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Valéria Dallegrave

Jornalista, escritora e dramaturga

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A má-fé versus a fé na humanidade - a entrevista de Lula para a Rádio Gaúcha

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Assisti ao vivo a entrevista de Lula na Rádio Gaúcha, e fiquei assombrada com o grau de parcialidade e manipulação, que não podemos chamar de jornalismo. Meu objetivo em escrever este artigo é destacar algumas características deste procedimento que precisam ser identificadas e condenadas. 

No início foi utilizada uma técnica normal, para deixar o entrevistado mais à vontade: uma conversa leve, sobre cães (eles não conheciam a Resistência) e o início do namoro de Lula com Janja. Logo após, Kelly Mattos faz questão de dizer que não serão mal-educados, como não foram com FHC, Collor e Temer, mas estamos na época da pós-verdade, em que o que se afirma pode ser o oposto do que se faz...

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SUPERFICIALIDADE  E MANIPULAÇÃO - Na primeira pergunta para valer, Potter recorre ao subterfúgio fácil de citar a bandeirinha do PT atrás de Lula. Seria mais interessante que tivesse mencionado que Lula foi o fundador do maior partido de esquerda da América Latina, respeitado nas lutas trabalhistas pelo mundo afora. Isso daria à pergunta mais consistência. O entrevistador diz saber que Lula sempre “bate em Sergio Moro e Deltan Dallagnol”. Assim ele resume a Vaza Jato e as acusações sérias de corrupção e parcialidade da Lava Jato, transformando-as em uma atitude “revoltada” de Lula. É uma forma de ocultar toda a polêmica quanto às reais intenções dessa força tarefa que a cada dia é mais desmoralizada, agora com a colaboração ilegal do FBI (as motivações desta parceria informal podem render boas matérias jornalísticas, não cabe a Lula explicar tudo). 

Potter menciona a suposta complexidade da Lava Jato, a qual não lhe interessa aprofundar, pois na superfície é mais fácil distorcer fatos, ignorar acusações e manipular declarações. É na superficialidade que Potter conclui que “ficou provado que o PT participou de 'coisas bem ruins'” (não vou nem comentar a demonstração de conhecimento do assunto e domínio de linguagem informativa demonstrado pelo uso da expressão “coisas bem ruins”).

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TRANSFORMAR UMA QUESTÃO DE INJUSTIÇA POLÍTICA E SOCIAL EM UM PROBLEMA PESSOAL DE LULA - Potter pede a Lula que esqueça momentaneamente Moro e Dallagnol, o que Kelly vai reforçar mais adiante, com uma voz supostamente compassiva (muita ironia). A apresentadora chega a propor uma “brincadeira”, de concluir as respostas sem mencionar Moro e Dallagnol. Transformar a justa revolta de Lula em rancor é uma demonstração de falta de empatia e sensibilidade admiráveis, ou simples má-fé, para com um homem que passou 580 dias preso injustamente e, entre outras perdas de vida, deixou de ter dias valiosos de convívio com o irmão e o neto, que vieram a falecer neste período... Prisão que, aliás, é até hoje um dos maiores golpes na democracia brasileira, por ter retirado ilegalmente os direitos políticos de Lula, e de todos os seus eleitores.

INCAPACIDADE DE ESCUTAR O ENTREVISTADO - Lula responde  à pergunta de Potter dizendo que a Lava Jato poderia ter sido um grande instrumento de combate à corrupção, observando que ele e Dilma fortaleceram a autonomia da mesma. Explica que, se houve corrupção na Petrobrás, não envolveu o presidente da empresa e do conselho, ambos do PT. Os envolvidos foram dois técnicos concursados, com trinta anos de trabalho no local. Lula lembra ainda que, se houve corrupção na Petrobrás, o próprio Moro propiciou isso, ao libertar o doleiro Youssef, mantendo-o sob sua tutela, e permanecendo na escuta de seus envolvimentos com os corruptos por oito anos, desde o caso do Banestado do Paraná. Destrinchando o que o entrevistador resumiu com a “complexidade” da Lava Jato”, Lula explica o que houve de errado, a terem transformado em um partido político com o objetivo de retirá-lo da campanha política de 2018... Foi interrompido antes de terminar a resposta, como se não tivesse sido ouvido, com nova pergunta apenas para reforçar a questão inicial: “Mas então, presidente, porque as empresas devolveram dinheiro se não havia nada de errado?” Ignoraram que Lula não descartou a corrupção na Petrobrás, apenas colocou limites nas acusações levianas ao PT e à Dilma (as tais “coisas ruins”). Lula também explica que, se houve corrupção, era preciso punir as pessoas envolvidas e não a empresa, como fazem outros países, pois punir empresas é punir as pessoas que trabalham nelas. Ele ainda dá uma sugestão de pauta jornalística, ao recomendar que pesquisem a situação atual dos delatores, pois a Lava-Jato os teria  tratado de forma equivalente a uma premiação, o que, na verdade, legalizou a corrupção...

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FALTA DE RESPEITO E/OU DE INFORMAÇÃO - Quando Lula cita que o FBI estava envolvido diretamente na orientação à força tarefa no Paraná, Kelly pergunta “por quê?” Como se questionasse a informação, que foi notícia em diversos sites. Novamente lhe damos o benefício da dúvida: seria uma demonstração de incompetência (falta de pesquisa) ou má-fé? Lula denuncia o ataque às indústrias brasileiras, da parte da Lava Jato, o que, apesar de ter graves repercussões, assim como a interferência do FBI, não provoca o interesse da inquisidora, que afia o olhar e diz: “Então eu vou fazer uma pergunta direta: o senhor roubou!?” (eu gostaria de saber se ela fez a mesma pergunta a FHC, Collor ou Temer, mas não tenho estômago para assistir essas outras entrevistas).

TÉCNICA DE INTERROGATÓRIO - Agora é o terceiro inquiridor, David Coimbra, que insiste em perguntar se o PT passou incólume pelo processo de corrupção que envolveu o congresso e as grandes empreiteiras, “...e que de certa forma ficou comprovado, como o senhor mesmo está dizendo”. O “de certa forma ficou comprovado” usa mais uma expressão vaga (de certa forma) e coloca na boca de Lula palavras que ele não disse. Mas Lula segue tranquilo,  explica que o PT é um partido de quase dois milhões de filiados, e que alguém pode ter cometido um erro, mais adiante ele corrige a fala do inquiridor: “quando você fala o PT fez isso, o PT não. Se alguma pessoa fez, que pague”. Mas eles insistem no mesmo ponto, não é uma entrevista, é um interrogatório, pouco escutam e repetem as acusações. Lula se vê obrigado a repetir, também, algumas explicações.

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INÍCIO DA COMPARAÇÃO DE LULA A BOLSONARO - Quando Lula compara o tratamento dado a ele pela imprensa ao dado a Serra, recentemente, que logo sumiu das notícias, Potter volta animadíssimo: “Deixa eu pegar este ponto, este ponto é interessante, é inacreditável como são parecidos os discursos do senhor e do atual Presidente da República, Bolsonaro. Vocês dois odeiam a Globo. É a Globo que inventa essas histórias todas? A Globo quer derrubar todo presidente da república?” A cara de pau e o entusiasmo com que faz essa pergunta é um acinte. Sugere a existência de um pensamento paranóico e ainda resume a oposição política e racional da esquerda, baseada em fatos históricos, à emoção grosseira e nociva do ódio ostentado por Bolsonaro. Claro, é possível que uma compreensão de mundo que não inclui aprofundar temas considerados “complexos” só possa ir até aí. Mas é neste momento que inicia-se uma ação coordenada mais vil:  tentar associar Lula a Bolsonaro.

É preciso lembrar que Lula deixou a presidência com 87% de aprovação (Sensus), a maior aprovação da história. O Brasil estava com alto reconhecimento internacional, e em franco crescimento. No mundo inteiro, a alta aprovação em final de mandato só pode ser comparada a de Michele Bachelet no Chile, 84% e de Nelson Mandela na África do Sul, 82% (CNT). É indispensável lembrar também que Lula, indicado pelos brasileiros como o melhor Presidente da História, nunca desrespeitou um jornalista (fazer críticas à forma como o jornalismo é exercido é algo bem diferente), e tratou com respeito a todos que o procuraram, pois sua dimensão de civismo e responsabilidade para com o povo brasileiro não faz exceções. No entanto, estes inquiridores acham divertido e interessante compará-lo a um candidato denotadamente grosseiro, cruel (lembram do cerco a que foram submetidos os jornalistas no dia da posse?) e acusado de genocídio no tribunal internacional, por incapacidade e frieza no gerenciamento das medidas para conter a pandemia. Parece evidente que estão, desta forma, servindo aos interesses de alguém...

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TENTATIVA DE TRANSFORMAR A OPOSIÇÃO POLÍTICA À GLOBO EM MERO ÓDIO E INSISTÊNCIA EM COMPARAR LULA A BOLSONARO – Sobre a Globo, Lula menciona um diálogo pitoresco, em que Ali Kamel, hoje diretor geral de jornalismo, dizia que ele devia construir pontes e estradas, ao que Lula respondia “no dia em que o povo comer cimento, comer ferro, eu vou priorizar pontes e estradas, mas enquanto o povo tiver fome, eu vou priorizar feijão e arroz para essa gente comer. E graças a Deus [o Brasil] foi reconhecido pela ONU como sendo o país que acabou com a fome. Então não há perseguição, é que a Globo trata diferentemente as pessoas...”  Ele explica que a Globo não gosta de Bolsonaro, mas adora a política econômica do Guedes -a privatização, tirar direitos dos trabalhadores-, e portanto sua divergência com a Globo é na questão política. A explicação de Lula desmancha a simplicidade do mero ódio...

Kelly, surda ao entrevistado, insiste em insinuar uma “simetria” no comportamento de Lula e Bolsonaro (até faz uma ressalva: “falsa simetria, dizem alguns” - o que demonstra que não tem falta de informação): os dois “odeiam” a Globo, reclamam de jornalistas e os apoiadores do Bolsonaro acham “também” que existe perseguição. Lula diz que alguém que fala em uma semelhança entre Bolsonaro e ele ou é ignorante ou tem má-fé, pois, de sua parte, já foi acusado de excesso de democracia, tendo convocado 74 conferências nacionais para fazer as políticas públicas... À medida que Lula vai respondendo, ela perde o olhar gélido (sente-se desmascarada?) e os dois outros entrevistadores começam a se coçar. Aparentemente, era neste ponto que pretendiam fazer Lula perder o controle, o que não aconteceu. 

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ADMISSÃO DO CONHECIMENTO DE QUE LULA É UM DEMOCRATA, AINDA ASSIM CONTINUAM A COMPARÁ-LO A BOLSONARO – Lula vai respondendo às insinuações com as histórias cativantes que gosta de contar, e finaliza dizendo que é excessivamente democrático. Kelly rebate rápido: EU SEI que o senhor é democrata. (ah, ela sabe! Mesmo assim, o compara a Bolsonaro, que tenta destruir a todo custo a democracia no país, atentando contra os outros poderes), mas continua a comparar os dois, citando o tom e a forma como ”brigam” com a imprensa (e até parece ser sincera neste momento, tanto que permite a Lula cortar o seu raciocínio).  Lula chega a sorrir, inconformado com a comparação e, com paciência de democrata, pede a ela, em tom de voz até carinhoso “não repita isso não, eu não brigo com jornalista”... Ela discorda. Ele explica o papel da imprensa, de dar informações, e reservar opiniões políticas para o editorial (acredito que ela deva saber isso, senão é recomendado assistir algumas aulas de jornalismo básico).

INSISTÊNCIA EM ATRIBUIR A LULA RANCOR E PARANÓIA, DESCONSIDERANDO TODAS AS RESPOSTAS DADAS - Quando Lula repisa o quanto Moro e Dallagnol estão envolvidos em mentiras, Kelly o chama de rancoroso, e cita até o seu signo (excelente trabalho jornalístico, hein!?). É impossível não ver na suposta naturalidade dela um cinismo ímpar.  Voltam a sugerir um complexo de perseguição, afinal não estavam ali para ouvir, isso já havia ficado óbvio. Lula explica que tudo que quiserem checar está no processo, basta o acompanharem. Questionado quanto à decisão em segunda instância, cita os indícios que a colocam sob suspeita. É interrompido por Potter que observa, com ironia e estranhamento: “Mas é muita gente contra o senhor, é impressionante como tem muita gente contra o senhor!” Lula rebate, atento: “Não é muita gente contra o Lula, é muita gente favorável”. E Potter: “Também tem  muita gente favorável ao presidente Bolsonaro”. (comentário completamente desnecessário, servindo apenas à tática de tentar desestabilizar Lula). E continua: “Mas como tem gente contra o senhor! O FBI, a Globo, a Quarta... O Moro e o Dallagnol a gente sabe”, Lula volta a explicar que a Globo não está contra ele, mas tem lado... Trava um difícil diálogo com três paredes.

IRONIAS GROSSEIRAS RESPONDIDAS COM IRONIA GENTIL E INTELIGÊNCIA - Quando Lula explica que podia ter fugido do país, mas preferiu ir para Curitiba “para ficar pertinho do Moro”, como gosta de dizer, Kelly observa, irônica, “uma relação de amor”. Ela emenda com uma pergunta sobre o que houve com a esquerda, que teria perdido a conexão com o povo, citando Mano Brown. Faz um parênteses, novamente, para comparar a forma como Lula dialoga com o povo e o que Bolsonaro faz no cercadinho. Lula ri da insistência na comparação, mas a desconsidera, foca na resposta ao que é importante... 

À pergunta se ele não teria crescido demais e sufocado o PT, Lula diz que ninguém vira líder por que quer. “Eu não sou importante no PT porque quero, eu sou importante porque o PT quer. Na hora que o PT não quiser, o Lula desaparece...” E desmascara, assim, uma tentativa recorrente da grande mídia, de colocá-lo como alguém que persegue incansavelmente o poder e o domínio do partido.

Potter volta a carga, faz a pergunta sobre como o PT irá se colocar nas eleições de 2022, inicia com a afirmação de que a rejeição ao PT é muito grande e ajudou a eleger Bolsonaro, e emenda a acusação de que Lula “falou mal” da frente ampla (provavelmente seria muito complexo explicar em que consistia o “falar mal”). Acredito que foi neste momento que eu desisti de acompanhar a entrevista ao vivo, pois fiquei extremamente irritada com a falta de respeito da insistência na comparação absurda entre Lula e Bolsonaro. 

A RESISTÊNCIA DE LULA E UMA ADMISSÃO DA IMPORTÂNCIA DO PT -

Só quando me obriguei a assistir o vídeo inteiro, para escrever este artigo, vi a resposta de Lula, diplomática e de sutil ironia: “Eu estou muito lisonjeado com o tratamento que vocês estão me dando, mas é preciso que a gente deixe as coisas claras para a sociedade...” e ele deixa claro que compreende estar respondendo não para os interrogadores, mas para quem está ouvindo a entrevista. 

Eu me dou conta, então, do motivo de sua extrema paciência e da insistência em dar respostas honestas a perguntas canalhas. Lula continua: “E agora você inventou uma história que é uma rejeição ao PT... deixa eu contar uma história para vocês...”. Lula resume as conquistas do PT desde seu surgimento, Potter o interrompe, tenta engessá-lo na superficialidade, mas Lula responde que a história não começou nem termina em 2018 (o equivalente a um “é preciso aprofundar a compreensão das situações, meu filho...”). Potter o interrompe novamente, afirmando: “O PT é o maior partido da democracia recente brasileira, NÃO TENHO NENHUMA DÚVIDA DISSO...” (ora, vejam, ele sabe disso, é algo a comemorar). No entanto, insiste que a rejeição ao PT colabora com Bolsonaro, colocando mais uma vez  a culpa no partido. Afinal, a culpa é sempre do PT, que virou a Geni da política brasileira... mas esta repetição já está cansativa e não convence mais. LULA  observa que a culpa não é do PT, mas de quem se recusou a votar nele... 

A última pergunta foi em quem Lula votaria se, em 2022, o segundo turno fosse entre Bolsonaro e Moro. Lula diz que isso não acontecerá, e desenvolve a resposta. Na versão disponível para quem acessar a gravação da entrevista, entretanto, sua fala foi cortada - e simplificada para um “votaria em branco”. 

É preciso frisar que a entrevista, que começou com perguntas inofensivas e leves, um preâmbulo destoante do desenvolvimento, ficou sem fechamento, como um Frankenstein mal costurado. Por algum problema técnico, possivelmente (alguém ficou nervoso?), as imagens seguiram sem áudio, o que incomodou a quem assistia ao vivo. Para quem acessar os comentários, ficou registrado   o descontentamento de parte significativa do público com o tratamento dado a Lula. Os robôs bolsonaristas parecem estar perdendo força. Aos inquisidores ficou o alerta de que há grandes críticas a sua parcialidade.  

Quando Lula disse que ficou “muito lisonjeado” com o tratamento recebido, mostra que não deixou passar nenhuma ironia ou tentativa de manipulação do seu discurso, e também evidencia o motivo de ter aceito participar da entrevista. Não foi “jogado aos leões”, como poderia parecer. Ele fez a escolha de aproveitar um momento de divulgação de suas ideias para um público que foi privado por muito tempo da oportunidade de ouvi-lo. Quem foi capaz de escutar suas respostas pôde, sem dúvida, entender melhor algumas complexidades e injustiças do quadro atual da política brasileira, e alarmar-se com as graves ameaças que a democracia ainda sofre no país. Como Ândrocles, Lula não teme os leões, e sua grandeza tem a mesma medida de sua fé na humanidade...

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