CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
André Del Negri avatar

André Del Negri

Constitucionalista, professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).

50 artigos

blog

Não se é presidente impunemente

Um presidente da República não pode se comportar como um anônimo numa conversa de botequim. Ele exerce uma função pública e ocupa um lugar demarcado pelo Direito. O mandatário que não compreende isso, dificilmente poderá ser útil à comunidade democrática, escreve o professor André del Negri

Presidente Jair Bolsonaro coloca máscara durante entrevista coletiva sobre coronavírus no Palácio do Planalto (Foto: REUTERS/Adriano Machado)
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

O escritor José J. Veiga em “A Hora dos Ruminantes”, livro de 1966, mostrou ao mundo o fantasioso como representação da estranheza da realidade. Em sua narração, uma cidadezinha fictícia tem a sua rotina abalada com a chegada de um misterioso grupo de forasteiros que começam a estabelecer mudanças, também e sobretudo, a gerar confusões e mal-entendidos, e, pouco a pouco, a pequena povoação fica marcada pela hostilidade de um grupo sobre o outro.

A certa altura do livro há um relato de um recatado narrador a respeito de pessoas que falam demais e deveriam falar de menos. Quanto ao aludido trecho, convém anotar: “a fala de cada um devia ser dada em metros quando ele nasce. Assim quem falasse à toa ia desperdiçando metragem, um belo dia abria a boca e só saía vento”. Passo ao presidente Bolsonaro. E aí cabe uma pergunta: o presidente fala, muito? Vamos ver. Nesses mais de 450 dias de governo foi possível observar um chefe de Estado sem nenhum preparo para lidar com a fatalidade da população ante a pandemia de coronavírus. Não bastasse isso, em meados de março, fez piada, mesmo havendo tantas vidas em jogo. Chegou a classificar a pandemia como uma “gripezinha” e suposições de “histeria” e “muita fantasia” da “grande mídia”. Foi abraçar sua freguesia fanática, provocando aglomeração em meio aos esforços dos órgãos de saúde no combate à Covid-19. Criticou o fechamento de escolas. Ao minimizar o coronavírus, disse que brasileiro mergulha em esgoto e não acontece nada (aqui). Comportando-se assim, lembra até as condições práticas da “necropolítica”, conceito do filósofo camaronês Achille Mbembe, a respeito de como governos contemporâneos decidem quem vive e quem morre.E olhem que nesses mais de 14 meses de governo foi possível ver mais estultices, cenário em que a imprensa foi [é] atacada dia sim, outro também. Algumas acometidas foram feitas aos risos, sempre na frente de bajuladores, que gargalham com cada estupidez presidencial. De se rememorar uma entrevista a poucos dias do Natal de 2019, às portas do Palácio da Alvorada. Indagado por um jornalista se tinha o comprovante do empréstimo de R$ 40 mil que diz ter feito a Queiroz, o presidente vociferou: “Oh rapaz, pergunta para a tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai, tá certo?” (sic!). A vandalização aumentou ao responder a outra pergunta, esta sobre a investigação que alcançou um de seus filhos, Flávio, instante da “entrevista” que disparou mais insultos: “Você tem uma cara de homossexual terrível, nem por isso eu te acuso de ser homossexual. Se bem que não é crime ser homossexual” (ver a íntegra do vídeo aqui). Quando nada pior parecia possível, a barbárie reverberou ao ofender a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha, com um ataque de conotação sexual (chula!), acerca do jargão jornalístico “dar o furo” (aqui). O ataque asqueroso do chefe de Estado à repórter provocou uma demanda quanto a exigência de decoro que está inscrita em lei de número 1.079, de 1950, art. 9º, notadamente o item 7 (aqui).

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

É um paradoxo que o homem que ocupa o posto mais importante do país – com contas a prestar ao povo – apresente dificuldades para resolver questões de democracia, posto que há sempre um elemento de arbitrariedade latente em seus atos. Toda vez que algum jornalista, cujo trabalho é fiscalizar e fazer perguntas, toca em tema de relevância para tratar ou lhe pede explicações, o presidente responde com bananas de braço ou ataca com expressões chulas o jornalista que apenas narra o problema. Típico de Bolsonaro fazer o gênero “bocudo”, como se diz na linguagem comum. Quer dizer: não mede as palavras para atrair o respaldo dos vários nichos em que se apoia a sua popularidade

Vamos recuperar outros episódios. Ano passado, já presidente, Bolsonaro falou que poderia “contar a verdade” sobre como o pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, desapareceu no período da ditadura (aqui). Nessa formulação sádica, atacou também o pai de Michelle Bachelet, morto sob a ditadura de Pinochet. Mais: defendeu golpe no Chile e disse que Bachelet – alta comissária da ONU para direitos humanos – defende “direitos de vagabundos” (sic!) (aqui). 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Abra-se um parêntese: a análise das marcas discursivas serve como um diagnóstico para inferir os valores básicos de um governo e seus projetos políticos. Veja-se que o objetivo deste texto é vocalizar reflexões acadêmicas, estimular a consciência crítica (desacordos teóricos e institucionais), tudo a partir de questionamentos acerca de alguns pontos da gestão pública apresentada pelos inquilinos do Palácio do Planalto.

E aí, retornamos ao início: o presidente Bolsonaro fala, muito? Tudo indica que sim. Algumas falas são incongruentes, porque, digamos, puro delírio. Exemplo disso é o episódio de que os médicos cubanos eram agentes subversivos infiltrados no país (aqui), algo que combina com a negação do aquecimento global e com a ideia da Terra plana. Noutras, ao incentivar e participar de ato de manifestantes com cartazes pedindo a volta do AI-5 e o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (aqui e aqui), despreza completamente o que está previsto no inciso II do artigo 85 da Constituição. É pouco? A resposta, obviamente, é “não”. O mandatário prova a sua inadequação ao cargo.É “só força de expressão”, dirá a turma do deixa-disso, pois é “algo natural das democracias”. É? Não se trata de fato normal das democracias coisíssima nenhuma, nem sequer simples declarações polêmicas do mandatário. Bolsonaro não tem apreço pela democracia e vem testando limites. Como foi eleito, se acha no direito de alardear tolices. Para lembrar: democracias podem “morrer”, sim, nas mãos de líderes eleitos, que viram ao avesso as regras vigentes. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Antes de mais nada, comecemos pelo óbvio: que Bolsonaro era fraco para ser presidente nós já sabíamos desde antes da eleição. Nada disso era segredo. Mas, como o “povo” ignorou os riscos, o voto tem consequências. E agora? Bem, um solavanco como esse poderá servir de aprendizado. 

Ocorre que fora da bolha dos militantes (e similares), a repercussão é que Bolsonaro é um chefe de Estado com insuficiente formação em educação humanitária. Sim, é difícil vê-lo sair em defesa de medidas favoráveis às reservas nacionais, indígenas, igualdade de gênero, de raça. E, fiquem certos, que, para o presidente, preocupar-se politicamente com as classes desassistidas é coisa de “esquerdista”. Conduzindo-se dessa maneira, decerto o mandatário segue os ensinamentos de Carl Schmitt, que escreveu “O conceito do político”, livro de 1932, que defendia que a política só existe de maneira verdadeira quando se cria a figura de um inimigo. Assim nasce um desastre.Nota rápida: o que talvez seja mais frustrante é que, se a política é personalizada em amigo vs. inimigo, e a lei passa a ser aplicada na maranha da subjetividade, o Direito – como instância de regular nossos desacordos – corre o risco de ser canibalizado, de perder a sua autonomia, como já alertou Lenio Streck. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

O Brasil não pode ter uma cadeira presidencial transformada em palanque para insultar pessoas, muito menos para pisotear a Constituição. Cabe a um chefe de Estado garantir estabilidade nas relações sociais e não colocar a sua pantomina pessoal no lugar da lei vigente. Se a degradação acontece, o papel da Academia é bater de volta. O ponto é exatamente esse.

A democracia relaciona-se bem com os dissensos. Até aí, bem. Ocorre que a democracia requer responsabilidade, o que pressupõe que um presidente não pode tudo. Não se é presidente impunimente. E, como resta óbvio, há que se observar toda a principiologia e estrutura normativa constitucional, assim como o decoro que a lei exige do exercício da Presidência. Se a legislação define parâmetros, violados os requisitos legais, há, sim, que se falar em punição.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Para encerrar: um presidente da República não pode se comportar como um anônimo numa conversa de botequim. Ele exerce uma função pública e ocupa um lugar demarcado pelo Direito. O mandatário que não compreende isso, dificilmente poderá ser útil à comunidade democrática. Não há dúvida de que é necessário que se registrem todas as falas imprudentes, gesticulações contra opositores, ofensas e diálogos de ódio que ocorrem atualmente, em frente ao Palácio da Alvorada, porque contarão a história de um país para as futuras gerações de brasileiros.

André Del Negri tem pós-doutorado em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), sob a supervisão do Prof. Lenio Streck. É doutor pela PUC Minas – com Bolsa CAPES – e mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Foi professor visitante na Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais. Atualmente é professor efetivo na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS). É autor, entre outros livros, de “Discricionariedade e autoritarismo” (2019), “Direito Constitucional e Teoria da Constituição” (5ª ed., 2019), “O avesso do Estado” (2018) e “Segredo de Estado no Brasil” (2016).

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Referências

ANDREOPOULOS, George; CLAUDE, Richard P. Educação em Direitos Humanos para o século XXI. São Paulo: Edusp, 2015.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
STRECK, Lenio. Hermenêutica e jurisdição: diálogos com Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017.
VEIGA, José J. A hora dos ruminantes. São Paulo: Difel, 1988. 

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Carregando os comentários...
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Cortes 247

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO