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Adamo Antonioni Insfran

Jornalista, professor de Filosofia e mestre em Comunicação

6 artigos

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As confissões de Vitão incomodam muita gente

Na nossa sociedade, não há direito ao inconfessável. Dizer quem somos tornou-se um dever na contemporaneidade

Cantor Vitão (Foto: Reprodução/Instagram)
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O cantor Vitão, 23 anos, tem sido alvo de críticas nas redes sociais após adotar novo visual em que combina diferentes performances de gênero. Ele apareceu usando batom e maquiagem colorida, o que automaticamente fez com que os internautas passassem a especular sobre sua sexualidade e identidade de gênero. De acordo com a lógica destas pessoas, uma lógica nunca praticada sem uma dúzia de pressão e constrangimento, Vitão deveria se “assumir”, ou seja, acomodar-se na caixinha que lhe reservaram em alguma sigla.  

Mas e quando um sujeito recusa qualquer nomenclatura? E quando uma pessoa quer exercer sua liberdade de não estar presa a uma identidade? “Não gosto nem de me definir dentro de alguma sigla. Fujo de rótulos. Não me defino como hétero, bi ou gay, eu sou tudo....", disse Vitão à coluna "Splash" do Uol. Tal “confissão” foi recebida com fúria por parte de alguns internautas, indignados com a postura do cantor que teria “ignorado” as lutas históricas por reconhecimento e orgulho das minorias sexuais e de gênero.  

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É curioso como se movimentam estas pessoas nas relações de poder que não cessam de acontecer, inclusive, passaram a ganhar novas configurações através das plataformas digitais. Num primeiro momento, cobraram para Vitão “assumir” uma verdade de si, e quando esta verdade não foi correspondida ao discurso de verdade do grupo, estes, imediatamente passaram a atacá-lo, julgá-lo, cancelá-lo. Muitos de nós já fomos Vitões um dia.     

Na nossa sociedade, não há direito ao inconfessável. Dizer quem somos, mais do que isso, confessar aos quatro cantos aquilo que somos, tornou-se um dever na contemporaneidade. Somos obrigados a confessar nossos desejos, revelar os prazeres que sentimos ou deixamos de sentir. É preciso revelar a sexualidade que, embora minha, é nossa, é de todos. É e não é minha. Há algo em mim que pertence a “nós” e, por ser de todos, devo compartilhá-la, senão, não farei parte do todo. Serei excluído, expulso, proscrito para sempre do vale. 

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Como meu desejo pode ser julgado, avaliado, condenado ou classificado se eu não o confessar? “Dize-me qual é teu desejo, eu te direi quem és como sujeito”, disse certa vez Michel Foucault. No fundo, o ato de confessar tem como finalidade produzir a verdade, a verdade sobre nossa sexualidade que nada mais é do que a verdade sobre nós mesmos.  

- Você é gay? É heterossexual? Afinal, quem é você?! _ grita a multidão ensandecida, exigindo sua verdade. 

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Uma multidão que, na Idade Média, empunhava tochas de fogo pela cidade, caçando quem era visto como anormal, desviante ou inclassificável. Quando a confissão não era espontânea, se apelava para as técnicas de tortura para extorqui-la. A confissão e a tortura eram gêmeos sinistros, relata Foucault em “A História da Sexualidade, vol. I”. Mas hoje, na Idade Mídia, a sociedade se vale de outras técnicas para extrair a confissão, a multidão empunha smartphones, microfones, gravadores, prontos para interrogar, expor nas redes sociais aquele que confessa. E se sua confissão não atender ao discurso de verdade, será cancelado, assassinato de reputações. Eis a nova inquisição que uma multidão de internautas pratica através das mídias.   

Multidão esta que abdicou de suas individualidades em prol de uma maioria moral: são os juízes do bem e do mal, canceladores de plantão, fiscais da sexualidade alheia, os diretores de elenco que escolhem os melhores e os piores papéis de gênero, os avaliadores supremos das performances e performatividades. 

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Foucault vai identificar por volta de 1850 o início de um procedimento em torno da sexualidade que é o da revelação forçada e obrigatória.  Que começou com a Pastoral Cristã como forma de sacramento, mas seus efeitos se multiplicaram em outros saberes da sociedade: na justiça, na medicina, nas relações familiares, na mídia, etc. 

E por que a “confissão” de Vitão incomoda tanta gente? Porque o cantor, simplesmente, quebrou o princípio de identidade que vem desde Aristóteles: “Aquilo que é é”, ou, “o ser é idêntico a si mesmo”, são premissas da chamada lei do ser. Negá-los é negar o pensamento. Segundo este princípio, é impossível afirmar que um lápis não é um lápis, mas, sim, um rinoceronte, que um triângulo é um círculo e assim por diante. Ainda conforme esta lógica, dizer quem se é, é, ao fim e ao cabo, revelar uma verdade idêntica a si mesmo, ou seja, uma verdade interna, eterna e universal. 

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Mas quando se trata de seres humanos não se pode seguir a mesma lógica. O primeiro que pensou isso foi Friedrich Nietzsche ao concluir que é impossível se chegar a tal essência do ser quando falamos de seres humanos: “Tudo é individual num indivíduo”, afirmou o filósofo alemão. Nesta perspectiva nietzschiana, a individualidade, a subjetividade, vem antes de qualquer identidade essencialista, imutável, normalizadora, o que implica afirmar que confessar quem somos como se houvesse uma identidade fixa e imutável, torna-se um “problema” porque, afinal, somos e não somos ao mesmo tempo e está tudo bem.  

O hater que Vitão vem recebendo é o mesmo preconceito enfrentado por qualquer pessoa queer, pessoas que recusam identidades essencialistas. Não se trata de uma questão ideológica ou mercadológica, mas uma questão filosófico-política: diz respeito a nossa própria condição pós-moderna em que cada vez mais pessoas não se veem mais representadas em determinados papeis, sejam eles sociais, culturais, sexuais ou de gênero. E o desafio que se apresenta é como pensar em estratégias políticas capazes de lidar com estas formas de resistências e de luta que tem como alvo não um inimigo principal, nem visam um futuro distante, mas são lutas imediatas, muito mais próximas de nós do que imaginamos, pois, são lutas contra a sujeição e, portanto, permanecem perpetuamente abertas e anárquicas.  

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É claro que o ato de confessar pode ser importante para alguns. Foi assim que a ideia de “sair do armário” emergiu como política sexual que fez com que pessoas _ sobretudo gays e lésbicas_ saíssem do sigilo, do confinamento, para afirmação pública. E quando estas pessoas conseguiram se reunir em torno de uma política de identidade, conquistas jurídicas e sociais à comunidade LGBTI+ foram alcançadas. 

Mas a política do “sair do armário” apresenta limitações como descreveu Tamsim Spargo no livro “Foucault e Teoria Queer”. Segundo Spargo, esta política surgiu nos anos 1970 calcada numa cultura assimilacionista que promovia imagens positivas dos homossexuais para se adaptar à cultura dominante heterossexual. Este é o mesmo problema que incorre na atualidade quando se tenta transformar o queer numa identidade, uma vez que o capitalismo cria estratégias de reconhecimento focadas em públicos específicos, não para promoção das diferenças, mas para criar nichos de mercado e aumento de lucratividade. É por esse e outros motivos que o queer também pode ser capturado pelos sistemas de dominação.  

Seja como for, façamos um minuto de silêncio quando passar a multidão ensandecida. Atente atônito ao rosto de cada um deles: interrogando, registrando e institucionalizando a busca da verdade. Quem sabe você ceda e confesse. Quem sabe você minta e desconverse. Quem sabe você nem perceba e já esteja lá dentro da multidão participando da inquisição da vida alheia: perguntando sobre os desejos, amores, os segredos mais íntimos e prazeres inaudíveis. Independentemente do lugar em que estamos e ocupamos, sempre seremos obrigados a confessar. Não há direito ao inconfessável e por que haveria de ter, afinal? Diga a verdade! 

- Você já confessou hoje?  

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