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Chris Hedges

Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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A praga do isolamento social

A ruptura dos laços sociais e a perda da comunidade resultaram em um isolamento social perigoso, avalia Chris Hedge

Dano celular (Foto: Mr. Fish)
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Por Chris Hedge 

(Publicado no site The Chris Hedges Report)

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A não ser pela sua mensalidade barata, há muito pouco que recomende a minha antiga academia – onde eu me exercitei todos os dias desde 2007 até que a pandemia a fechou. Os vestiários eram sujos e tinham carpetes mofados. Havia círculos marrons em volta das pias e uma fina camada preta de limo, composta, eu suspeito, de peles mortas, urina, cabelos, poeira, sujeira e sortidas bactérias no chão dos chuveiros. Pisar no limo sem chinelos de dedo seria, no mínimo, levar para casa infecções de pé-de-atleta e fungos de unhas. Reporta-se que a sauna do vestiário foi listada num aplicativo de encontros gays e atraia pares de homens procurando encontros sexuais anônimos em nuvens de vapor. No início, a gerência da academia tentou combater estes encontros ao colocar um cartaz na porta que dizia: “É PROIBIDO FAZER SEXO NA SAUNA”. Quando isto não funcionou para diminuir o tráfego de entrada e saída da sauna, a porta foi removida e a sauna foi desligada. Ocorriam roubos no início da tarde, quando a academia estava quase vazia. Um home ficava na entrada do vestiário como vigia, enquanto outro rapidamente arrombava as dobradiças dos frágeis armários e embolsava as carteiras. A gerência era antipática. Eles colocaram cartazes alertando para não deixar objetos de valor nos armários. O nosso problema era o roubo.

 As esteiras, as bicicletas estacionárias e elípticas se quebravam e eram bloqueadas for semanas com uma corrente e um aviso que dizia: “Fora de Serviço”. A sala de pesos, localizada no porão sem janelas, é onde eu passava a maior parte do meu tempo. E esta era onde se encontrava a única característica redentora da academia – a comunidade de usuários regulares que, mês após mês, ano após ano, se embutiram na minha vida. É verdade que nenhum de nós queria pagar os preços exorbitantes para entrar nas academias chiques, mas nós também encontrávamos conforto na familiaridade da companhia que fazíamos uns aos outros. Nós não nos uníamos pela política, nem pela classe, ou pelo status, educação ou profissão, mas sim pelo exercício físico. Eu levantava pesos com dois homens da minha idade: John, que jogou na NFL [liga de futebol americano profissional] nos clubes Jets e Colts; e Marc, que havia jogado basquete na faculdade. Enquanto antigos atletas competitivos, nós aceitávamos que os nossos exercícios naquela época eram o gerenciamento da decadência, porém havia algo reconfortante sobre aquela obstinada determinação de não nos resignarmos com a decrepitude. Além disso, quando sugeridos por John ou Marc na sala de pesos, os mais banais conselhos e informações se tornavam em verdades reveladas, frustrando a minha esposa Eunice – que dizia a mesma coisa frequentemente, durante meses ou anos antes.

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 Dentre o nosso pequeno grupo de frequentadores regulares estava Robert, um cabeleireiro que se mantinha em forma; ele disse que, devido ao fato do namorado dele ser mais velho, ele era a “esposa-troféu”. Robert exibia a sua cintura de 30 polegadas [76cm] e o seu físico elegante e em forma. Num Halloween, ele e o seu namorado participaram num cruzeiro gay, no qual a roupa era uma tanga e um cocar de guerra dos nativos estadunidenses com penas. “Eu estava fabuloso”, ele nos disse. Também havia um lutador de luta-livre profissional que participava dos torneios em cidades menores, como Wilmington, e cujo nome artístico era “O Poderoso Vesúvio”; um veterano da guerra no Iraque profundamente traumatizado que todos nós mantínhamos à distância e que uma vez ameaçou um treinador – o qual subsequentemente saiu da academia e jamais retornou; um policial; um antigo corretor de commodities de Wall Street que apoiava o American Israel Public Affairs Committee (AIPAC) [o maior lobby pró-Israel nos EUA]; Camilo, que tinha sido um boxeador peso-pesado profissional ne Itália e que era o dono de um restaurante ao lado da academia; e o meu amigo Boris, que tinha sido uma pessoa sem teto nas ruas de Trenton, que lia Fyodor Dostoyevsky no original em russo e, quando ele tinha um trabalho, estudava em tempo parcial na Universidade Rutgers para se formar como assistente social. Numa tarde, Camilo e eu decidimos retomar as glórias dos nossos dias de box, soqueando o pesado saco sem usar as tiras de algodão que os boxeadores enrolam nas suas mãos antes de colocar as luvas. Este ato impulsivo de machismo nos deixou com os pulsos torcidos – o que não algo bom para um cozinheiro nem para um escritor.

 Como se pode usar a academia por um preço tão baixo quanto US$ 36 por mês, o vestiário servis como banheiro público e chuveiro para trabalhadores sem documentos e moradores de rua. Um homem corpulento, que vivia dentro do seu carro, vinha todas as manhãs para barbear-se e tomar banho. Ele apoiava alegremente todas as teorias de conspiração bizarras de direita e as apresentava a qualquer um que quisesse escutar. Onde estará ele agora? Será que ele encontrou uma outra comunidade onde ele é aceito, com todas as suas peculiaridades, onde ele pode tomar banho e se barbear; ou será que ele, como muitos outros, foi completamente deixado à deriva? Ele já vivia à beira da catástrofe.

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 A academia era operada por um sindicato do crime chamado de New York Sports Club. Estes magos das escolas de negócios aperfeiçoaram todas as técnicas de explorar o proletariado que não tem advogados. Nenhuma das suas fraudes teria funcionado nas academias caras, aquelas que tem spas, piscinas, vestiários imaculados, toalhas macias, massagistas e bares com frutas frescas, que cobram mais de US$ 100 por mês. Os membros destas academias caras podiam contratar advogados. O sindicato assumia, corretamente, que a maioria de nós estávamos indefesos. Eles eram muito criativos em imaginar como nos extorquir. Eles prometiam preços mensais baixos para admitir novos membros e, uma vez tendo o cartão de crédito dos clientes nos seus registros, eles aumentavam o preço sem aviso prévio. Este aumento podia ser cancelado se você viesse ao escritório do gerente com o seu contrato, mas a maioria das pessoas não descobriam o aumento por alguns meses. Ninguém recebeu qualquer reembolso. Quando lhes foi ordenado fechar a sua cadeia de academias no início da pandemia, em março de 2020, o sindicato continuou a cobrar as mensalidades e ignoraram os pedidos de cancelamento dos membros. Neste mês de janeiro, a Procuradora Geral de Justiça de New York, Letitia James, ordenou que o New York Sports Club pagasse US$ 110 a cada membro que preenchesse uma reclamação em New York depois que foram expropriados pela cadeia de academias.

 As academias não ganham dinheiro com as pessoas que as frequentam regularmente. Elas ganham o seu dinheiro com sessões de treinamento personalizado e com quem se torna sócio, frequenta a academia por uma semana ou duas como parte das suas resoluções de ano novo e porque precisam perder tempo e fazer exercícios, e depois desaparecem. Estes membros-fantasma mantém a sua matrícula, provavelmente por sentir culpa, com a vaga noção de retornar. A nossa academia tinha 2.000 membros. Apenas 50 de nós a frequentávamos diariamente.

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 Frequentemente, havia membros frustrados que vinham à recepção para pedir o cancelamento da sua filiação, apenas para saber que ninguém na recepção tinha autoridade para tratar com este assunto. Isto teria que ser feito através de uma linha telefônica de serviços aos usuários, na qual era quase impossível se conseguir falar com um ser humano. Quando você finalmente conseguisse cancelar, você tinha que pagar pelos dois meses seguintes antes que o cancelamento fosse ativado. Eu caí num dos mais engenhosos cambalachos do sindicato. Eles prometeram, prometeram e prometeram que se um membro ativo pagasse US$ 800, o preço mensal seria coberto de maneira vitalícia. Um ano depois, eles aumentaram as taxas e nos disseram que a participação vitalícia não era mais válida. Quando você está constantemente no lado que sofre o abuso corporativo predatório, é fácil compreender o ódio pela classe politicamente correta, educada e privilegiada.

 A única vez que conseguimos contra-atacar foi quando o sindicato decretou que o serviço de toalhas da academia seria abolido. Isso levou ao furto por atacado do estoque de toalhas. Eu ainda tenho algumas daquelas toalhas, com as quais é impossível enrolar mesmo um torso estreito e que têm uma textura de lixa. Eu as uso para limpar as patas cheias de lama do nosso cão.

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 Um gerente ou assistente de vendas do clube geralmente não durava mais de seis meses neste trabalho. Isto se deve ao fato de que eles tinham que cumprir quotas altas de novas associações todos os meses. Depois de inscreverem as suas famílias, amigos e antigos colegas de trabalho, quando eles esgotaram a lista de novos prospectos, eles eram demitidos. Uma gerente, que calçava saltos-agulha para ir à academia, durou um pouco mais ao transferir listas de novos membros recrutados pelos seus vendedores para cumprir com a sua própria quita. Eu vi vendedores em prantos, cujas novas associações tinham sido apropriadas pela gerente. Esta gerente montou a única campanha séria para limpar a academia, até mesmo dando escovas de dentes ao pessoal da limpeza – os quais tampouco duravam muito - para tirar a sujeira das fendas dos equipamentos de exercícios. Porém, também ela desapareceu. A academia voltou ao seu estado habitual de sujeira e decadência.

 Agora, a academia não existe mais. Nós não recebemos qualquer aviso prévio. O equipamento foi levado embora em caminhões, O restaurante do Camilo fechou e não reabriu. A mercearia do outro do da rua da academia – cujo dono era o Bill, um ex-Marine e antigo lutador profissional de luta livre – onde eu tomava café e conversava com os funcionários em espanhol, está fechada. Desolação.

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 Estes ecossistemas teciam os laços sociais que nos ligam a uma comunidade. Eles nos dão uma sensação de lugar, de identidade e de valor. O deslocamento econômico destas últimas décadas, agravados pela pandemia, enfraqueceram ou cortaram estes laços, nos deixando desconectados, atomizados e presos numa anomia debilitadora que fomenta raiva, desespero e solidão, e alimenta a endemia de abusos de substâncias viciantes, a depressão e as ideias de suicídio. Alienados da sociedade, nós nos tornamos alienados de nós mesmos. O isolamento social, exacerbado pelas mídias sociais, é uma praga que torna presas vulneráveis de grupos e demagogos que prometem um sentido de pertencimento e de propósito em troca de lealdade a alguma ideologia política ou religiosa dogmática. “A característica principal do homem de massa não é a brutalidade nem o atraso”, escreve Hannah Arendt, “mas é o seu isolamento e a falta de relações sociais normais.” O isolamento social é o sangue vital dos movimentos totalitários. Há muitas coisas que eu temo sobre o futuro, mas esta desamarracão [de um porto seguro] é uma das mais ameaçadoras.

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