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Pedro Simonard

Antropólogo, documentarista, professor universitário e pesquisador

92 artigos

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Uma sociedade de milicianos fundamentalistas cristãos

Os milicianos fundamentalistas cristãos estão derrotando as esquerdas e os liberais na disputa por corações e mentes. Não importa que o conteúdo de suas postagens em redes sociais, vídeos, artigos, memes seja composto por mentiras, distorções, difamações; como atingem dezenas de milhões de cidadãos diariamente com informações variadas

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Um povo que oprime outros não pode ser livre, já escreveram Marx e Engels. O mesmo podemos dizer de classes ou grupos sociais que oprimem outros. Milton Santos atualizou esta assertiva quando afirmou que existem apenas duas classes sociais, as do que não comem e as dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem. Faltou completar que aqueles que não dormem controlam os meios de produção e a disputa ideológica e as utilizam para justificar a acumulação de riqueza em suas mãos. Graças a isto conseguem cooptar parcela significativa dos que não comem para os projetos de dominação social que criam mais exclusão entre estes últimos. 

O retrato atual da sociedade brasileira nesta crise causada pelo Covid-19 expõe as realidades expressas por estas afirmações de uma maneira cristalina. Reportagem recente publicada no Brasil 247 mostra que o Covid-19 infecta mais os ricos e mata mais os pobres, infecta mais os que comem e mata mais os que não comem em São Paulo. Apesar disso, assistimos trabalhadores formais e precarizados defendendo o retorno ao trabalho o que, em última instância, interessa muito mais aos patrões e aos ricos e coloca em risco a vida dos trabalhadores. Alguns defendem esta proposta devido às ameaças diretas dos seus empregadores como faz, por exemplo, Luciano Hang – aquele que deve 168 milhões de reais à Receita Federal, mas comprou um avião por 250 milhões – que ameaçou demitir 22 mil trabalhadores; outros precisam sair da quarentena por absoluta e total impossibilidade de ficar em casa porque precisam trabalhar para ter dinheiro para comprar comida. 

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O Brasil está se transformando em uma sociedade de milicianos fundamentalistas cristãos (a presença de fundamentalistas cristãos é significativa entre os milicianos) onde vale tudo, desde que se mantenha a roda do capitalismo funcionando. Tudo é justificado por meio da violência associada ao um discurso religioso oportunista. Deus vai assegurar a saúde dos fiéis que poderão voltar a trabalhar, mas se a fé não for suficiente para incentivar o trabalhador a retomar suas atividades, milicianos se encarregarão de enviar recado para que todo o comércio volte a funcionar em nome de Jesus! Nesta conjuntura, a violenta minoria miliciana e fundamentalista sente-se à vontade para ameaçar, coagir e manipular uma parte dos trabalhadores brasileiros e da classe média. Mesmo sendo minoria alcançam seus objetivos devido a estratégias discursivas associadas a estruturas de ajuda mútua muito eficientes que criam a ilusão de que são mais numerosos do que de fato são.

Os milicianos fundamentalistas cristãos estão derrotando as esquerdas e os liberais na disputa por corações e mentes. Não importa que o conteúdo de suas postagens em redes sociais, vídeos, artigos, memes seja composto por mentiras, distorções, difamações; como atingem dezenas de milhões de cidadãos diariamente com informações variadas, a veracidade dos fatos não interessa. Faz parte da estratégia inundar o público alvo de conteúdo distorcido para que este não tenha tempo de averiguar a autenticidade do que é difundido. Aprenderam direitinho com Göbbels e as mentiras insistentemente repetidas se tornam verdades imediatas.

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É preciso manter seu público alienado pelo excesso de informações para que ele não se dê conta dos conteúdos absurdos e o rejeite. Como resultado desta campanha massiva de desinformação, mentiras e distorções o ódio se dissemina pela sociedade. Patrões raivosos ou fingindo sabedoria conclamam trabalhadores a voltarem ao trabalho, organizam manifestações onde dançam zombando do Covid-19, fazem buzinaço em frente aos hospitais onde pessoas morrem graças ao vírus, apoiam o retorno dos militares ao poder, sonham com golpes de Estado, clamam pelo AI-5, agridem passantes desavisados. 

Durkheim diria que estamos vivendo em uma conjuntura de completa anomia, onde predomina a ausência de regras. Alguns podem tudo – ameaçar a democracia, reivindicar um Estado de exceção, agredir, mentir, distorcer – outros podem muito pouco. A anomia é respaldada pelas instituições que deveriam assegurar a ordem. A Procuradoria Geral da República, o STF e a presidência do Senado e da Câmara soltam notas de repúdio, sem colocarem em prática nenhuma medida mais efetiva. No domingo 19 de abril, Dia do Índio, o presidente da República participou de manifestações cujas pautas eram o fechamento do Congresso, a instalação de uma ditadura militar e o retorno do AI-5. Na segunda-feira dia 20 o PGR, Augusto Aras, solicitou ao STF abertura de inquérito para investigar os atos contra a democracia, averiguar se deles participaram deputados federais e quem financiou esta balbúrdia. Agora as instituições acordaram! Não é bem assim, porque o pedido feito pelo PGR inclui um elemento sutil que livra do processo aquele a quem deve sua nomeação. O inquérito solicita a investigação de quem organizou os atos. Dessa forma, Jair Bolsonaro não será investigado porque ele não organizou ato nenhum, “apenas” participou e foi o orador principal do ato localizado mais próximo de sua casa.

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Davi Alcolumbre, presidente do Senado, e Rodrigo Maia, presidente da Câmara, manifestaram-se suavemente contra esta quebra de decoro, crime de responsabilidade, mais um, cometidos por Bolsonaro. Enquanto isso, Bolsonaro vai manipulando a todos com seu jogo de morde assopra e se um dia vai à manifestação contra o Congresso, o STF e pela defesa do AI-5, no dia seguinte afirma que é democrata, que defende estas instituições, que o Congresso e o STF estão funcionando dentro da normalidade e desempenhando suas funções. O Brasil está se transformando em uma república na qual um bom pedido de desculpas resolve qualquer problema, se você faz parte do esquema, talkey? Moro divulga gravações ilegais, o STF o ameaça e ele resolve tudo pedindo desculpas; o Onix Lorenzoni confessa caixa 2 e é perdoado ao pedir desculpas; Bolsonaro utiliza esta estratégia a todo momento. 

O velho Durkheim deve estar se revirando em seu túmulo. Também, quem mandou não ter percebido que o conceito de anomia é um conceito que parte de um princípio moral, metafísico e que, graças a isso, não consegue explicar os fenômenos sociais corretamente? Anomia é a falta de regras ou uma conjuntura na qual estas não conseguem mais organizar as relações sociais, mas existem regras em uma sociedade anômica como a brasileira contemporânea. A milícia impõe regras, os fundamentalistas e os bolsonaristas também e é só perguntar às ovelhas de uma igreja pentecostal, aos moradores de comunidades dominadas pelas milícias e àqueles que caem em desgraça com os bolsanoristas que eles saberão explicar muito bem que regras eles têm que seguir para serem bem aceitos nestes grupos.

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Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista foram direto ao assunto ao definirem o Estado como um comitê que gera os negócios da burguesia. O que esta exige é que o Estado facilite ao máximo a exploração de mais-valia, a reprodução do capital. Logo, não há anomia porque não há regras, leis certas ou erradas nesta situação. Há a necessidade de manter as margens de lucro com o menor entreveiro possível. Se para isso for necessário mudar as regras, elas serão mudadas e aquilo que era ilícito, estranho, moralmente condenado transforma-se em lícito, normal e moralmente aceito. 

Bolsonaro é o gestor incompetente dos interesses daqueles segmentos da burguesia que lhe dão suporte político e econômico que são os títeres do capital estrangeiro, o capital financeiro, o agronegócio e os grandes grupos de atacado e varejo. Para cumprir aquilo para o qual foi eleito ele propõe mudanças de regra para favorecer quem lhe dá suporte. Não há anomia nisso porque, como já mostraram Marx e Engels, quem controla os meios de produção dá as cartas. O problema é que Bolsonaro não consegue manter um mínimo de civilidade com os outros participantes deste projeto de acumulação de capital e entra em choque com o Judiciário e com o Legislativo, dificultando a implementação das políticas de interesse da burguesia imperialista e das classes dominantes brasileira. A continuar esta perspectiva ele sabe que pode ser descartado e ficar como coringa em jogo de pôquer, ou seja, sem função alguma.

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Para tentar se manter no poder, o capitão ativa sua tropa de choque miliciana fundamentalista e a envia para ocupar as ruas, motivando-a com a ameaça de empobrecimento se as atividades econômicas não forem retomadas logo. Desta maneira Bolsonaro ameaça os poderes que lhe impõem dificuldades com multidões que fazem da ignorância e do ódio se modo de agir.

O que vemos nestas manifestações é o desespero da pequena burguesia que acha que faz parte da burguesia, mas não tem capital para superar a crise do Covid-19 sem sobressaltos nem possui poder e influência suficientes para ter acesso à fabulosa quantidade de dinheiro que o governo libera para quem o controla. Excluída do banquete na parte de cima, a pequena burguesia fica na porta lutando para não perder sua condição de classe e disputando as migalhas que lhes são lançadas pelos privilegiados, enquanto for do interesse destes. Sabendo que brigar com a classe dominante é impossível, o pequeno-burguês busca aumentar a exploração sobre trabalhador, fazendo-o trabalhar para manter seu negócio e, por extensão, sua posição de classe. Buscando manter seu emprego e poder sobreviver, resta ao trabalhador arriscar sua vida, a de seus familiares e daqueles com quem desafortunadamente têm que dividir o transporte público.

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Nestas manifestações autoritárias não são vistos banqueiros e grandes empresários indo às ruas defender a reabertura dos seus negócios. São micro e pequenos empresários e profissionais liberais que manifestam publicamente sua revolta movidos pelo pânico de perderem sua condição de classe e juntarem-se àqueles que tanto exploram, àqueles a quem odeiam porque lhes lembram, cotidianamente, o quão frágil é sua posição de classe. 

A classe dominante assiste a tudo de camarote, em suas piscinas, tomando whisky, lamentando o fato de não poder viajar para Nova York, Paris, Londres ou outro local de sua preferência porque o Covid-19 transformou seus destinos favoritos em grandes matadouros em série. Se precisar de um “qualquer”, Bolsonaro prontamente abrirá os cofres e despejará um montão de dinheiro em seus negócios, mesmo que para isto precise mudar leis e regras ou, simplesmente, passar por cima de todas elas. Tá tudo dominado!

No que concerne à norma jurídica formal, há uma interessante discussão no filme Julgamento em Nuremberg (Judgment at Nuremberg), produção hollywoodiana lançada em 1961. A história do filme é o julgamento de altos funcionários do judiciário nazista por crimes contra a humanidade. O réu principal, que presidiu a alta corte alemã durante o regime nazista, é acusado de ter condenado à morte judeus, comunistas, ciganos e outros grupos sociais. Em sua defesa ele alega inocência, afirmando que tudo o que ele fez estava dentro da lei. E estava mesmo porque a constituição do III Reich legalizou e regularizou a “democracia para o povo dos senhores” (Herrenvolk democracy) que excluiu da participação democrática os grupos politicamente minoritários e ainda tornou legais práticas genocidas. Tudo foi feito dentro da lei. 

No Brasil, a precarização do trabalho, o corte nos programas sociais, o fim da Previdência para quem está entrando agora no mercado de trabalho e outras medidas que atentam contra os direitos dos trabalhadores cumpriram todos os ritos previstos na estrutura do Estado de direito e estão todas dentro da lei. Como o Estado é o gerente da burguesia, as leis são feitas para assegurar que a acumulação do capital ocorra da melhor maneira possível. O povo só é necessário para respaldar e legitimar as leis e instituições que atuam contra ele próprio. 

As milícias fundamentalistas cristãs desempenham papel importante na conjuntura atual brasileira. Elas são responsáveis pelo controle das grandes massas proletárias e do lumpemproletariado nacional, formando, elas mesmas, uma lumpem burguesia  dependente dos favores da burguesia brasileira (ou seria melhor falarmos de uma sub-burguesia ou burguesia dependente ou, apenas, classes dominantes, já que se alimentam das sobras do banquete da burguesia imperialista). Esta lumpem burguesia luta pelo afago das classes dominantes e se submetem, de maneira servil, a fazer todo o trabalho sujo para os controladores do Estado. São descartáveis; quando necessário descarta-se um Adriano Nóbrega, um Gustavo Bebiano.

As manifestações pró-ditadura, o falso debate quarentena versus crescimento econômico, já abordado em coluna anterior (Bem-vindos à luta de classes https://www.brasil247.com/blog/bem-vindos-a-luta-de-classes), é o momento em que estas milícias ganham protagonismo e desviam as atenções dos fatos fundamentais que assegurarão o aumento da concentração do capital por meio do aumento da mais-valia absoluta, via precarização do trabalho. Enquanto isso, Executivo e Legislativo - sim, contra o povo eles esquecem suas diferenças trabalham juntos - aprovam medidas impopulares sem que seja feita sua devida discussão por toda a sociedade brasileira.

As milícias fundamentalistas cristãs estão se multiplicando e continuarão a crescer enquanto for do interesse das classes dominantes brasileiras. 

O Brasil corre sério risco de transformar-se em uma república miliciano-fundamentalista-cristã.

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