoritários tiveram enormes dificuldades de conviver com o modelo de separação dos poderes, sempre procurando aparelhar ou aniquilar um dos poderes que não se curvasse as suas vontades, trazendo para si mesmo a personificação da vontade popular. 

No Brasil de 2021, percebe-se que o atual ocupante da cadeira de Presidente da República apresenta-se, não somente como o autêntico representante da vontade popular, mas também como uma espécie de mensageiro do divino por meio de sua célebre frase “Deus acima de tudo”. Não é à toa que, por mais de uma vez, ele afirmou que acima da Constituição Federal está a vontade popular, cuja personificação, por óbvio, está em sua própria pessoa. 

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Guardadas as devidas proporções e fazendo justiça científica que o caso requer, as atitudes e declarações de Jair Bolsonaro fazem lembrar a concepção política de constituição elaborada pelo jurista alemão Carl Schmitt (1888 – 1985), que foi o primeiro a elaborar sistematicamente uma teoria da constituição. Para Schmitt, a constituição é a decisão! 

Conhecido por suas ligações com o nazismo, o que lhe rendeu a acunha de “o jurista maldito”, Schmitt publicou sua famosa e importante obra “Teoria da Constituição” em 1928, sistematizando preceitos de doutrina constitucional de forma nunca antes vista na história do direito[1]. A obra de Schmitt aborda assuntos como poder constituinte (como vontade política), legitimidade da constituição, princípios do Estado burguês de direito, elementos políticos da constituição moderna e, especialmente, o conceito de constituição como decisão política, desprezando o viés da normatividade constitucional construído pelo judeu e jurista Hans Kelsen.

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Na esteira dos pensamentos de Carl Schmitt, sem a decisão, a norma não passará de abstração. Assim, a constituição vale pela vontade política de quem possuir poder para institui-la.

Ao contrário do normativismo de Kelsen, o decisionismo de Schmitt nega autonomia científica ao direito, atribuindo-lhe profunda ligação com a política. Essa perspectiva de Schmitt mostra que o poder soberano é exercido e orientado por parte de uma ordem superior e sobreposta à ordem jurídica, ou seja, por um sujeito ou sujeitos com poderes para decidir sobre a norma ou sobre o estado de exceção que possa suspender sua aplicação.

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Em verdade, Carl Schmitt foi apelidado de jurista maldito porque alguns vislumbraram em seus pensamentos justificativas para a legitimação do nazismo, especialmente para o poder político de Adolf Hitler, uma vez que a vontade expressada na decisão política do ditador seria a própria constituição. 

Mas é importante consignar que esse poder político mencionado por Carl Schmitt refere-se ao povo na democracia e ao monarca na monarquia autêntica. Portanto, ao contrário do que dizem, não se pode, de maneira alguma, afirmar que sua obra apoiou o totalitarismo, uma vez que o autor, por diversas vezes, enfatiza a necessidade de eleições democráticas, proclamando que o povo sempre está antes e acima da constituição. Todavia, é justamente aí onde pode morar o perigo, pois a constituição não pode ser vista como algo sempre inferior ao povo, pois esse pode estar contaminado com pretensões de aniquilação das minorias em momentos de instabilidade ou pode ser usado como massa de manobra por ditadores. E o que dizer de autocratas que, distante da realidade, julgam-se detentores da vontade popular?

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Nesse prisma, acusações de que os pensamentos de Schmitt possam ter dado respaldo ao estabelecimento de regimes totalitários podem ter decorrido da própria fundamentação da constituição como decisão política. Assim, a crítica a ser feita à perspectiva decisionista pode residir no fato dela subestimar a normatividade constitucional, que fica esvaziada diante da força decisiva do poder político. Em verdade, não se pode deixar a supremacia da constituição e seu caráter vinculatório sempre subordinados a uma decisão política de maiorias ocasionais ou daquele que detenha o poder, sob pena de esgotarmos, por completo, os valores constitucionais e as próprias cláusulas pétreas. 

É justamente por esse caminho, ou seja, subordinação da constituição ao poder decisivo da política, que Jair Bolsonaro pode encontrar respaldo para suas pretensões autoritárias de interpretação do art. 142 da Constituição Federal no sentido de dar a ele, como autoridade suprema das Forças Armadas, o poder de palavra final para interpretar e avaliar quando o Supremo Tribunal Federal viola ou não a Constituição. Assim, caso Bolsonaro julgue que o Supremo Tribunal Federal descumpriu a nossa Carta Magna, acionaria as Forças Armadas para forçar a Corte a “voltar aos trilhos”, tese defendida publicamente por alguns juristas e jornalistas conhecidos. Não é sem razão que, beirando a insanidade, Bolsonaro proclama aos quatro cantos que nas mãos das Forças Armadas está o “poder moderador”.

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Lembremos também que, em maio de 2020, em um ato pró-golpe militar, Bolsonaro declarou abertamente: “Eu sou a Constituição”.

É claro que Bolsonaro está bem longe de representar a vontade da maioria da população brasileira, mas o seu poder de persuasão sobre as forças policiais e militares no Brasil é uma situação preocupante, que exige atenção redobrada das instituições fiscalizadoras, que possuem grande responsabilidade neste momento delicado de nossa história para a preservação da normatividade da Constituição.

É salutar lembrar que o desprezo pela normatividade constitucional e pela separação dos poderes trouxeram consequências trágicas com a Segunda Guerra Mundial, situação que, logo em seguida, exigiu da civilização Ocidental uma maior atenção à força normativa da Constituição e aos direitos fundamentais, fazendo surgir o que todos nós conhecemos por neoconstitucionalismo.

É justamente com o neoconstitucionalismo que se passou a conceder um maior valor às normas constitucionais e, principalmente, um fortalecimento dos Tribunais Constitucionais como equalizador das tensões entre o direito e a política, fazendo um importante papel de guardiões das constituições como forma de assegurar a democracia, diminuir as tensões sociais e preservar os direitos das minorias frente a vontades autoritárias das maiorias.

Diante desse quadro, todo governante com pretensão de instaurar ditadura sempre vai enxergar nos Tribunais Constitucionais uma barreira em seus objetivos totalitários e absolutistas, razão pela qual sempre tentará cooptá-los ou destruí-los. É justamente essa a leitura de Dieter Grimm, que aponta que “a jurisdição constitucional é, antes, uma aquisição tardia que, além do mais, continua sempre em perigo, porque os detentores do poder podem, em particular, sentir como extremamente impeditiva a existência de tal instituição, mesmo se, no geral, a aprovarem e, por isso, sempre cairão novamente na tentação de influenciar a instituição ou suas decisões em seu favor ou passar por cima delas[2]”.

No caso de Jair Bolsonaro, para tentar desviar o foco dos fracassos em várias áreas de seu governo e preocupado com a derrota nas eleições de 2022, observamos uma sequência crescente de ataques às instituições democráticas com um discurso público de golpe de Estado, convocação de manifestações contra a democracia e cooptação das forças militares em favor de seu projeto autoritário.

E diante dessa escalada autoritária no Brasil, o papel obrigatório dos democratas é encontrar meios para proteger a força e a independência do Poder Judiciário, especialmente do Supremo Tribunal Federal, para que esses se firmem como barreiras ao autoritarismo do atual ocupante da cadeira presidencial.

[1] SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitución, trad. Francisco Ayala. Madird: Alianza, 1996. [2] GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Tradução: Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del rey, 2006, p. 169.

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