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Carlos Eduardo Araújo

Bacharel em Direito, mestre em Teoria do Direito e professor universitário

17 artigos

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A falácia da formação humanística nos concursos da magistratura e Ministério Público

Como é possível um ex-juiz federal, como Sérgio Moro, encimado pela mídia à condição de destemido e heroico paladino da justiça, demonstrar uma grande inépcia intelectual, cometendo erros crassos de português, além de uma visível dificuldade de se expressar, argumentar e desenvolver um discurso coerente e bem articulado?

(Foto: Marcelo Camargo - ABR)
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Como é possível um ex-juiz federal, como Sérgio Moro, encimado pela mídia à condição de destemido e heroico paladino da justiça, demonstrar uma grande inépcia intelectual, cometendo erros crassos de português, além de uma visível dificuldade de se expressar, argumentar e desenvolver um discurso coerente e bem articulado? Essa pergunta se tornou frequente a partir do momento em que o ex-magistrado passou a ser cada vez mais demandado para vocalizar, publicamente, suas ideias e posições, principalmente depois que assumiu o Ministério da Justiça do governo Bolsonaro. No Roda Viva, programa da TV Cultura, exibido no dia 20 de janeiro deste ano, ficou patente, por mais uma vez, sua enorme limitação intelectual e sua colossal desfaçatez diante de fatos que põem em dúvida sua conduta jurídica e moral. 

Ao trocar o judiciário pelo executivo, Sérgio Moro, num lance inusitado, mas previsível, deixou clara sua falta de isenção e imparcialidade, suas filiações políticas e ideológicas, seus preconceitos e sua aversão ao ex-presidente Lula e ao Partido dos Trabalhadores, hoje explicitadas pelas mensagens trocadas, via Telegram, com seus parceiros da Lava Jato e reveladas pelo The Intercept Brasil. Ao afastar Lula do caminho presidencial, contribuiu, decisivamente, para a vitória,  no pleito eleitoral de 2018, de seu atual chefe.

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Sérgio Moro desempenhou as funções de juiz federal por aproximadamente vinte anos. Dentre os concursos mais almejados, disputados e difíceis, em termos de preparação e aprovação, estão os que se destinam a selecionar os futuros ocupantes das carreiras de Estado, em meio as quais se destacam os certames para a Magistratura e o Ministério Público. 

Quanto à Magistratura, os concursos se subdividem por áreas de atuação dos futuros magistrados. Logo, temos os concursos para a Magistratura do Trabalho, a qual se localiza, em consonância com nossa Constituição Federal, no âmbito da “Justiça Especial”, a exemplo da Justiça Eleitoral e Militar. No campo da denominada “Justiça Comum”, estão localizadas as Justiças Federal e Estadual. Cada qual destas áreas do Poder Judiciário tem autonomia para elaborar seus próprios concursos, à exceção da Justiça Eleitoral, que não dispõe de quadro próprio de juízes. A partir do ano de 2009 o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), através da Resolução n.º 75, passou a estabelecer as diretrizes gerais para a realização de aludidos certames.

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No tocante ao Ministério Público, igualmente, há uma subdivisão entre Ministério Público Estadual e Ministério Público Federal. Como fica claro pelas próprias denominações, o primeiro ligado aos entes estaduais e o segundo à União. De modo semelhante, cada qual dessas áreas do Ministério Público elabora seus próprios concursos, seguindo as diretrizes estabelecidas pelo CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) que, aos 06 de novembro de 2006, editou a Resolução n.º 14, a respeito.

Os mencionados concursos se desdobram em várias etapas, nas quais há provas objetivas, dissertativas e orais. O tempo decorrido entre a abertura dos concursos e a seleção final dos candidatos aprovados leva, aproximadamente, dezoito meses. A preparação para mencionados certames consome, normalmente, três anos da vida dos candidatos, que estudam, em média, cinco horas por dia, todos os dias da semana. Há os que estudam de oito a dez horas diárias.

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Ao longo do processo de redemocratização do Estado brasileiro, a partir da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, a Magistratura e o Ministério Público saíram fortalecidos e prestigiados. Passaram a ter um papel decisivo no caminho para a implementação de um Estado Democrático de Direito. Em função das grandes esperanças de que foram destinatários, assumiram um grande protagonismo na cena pública nacional. Não demorou para que interesses corporativos e individuais fossem sendo gestados e passassem a aflorar com frequência cada vez maior. 

Em 2004, por ocasião das discussões travadas no bojo da “Reforma do Judiciário”, já eram visíveis os sinais do protagonismo que esses órgãos atingiriam. Nas palavras do jurista José Eduardo Faria, um estudioso da magistratura brasileira, “Nunca na História republicana do País, juízes e promotores alcançaram tanta evidência como agora. Graças às prerrogativas concedidas pela Constituição de 1988, as duas corporações estão presentes na vida econômica, influenciando a agenda política. E exercendo enorme protagonismo social, seja ao assegurar a proteção de interesses difusos, seja intervindo em questões relativas à justiça distributiva”. [1]

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Com a criação da TV Justiça, em 2002, os Ministros do STF passaram a ser conhecidos do grande público, sendo cada vez mais solicitados a opinar, sobre os mais diversificados assuntos e convidados para programas televisos, alçados, enfim, ao estrelato. Os egos foram inflados e a natural discrição e anonimato, até então presentes e tradicionais aos membros da Magistratura, foi cedendo, com ênfase cada vez maior, aos holofotes. Aludida situação repetiu-se, equanimemente, por todos os escalões hierárquicos do Poder Judiciário e do Ministério Público. O exemplo vinha de cima. Foi a passagem do juiz que só falava nos autos, para o juiz loquaz, que se deixou enamorar pelo proscênio.

Um divisor de águas na espetacularização da Justiça foi o “Mensalão”, ou seja, a Ação Penal 470, julgada pelo STF em 2012, sendo amplamente divulgada por todos os meios de comunicação da grande mídia, como telejornais, jornais impressos e rádios. As idiossincrasias dos magistrados foram sendo expostas, dia a dia, para o bem e para o mal. Imagens de vilões e super-heróis foram sendo forjadas e confeccionadas pelos meios mediáticos e passaram a povoar o imaginário popular, como se exemplifica pela associação do Ministro Joaquim Barbosa, à época relator do processo do “Mensalão”, ao protetor de Gotham City, Batman. Todavia, como já nos preveniu o personagem tio Ben, do Homem Aranha, “Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. Lição ignorada, ao que parece, pelos senhores magistrados.

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Como constata Rubens Casara: “Assim, não raro, juízes de todo o Brasil passaram a priorizar a hipótese que interessa à mídia ou ao espetáculo em detrimento dos fatos que podem ser reconstruídos por meio do processo. No Brasil, a Ação Penal (AP) 470, conhecida como o caso Mensalão, e o caso Lava Jato (na realidade, um complexo de casos penais) são exemplos paradigmáticos”. [2]

Em 2014, portanto dois anos depois do julgamento da Ação Penal 470, pelo STF, os holofotes foram redirecionados, agora, para a primeira instância, com o surgimento da “Operação Lava Jato”, vendida pela mídia corporativa e golpista como “o maior escândalo de corrupção da história do Brasil”. Era a oportunidade para os integrantes dos escalões inferiores da Magistratura e do Ministério Público colherem seu naco de fama. E, sejamos justos com eles, não se fizeram de rogados, ao contrário, chafurdaram-se no estrelado. Passaram a colher os frutos possíveis e inimagináveis com a exposição pública, desfrutada daí por diante. Coletivas de impressa a farta, a cada “novo episódio” de suas investigações. Aparições reiteradas em telejornais, como paladinos do bem e da moral pública. Exaltados nos principais jornais impressos, como Folha de São Paulo, O Globo e Estadão, como arautos de uma nova era de decoro e denodo na vida política do País. Suas presenças se fizeram em “talk shows”, na Globo News, no Roda Viva etc. Publicação de livros laudatórios, à mão cheia. Palestras, regiamente remuneradas, irrompiam, Brasil afora.

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Assim, como grandes poderes trazem grandes responsabilidades, a grande exposição pública a que se submeteram, além do poder de que passaram a desfrutar, os expôs à luz do dia, trazendo à tona suas deficiências cognitivas, morais e intelectuais, tornando visíveis os pés de barro das elites jurídicas do momento. As máculas que enodoaram togas e becas não se restringiram ao plano moral, por meio de condutas inescrupulosas, mas também colocaram em dúvida o pretenso saber jurídico dos aludidos aprendizes do poder. Ademais, juízes e membros do Ministério Público, sob a alegação de combate à corrupção, a cometiam rotineiramente, subvertendo a ritualística processual, pela qual deveriam zelar, estabelecendo conluios com entre si e com parte da imprensa, interferindo indevidamente na produção de provas, como restou provado pelas revelações do The Intercept Brasil, no escândalo que ficou conhecido como “Vaza Jato”. 

Dentre todas as máculas, morais e intelectuais, expostas pela enorme exposição pública de juízes e membros do MP, vou me ocupar daquela que se relaciona ao título do presente artigo, ou seja, a deficiente formação humanística de magistrados e membros do ministério público, apesar de constar dos editais de recrutamento, das respectivas carreiras, a preocupação com a decantada “formação humanística” de seus futuros integrantes. 

Como deixamos consignado, linhas acima, o ingresso nestas carreiras (magistratura e MP) se faz mediante disputados e difíceis concursos públicos. Todavia, como veremos, a dificuldade, exigida para aprovação nesses certames, está mais relacionada à capacidade de memorização de textos de lei e posições jurisprudenciais, do que a inteligência, a sensibilidade e a argúcia exigidas para lidar com problemas sociais, econômicos e jurídicos complexos. Então, por que cargas d’água vemos juízes e procuradores federais dando, cotidianamente, demonstrações de um assustador despreparo intelectual? Desde maus tratos à língua culta, passando por dificuldades quase incontornáveis de fala e argumentação, até demonstrações de desconhecimento e pouco contato com os saberes humanísticos, como aqueles ligados à Literatura, à Filosofia, à Ciência Política, à Sociologia, à Psicologia e à História? De suas posturas e falas aflora um presuntivo desapreço pela leitura e pelo saber desinteressado, que caracterizam uma desejável formação humanística e intelectual.

Na verdade, nos concursos públicos não se situa a gênese dos problemas apontados, que tem suas origens nos bancos das faculdades de direito. Como atesta Diogo Bacha e Silva: “Nas faculdades de Direito, o ensino é produzido apenas sob o aspecto instrumental. Vale dizer, não há qualquer reflexão crítica sobre os pressupostos e fundamentos do que é ensinado. Interessa apenas o conhecer a letra fria da lei e o entendimento jurisprudencial. A teorização do Direito fica em segundo plano, obra para poucos alunos que se interessam por discussões mais profundas sobre ele. Esse modelo de ensino é o que moldará o profissional da área”. [3]

Há nos cursos jurídicos uma crescente e preocupante simplificação no estudo do direito, como denunciado por Lenio Streck: “Andei pelo shopping e entrei em uma grande livraria. Passei pela filosofia, pela história... e cheguei no direito. Um abismo. É inegável que a maior parte das prateleiras estão lotadas de livros simplificados e simplificadores. Autoajuda jurídica. Clichês jurídicos. Fórmulas para passar em concursos. Estandes repletas de livros feitos para “resolver” os problemas do Direito. [...] Fast food jurídico: eis a solução. A moda. [..] Parece óbvio que estamos diante de uma “Pedagogia da prosperidade.” Sim, é isso que a cultura fast tem vendido aos “fiéis”. A possibilidade de se “aprender” direito sem “estudar direito o Direito”. Fácil. De forma direta. Sem intermediações.”. [4]

A formação intelectual, de uma parte considerável, dos integrantes destas carreiras jurídicas é pífia ou inexistente e mesmo a cultura jurídica é, muitas vezes, sofrível. As personificações destas elites jurídicas, dotadas de graves lacunas na sua formação jurídica e humanística, por sua conspícua mediocridade e incultura, são o ex-juiz Sérgio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol. 

Ao contrário do que imagina o senso comum, os saberes cobrados nos certames da magistratura e do ministério público são limitados, de maneira avassaladora, à dogmática jurídica, herdada dos bancos das academias de direito, formada por um conteúdo um tanto rígido, como textos de leis, códigos e a jurisprudência de tribunais superiores, com STJ e STF. O estudo para estes concursos é, do ponto de vista pedagógico, extremamente limitado, como já aventado, à capacidade de memorização, sem qualquer espaço para a criatividade. Associa-se a tudo isso, a precariedade dos critérios de avaliação, sobretudo no que concerne as provas discursivas, colocando em dúvida sua real capacidade para avaliar a competência dos candidatos para o desempenho de suas futuras e valorosos atividades. 

Segundo Lênio Streck os concursos públicos “repetem o que se diz nos cursinhos, um conjunto de professores produz obras que são indicadas/utilizadas nos cursos preparatórios, que por sua vez servem de guia para elaborar as questões que são feitas por aqueles que são responsáveis pela feitura das provas (terceirizados – indústria que movimenta bilhões e os próprios órgãos da administração pública). [...] Uma questão que ainda não foi levantada e que merece reflexão: É apropriado ou adequado — em termos de “ideal de vida boa” (eudaimonia) — ensinar truques/estratégias para passar em concursos? [...] Queremos juízes, defensores, promotores, etc, que saibam Direito ou que sejam espertos? Queremos expertos ou espertos? Ou alguém vai me convencer que coaching jurídico (ou algo desse jaez) é coisa séria, no sentido de aprimorar o saber?” [5] 

Toda uma engrenagem a serviço da produção e reprodução de um “conjunto de saberes” padronizados, estandardizados e esquematizados que são consumidos em doses homeopáticas para cumprir determinado e limitado fim: alcançar a tão almejada aprovação. Ou o candidato se submete, dócil e subservientemente aos esquemas previamente formatados, ou vai amargar seguidas reprovações. 

Para os que ambicionam ingressar numa carreira no Estado, principalmente as carreiras jurídicas, só resta uma opção: ser “concurseiro”. O que significa se tornar um indivíduo que se restringe a decorar a letra da lei, ter por jurisprudência dominante a do tribunal que está recrutando, concordar com a corrente doutrinária a que pertencem os membros da banca. Por conseguinte, os cursinhos fabricam, sob medida, a mão de obra estandardizada para a demanda do Poder judiciário e do Ministério Público.

Nessa linha, são as considerações de Lênio Streck: “Concurso é um meio; não pode ser um fim em si mesmo. Ah, alguém dirá: o meu cursinho não ensina isso ou desse modo. Ou: eu trabalho a partir de uma metodologia de memorização. Outros dirão, em defesa de “métodos” tipo jiu jitsu, autoajudas, ninjas e correlatos, que se trata tão-somente de uma mera estratégia para passar em concurso, que não é uma pedagogia “em si” e que não visa a ensinar, porque o conteúdo o aluno já deve trazer da faculdade. OK. Muito bem. Eu até aceitaria a explicação, se o ensino nas faculdades não tivesse sido de há muito invadido pela mão invisível desse imaginário resumocrático. A “pedagogia da prosperidade” chegou nas faculdades. De há muito. Esse é o problema. No Brasil, os concursos ganharam vida própria: viraram grandes negócios. Conduzidos pela adamsmithiana mão invisível da concursocracia, passaram a incrementar quis shows que cobram decorebas e espertarias, retroalimentados por uma indústria de livros-apostilhas-resumos e afins. Um círculo vicioso”. [6]

E outro aspecto grave desta concursocracia, hoje reinante na seara jurídica, é que esta mesquinha lógica concurseira está se imiscuindo e deformando o estudo do direito, no interior das faculdades, que, sob pressão, vão se rendendo à essa lógica da pedagogia utilitarista que emana dos concursos e dos cursinhos. As aulas vão sendo ministradas tendo em vista os exames da OAB e os concursos públicos, como já vem denunciando, há décadas, Lenio Streck: “Em conferência no Superior Tribunal de Justiça, sugeri a mudança dos concursos de cima para baixo, forçando, assim, a que as faculdades e os cursinhos se adaptem. Hoje ocorre o contrário. As faculdades e os cursinhos (e a doutrina “fast”) se adaptam àquilo que a prova da OAB e os concursos exigem. Já escrevi mais de uma dezena de artigos com sugestões e críticas a quem elabora as questões de concursos. Parece que esse “modelo” ou “método” de elaboração de concursos contaminou o ensino jurídico, entrando para dentro da sala de aula. E isso forjou uma resistência contra discursos críticos”. [7]

Outra razão que concorre para a manutenção deste status quo é o fato de os concursos públicos estarem sob os cuidados do “establishment” dos tribunais de segunda instância, guardiães de uma tradição conservadora e normativista e, portanto, mais infensos a inovações e mudanças. Os estereótipos são reforçados, como vimos, com a ingerência, cada vez maior e mais “profissional” das empresas de preparação para os concursos. 

Como reconhece o juiz de direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Rubens Casara: “Nas estruturas hierarquizadas das agências que atuam no sistema de justiça, os concursos de seleção e as promoções nas carreiras ficam a cargo dos próprios membros dessas instituições, o que também contribui para a reprodução de valores e práticas comprometidos com o passado. O conservadorismo, porém, acabava disfarçado através do discurso da neutralidade das agências do sistema de justiça. Interpretações carregadas de valores conservadores eram apresentadas como resultado da aplicação neutra do direito”. [8]

A formação amealhada nas faculdades de direito, pelos futuros juízes e procuradores/promotores, conforme Lenio Streck [9], um dos grandes críticos do ensino jurídico na contemporaneidade, continua forjada por manuais e presa às velhas práticas e à cultura alicerçada em casuísmos didáticos. Segundo ele, com a massificação do Direito, construiu-se uma cultura estandardizada, prêt-à-porter. Em vez de a mudança do novo constitucionalismo levar a uma transformação da dogmática, o modelo de ensino não consegue superar a leitura de leis, códigos e decisões que acabam por reproduzir argumentos de autoridade, ao criar no ideário do senso comum dos juristas uma verdadeira normatividade das decisões judiciais.

Os estudos ministrados nas Faculdades de Direito vinculavam o ensino do direito à aplicação lógico-silogística da lei, em uma atitude meramente dedutiva e isolada de qualquer relação com a justiça ou adequação da norma à realidade social. Assim, solidificou-se a tradição da prática jurídica voltada para a aplicação das leis e do ensino jurídico voltado para leitura e análise dos Códigos. É desse ambiente que emergiram os futuros magistrados e membros do MP. 

Em sua obra Hermenêutica jurídica e(m) crise: um explosão hermenêutica da construção do Direito, Lenio Streck chama a atenção para o fato de que o ensino baseado na cultura dos manuais, “muitos de duvidosa cientificidade”, cria o imaginário “que simplifica o Direito a partir da construção de standards e lugares comuns que são repetidos nas salas de graduação, nos cursos preparatórios e reproduzidos nos fóruns e tribunais: “[...] Penso que o povo — que paga altíssimos salários a juízes, membros do MP, defensores, etc. — tem o direito de ter “operadores” bem instruídos” e não agentes reprodutores de dropsjurídicos. [...] Por que é exigido de um professor, em concurso, conhecimento aprofundado e sofisticado e, na hora do concurso para juiz e promotor, cujos salários são o dobro do de um de professor de universidade, devemos exigir apenas um saber mediano, a partir de perguntas que mais exigem estratégias do que sabedoria? Isso não é fazer pouco caso das carreiras jurídicas?” [10] Grifei.

A locução “formação humanística” surgiu como a solução para o enfrentamento de uma propalada crise do ensino jurídico que, desde sempre, vem sendo denunciada, afligindo os estudiosos do tema. No caminho do diagnóstico e do remédio para a aludida crise, vários textos foram escritos e veem sendo discutidos há décadas. Em 1950, o grande civilista e erudito San Tiago Dantas deu seu pitaco sobre o assunto, em texto que ganhou notoriedade. A Ordem dos Advogados do Brasil também empreendeu esforços no intuito de colaborar com o enfrentando do problema, convocando a comunidade acadêmica e profissional para pensar a educação jurídica, realizando seminários por todo Brasil e reunindo os resultados em livros que publicou.

Orientado por essas discussões e estudos, o MEC confeccionou a Portaria 1886/94, promovendo alterações nos currículos das Faculdades de Direito do País. Era a gênese da ideia de “formação humanística” nos cursos de direito, com a inclusão obrigatória, nos currículos dos cursos, de disciplinas formativas. Passados dez anos, em 2004, o MEC deu novos incrementos a essa temática, introduzindo as “diretrizes curriculares Nacionais”, por meio da Resolução CNE/CES 9/2004, que reafirmou a importância da formação humanística. Em seu artigo 3.º diz: “O curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania”. (grifei).

Não obstante, os resultados, no que tange a almejada melhora no ensino-aprendizagem, não se fizeram sentir na efetiva formação dos graduandos das Faculdades de Direito. Horácio Wanderlei Rodrigues, que vem se dedicando a esta temática há mais trinta anos, chega a uma conclusão desalentada: “Com base nos resultados das experiências mais recentes, de 1994 e 2004, afirmo que isso ocorre porque a hipótese de corrigir a educação jurídica através da simples alteração da matriz curricular dos cursos de Direito é equivocada. A introdução, supressão ou alteração de componentes curriculares não são capazes, isoladamente, de solucionar problemas de compreensão e de intervenção na realidade”. E conclui: “É necessário formar sujeitos dotados de autonomia e criatividade, com conhecimento teórico, dogmático e prático, consciência cidadã e ambiental, compromisso ético com os direitos humanos e com o futuro da humanidade, e que dominem as novas tecnologias da informação. Sujeitos preparados para auxiliar na construção de um mundo melhor e mais humano”. [11]

Para desenvolver esse perfil, a Resolução CNE/CES 9/2004 prevê a ampliação de conteúdos humanistas com a inclusão obrigatória no eixo de formação fundamental de estudos de Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia, para assegurar “sólida formação geral, humanística e axiológica”. Promessas por cumprir ainda hoje, lamentavelmente.

O Conselho Nacional de Justiça resolveu aderir à lógica normativa da “formação humanística” por meio da Resolução n.º 75/2009. Mais uma vez se fez presente o vezo, incrustado no imaginário jurídico, segundo o qual é possível mudar a realidade a penadas normativas. Assim, tudo se encaminha para a vala comum dos discursos vazios e inócuos, divorciados da realidade. 

Estatui a mencionada resolução, em seu artigo 47, I, que a primeira prova escrita para as diversas áreas da magistratura será discursiva e consistirá de questões relativas a noções gerais de Direito e formação humanística previstas no Anexo VI, onde estão elencadas as disciplinas: Sociologia do Direito, Psicologia Jurídica, Ética e Estatuto Jurídico da Magistratura Nacional, Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito e da Política.

Daniela Veloso Souza Passos, fez, por anos, um admirável, percuciente e detalhado trabalho de pesquisa sobre os concursos públicos para ingresso nas carreiras da Magistratura Federal e Estadual, desenvolvido no programa de pós-graduação da Universidade de Fortaleza – UNIFOR, no Mestrado (2013) e no Doutorado (2018), com fontes bibliográficas e empíricas, em uma verdadeira e salutar simbiose entre o Direito e a Sociologia. 

Como dirá Daniela Veloso Souza Passos: “Em virtude da atratividade dos salários e da possibilidade de ascensão social, o concurso público tornou-se uma verdadeira arena de disputas que selecionará somente um reduzido número daqueles que forem considerados os “melhores”, o que leva os alunos a começarem o preparo ainda na universidade. Em torno do certame, organizam-se instituições de ensino e cursinhos preparatórios que se especializam cada vez mais na preparação para a realização das provas, com técnicas e dicas que se tornam verdadeiros rituais para o candidato acessar a entrada do campo judicial”. [12]

Daniela Veloso Souza Passos analisou, para sua pesquisa, um farto material, representado pelas provas e editais de concurso para ingresso na magistratura federal e estadual no período entre 2008 e 2017. Segundo ela, os dados coletados revelam, dentre outros aspectos, que o concurso possui uma capacidade limitada de avaliar uma série de elementos que são considerados fundamentais para o futuro magistrado. A situação do Ministério Público, quanto aos concursos, não deve se diferenciar, substancialmente, daquela que resultou dos estudos, aqui referenciados. Assim, aliado ao ensino jurídico que, segundo Daniela, é anacrônico e reproduz o modelo tradicional de transmissão do conhecimento, os concursos, tanto da magistratura como do MP, acabam por selecionar pessoas que, não necessariamente, são “vocacionadas” ou estão aptas ao exercício da função jurisdicional.

Em uma segunda etapa de seu trabalho, Daniela Veloso Souza Passos, analisou-se o perfil formativo dos magistrados brasileiros de primeira instância com jurisdição na justiça estadual e federal, distribuídos em todo o território nacional. Para tanto, foi aplicado um questionário semiaberto, com cinquenta e uma questões. O recorte foi realizado com uma amostra de 1.778 juízes de primeira instância.

Em seu trabalho, meritório e exemplar, Daniela analisou 89 editais, no período compreendido entre 2008 e 2017, dos quais 24 foram dos tribunais Regionais Federais e 74 dos Tribunais de Justiça, o que totalizou 7.406 questões objetivas e discursivas dos Tribunais de Justiça e 2.252 dos Tribunais Regionais Federais. Da detida análise dessas milhares de questões, ela chegou aos seguintes resultados, nas provas da Justiça Estadual, que não difere, em quase nada, dos obtidos da análise de dados da Justiça Federal:

* 91,5%, eram questões de múltipla escolha;

* 1,1%, eram questões de certo ou errado;

* 5%, eram questões discursivas teóricas;

* 0,8% eram questões discursivas práticas;

Quanto a propalada “formação humanística”, ela é cobrada em apenas 0,5% das questões das provas aplicadas pela Justiça Estadual e 0,1% das provas aplicadas pela Justiça Federal. As provas são, maciçamente, concentradas nas disciplinas dogmáticas, das quais são campeãs de audiência, o Direito Civil (11,7%), o Direito Processual Civil (11,4%), o Direito Penal (10,6%), o Direito Processual Penal (10,4%) etc. Os dados das provas aplicadas à Justiça Estadual, acima destacados, são quase idênticos aos da Justiça Federal, também disponibilizados na tese de Daniela Passos.

Ainda, de acordo com a pesquisa de Daniela Veloso Souza Passos, “quando se trata de saber como os conteúdos são avaliados, os dados confirmam um padrão identificado por Passos (2013) e revelam que existe uma frequência considerável de avaliação dos conhecimentos, a partir de uma perspectiva normativa. Segundo a tabela 3, em 98,9% das questões se exige o conhecimento de legislação, na Justiça Estadual, e 99,8% na Justiça Federal. Isso significa que, embora haja uma complexidade na forma como a questão é avaliada, pontuada ou haja ainda variações de conteúdo com questões sobre temas, como reformas agrária, por exemplo, o enunciado da questão evidencia que se exige, na verdade, é o conhecimento normativo da matéria”. [13]

Fica patente e insofismável a falácia em torno do discurso da “formação humanística”. Aqueles poucos juízes e membros do MP que a possuem, certamente, a foram buscar por conta própria, movidos por solicitações internas ou porque foram estimulados a isso no âmbito das suas relações familiares ou sociais. Há, também, aqueles que ingressam nestas carreiras jurídicas como portadores de um capital cultural, amealhado a priori. Como regra, infelizmente, o Judiciário e o Ministério Público são formados por técnicos, que têm pouco apreço à cultura humanística. Raramente leem qualquer texto fora da área jurídica, seja de não ficção e muito menos, ainda, de ficção. Mas sejamos justos, disso não escapa quase nenhuma das carreiras jurídicas, incluindo nesse cômputo a advocacia. Devota-se um irresponsável menoscabo pelas humanidades também em todo o direito, ressalvas honrosas exceções.

Como conclui Daniela Veloso Souza Passos, há um enorme fosso entre a retórica da formação humanística e a realidade que se depreende dos concursos: “Esse dado revela um elemento simbólico importante no tocante à priorização de disciplinas técnicas, em detrimento, por exemplo, de conteúdos categorizados em noções gerais de Direito e Formação Humanística. [...] dentre as competências apontadas como essenciais para os juízes, está a aproximação com questões sociais, postura ética, compreensão da dimensão sociológica do direito. Não obstante, tanto nas provas da Justiça Federal, como da Justiça Estadual, essa área ficou em último lugar em termos quantitativos”. [14]

José Eduardo Faria já denunciava, há mais de vinte anos atrás, que a formação auferida nas faculdades de direito era descontextualizada, unidisciplinar e reducionista, enfim, infensa às realidades social, política, econômica e cultural: “Depois de ter perdido seu papel de transmissor de cultura humanística, a partir dos anos 60, iniciando um longo e doloroso processo de decadência, ele agora está perdendo até mesmo seu papel de transmissor de valores funcionais. Ao deixarem a faculdade de direito, os formandos não têm outra saída a não ser tentar ingressar na pós-graduação ou matricular-se num cursinho preparatório. O que aprenderam em cinco anos de graduação é pouco, não serve para quase nada e, pior, está em total falta de sintonia com a realidade social, econômica e política do País. As faculdades nem mesmo conseguiram acompanhar as próprias mudanças no objeto de seu ensino, o direito positivo. A maioria sequer percebeu que esse direito hoje transcende códigos e leis especiais, envolvendo uma normatividade nova, bastante original e extremamente complexa, dada a tendência de certos setores socioeconômicos à autorregulação e auto resolução de conflitos. A riqueza da experiência jurídica contemporânea passa longe das faculdades de direito”. [15]

Espero que tenham ficado claros, ou ao menos esboçados, os motivos pelos quais nos deparamos com profissionais do direito, especialmente aqueles que ocupam as mais importantes carreiras de Estado, como os integrantes do Poder Judiciário, a exemplo do ex-juiz Sérgio Moro e do Ministério Público, a exemplo de Deltan Dellagnol, dos quais muito esperamos, dando mostras de sua cultura inculta. São os frutos de uma indigente safra, que se cultivou no terreno árido e seco da formação exclusivamente técnico-jurídica.

Termino invocando as candentes palavras do filósofo italiano Nuccio Ordine:  “Não nos damos conta, de fato, de que a literatura e os saberes humanísticos, a cultura e a educação constituem o líquido amniótico ideal no qual podem se desenvolver vigorosamente as ideias de democracia, liberdade, justiça, laicidade, igualdade, direito à crítica, tolerância, solidariedade e bem comum”. [16]

Carlos Eduardo Araújo – Mestre em Teoria do Direito (PUC -MG)

NOTAS:

[1] FARIA. José Eduardo. O Sistema Brasileiro de Justiça: experiência recente e futuros desafios. Estudos Avançados 189510, 2004.

[2] CASARA, Rubens. Precisamos falar da “direita jurídica”. In: O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Coleção Tinta Vermelha). Boitempo Editorial, 2018.

[3] BACHA E SILVA, Diogo. Ativismo judicial ou contrarrevolução jurídica? Em busca da identidade social do Poder Judiciário. RIL Brasília a. 53 n. 210 abr./jun. 2016 p. 165-179.

[4] STRECK, Lenio. Resumocracia, concursocracia e a "pedagogia da prosperidade". Conjur, 11.05.2017.

[5] STRECK, Lenio. Resumocracia, concursocracia e a "pedagogia da prosperidade". Conjur, 11.05.2017.

[6] STRECK, Lenio. Resumocracia, concursocracia e a "pedagogia da prosperidade". Conjur, 11.05.2017.

[7] STRECK, Lenio. Resumocracia, concursocracia e a "pedagogia da prosperidade". Conjur, 11.05.2017.

[8] CASARA, Rubens. O Estado Pós-Democrático: Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis, Civilização Brasileira, 2017.

[9] STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª ed., Livraria do advogado, 2014.
[10] STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª ed., Livraria do advogado, 2014.

[11] PASSOS, Daniela Veloso Souza. Concurso Público para a Magistratura: repensando o modelo de seleção e o papel dos juízes na democracia brasileira. Tese (Doutorado em Direito Constitucional). Faculdade de Direito. UNIFOR – Universidade de Fortaleza. Fortaleza, 2018.

[12] PASSOS, Daniela Veloso Souza. Concurso Público para a Magistratura: repensando o modelo de seleção e o papel dos juízes na democracia brasileira. Tese (Doutorado em Direito Constitucional). Faculdade de Direito. UNIFOR – Universidade de Fortaleza. Fortaleza, 2018.

[13] PASSOS, Daniela Veloso Souza. Concurso Público para a Magistratura: repensando o modelo de seleção e o papel dos juízes na democracia brasileira. Tese (Doutorado em Direito Constitucional). Faculdade de Direito. UNIFOR – Universidade de Fortaleza. Fortaleza, 2018.

[14] PASSOS, Daniela Veloso Souza. Concurso Público para a Magistratura: repensando o modelo de seleção e o papel dos juízes na democracia brasileira. Tese (Doutorado em Direito Constitucional). Faculdade de Direito. UNIFOR – Universidade de Fortaleza. Fortaleza, 2018.

[15] FARIA, José Eduardo. A riqueza da experiência jurídica contemporânea passa longe das faculdades de direito. Boletim Informativo do CEAF/Escola Superior do Ministério Público, Ano 4 – n.º 21 – out/nov/99.

[16] ORDINE, Nuccio. A Utilidade do Inútil. Zahar, 2016. 

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