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Marcia Tiburi

Professora de Filosofia, escritora, artista visual

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Bolsonaro inelegível. Reflexões sobre o fim de um ciclo

'O aprendizado com o fascismo em nossa pele não será apagado e usaremos todo o conhecimento adquirido para impedir seu avanço', diz a filósofa Marcia Tiburi

Jair Bolsonaro
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Em 17/04/2016 um homem mau, um perverso narcísico atuando na política por décadas, se fazendo passar por um mero mentecapto, capturou psiquicamente a metade de um país. Numa nação já vampirizada por outros homens inescrupulosos e cínicos, esse homem cravou, sem piedade, seus dentes sedentos de sangue. Em um país abusado por classes perversas, por indivíduos que, sem respeito pela vida, pela cultura ou pelo meio ambiente, tomam há tempos o poder para si como um capricho e um fetiche para servir a interesses particulares e insanos, esse homem mau fincou suas unhas de Nosferatu. A carne da nação foi sangrada. Milhares de corpos humanos foram privados de suas vidas no meio da pandemia, mas não só. Os pobres, os indígenas, as pessoas negras, as mulheres que esse homem sempre odiou, foram lançados num processo de matança orquestrada cujas armas foram o vírus, a fome e a destruição do Estado que poderia prover o bem estar do povo. Os índices de violência simbólica e física cresceram produzindo um clima geral de desespero. A nação foi deixada aos frangalhos material e emocionalmente falando. O homem, de cuja garganta emanaram as palavras mais venenosas, elogiando a tortura, o racismo e a misoginia e atacando a democracia em todos os seus níveis, hipnotizou e rebaixou uma parte gigante do povo a robôs teleguiados, a odiadores que não entendem o que, de fato, odeiam. Pela hipnose política, pessoas que deveriam pensar livremente e que acreditaram ser livres até mesmo para odiar, foram transformadas em gente sem capacidade de compreender o sentido da vida como uma construção coletiva para o bem comum. Incitando o ódio, através de um discurso delirante, aquele homem mau acionou com os gatilhos que ele e seus agentes publicitários dominam e manipulam muito bem, uma espécie de código distópico pelo qual cada pessoa aprendeu a conviver com o horror como se o horror imposto representasse o melhor dos mundos possíveis. 

O horror manipulado se tornou objeto do psicopoder, ou seja, do cálculo que o poder faz sobre o que as pessoas pensam, sentem, acreditam e fazem. E assim as massas manipuladas foram levadas a sentir todo o ódio de que pudessem ser capazes, um ódio delirante, incontido, alucinado, sem limites. Esse homem mau, mestre na manipulação, como outros que o seguiram e se uniram a ele e seguem barbarizando em postos eletivos, alcançou o feito de se tornar presidente desse país imenso - um país tão bonito, um país que outros, por ele perseguidos, amam demais -, mas cujas contradições sociais estavam acobertadas por violências simbólicas e físicas de todo o tipo e que visaram sempre a destruição do pensamento críticos e da ação capaz de melhorar a vida do povo. Não apenas do pensamento crítico, mas da função linguística mais básica que implica a condição humana, a saber, a capacidade de simbolizar, de inventar a linguagem, e, assim, o conhecimento e as relações humanas. Portanto, aquilo que chamamos de política como um espaço de organização da convivência e da garantia de uma vida justa para todas, para todos, para todes, como dizemos hoje em dia, respeitando a diversidade de gênero sem a qual não podemos avançar na construção de uma democracia social e historicamente consistente. 

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Trabalhando com a catarse pelo riso, e imbecilizando pessoas despreparadas, ou seja, tratando quem deveria ser tratado como cidadão como um idiota, sem que tais pessoas soubessem o que estava se passando às suas costas, embora muitas vezes tenham achado que faziam parte da classe dominante verdadeiramente perversa, esse homem convenceu gente desprotegida intelectualmente a segui-lo e apoiá-lo. Ele mistificou a desqualificação moral e política, e a competência e a especialização deram lugar ao terraplanismo e todo tipo de delírio negacionista. Adulando as massas, fazendo-as acreditar que a violência em que vivem é o melhor dos mundos, ele e seus parceiros, fascistizaram um país inteiro. No passado (e infelizmente isso ainda é praticando nos subterrâneos do sistema  capitalista neoliberal, nos rincões de um país odiado por suas elites onagrocratas), pessoas eram escravizadas e colonizadas. Hoje pessoas são fascistizadas, o que equivale a dizer que suas mentes foram sequestradas e obrigadas a aceitar a submissão sob pena de violência e morte. A escravização e a colonização mental são abjetas e precisam ser freadas, mas os fascistas que são os homens maus, os sacerdotes do sistema religioso neoliberal, são aqueles que põem em andamento a imbecilização das massas. 

O gozo autoritário só persiste em quem não sentiu a alegria do amor verdadeiro, que é a mesma alegria presente no conhecimento e na arte. Na verdade, o que veio à luz do dia, é que há muito medo na subjetividade, no coração e na mente de uma pessoa fascistizada. Há, na verdade, o medo pânico que, ao apavorar um indivíduo, cancela a capacidade de pensar. É desse medo que se disfarça no prazer da entrega do indivíduo à massa que dependem os manipuladores das massas. Por isso, o domínio do medo. Contudo, enquanto o corpo pode se insurgir, como acontece com os que resistem e lutam diariamente por uma vida justa para todos, uma mente dominada tende a se submeter cada vez mais. Uma mente dominada não desperta sozinha. Ela tende a se confundir com o seu líder manipulador. Ela pensa que é livre, que está escolhendo pensar e fazer o que faz, ela acredita que tem autonomia, quando, na verdade, está apenas criando um acordo com seu algoz em potencial para se manter viva. Toda pessoa que foi tomada pelo fascismo tem medo de ser vítima, por isso se mimetiza com seu algoz. Dominada pelo medo que toma conta de todo o seu ser, ela se entrega. Esvaziada da revolucionária capacidade de pensar reflexivamente, ela deixa o texto fascista ser impresso na sua carne, primeiro como vontade de matar, depois como vontade de morrer. Contudo, esse texto não pertence a cada um. Esse texto foi escrito por personalidades autoritárias que não suportam a autonomia das pessoas. De fato, cada pessoa tomada pelo fascismo preferiria libertar-se, preferiria a satisfação da liberdade de pensar, mas não tem acesso a isso. Aprisionada, em núpcias com a morte que lhe promete o prazer da aniquilação, o prazer do nada capaz de libertar de uma vida sem sentido, as pessoas fascistizadas não podem se libertar. A questão é a incapacidade de perceber que o desejo de morte que parece trazer compensação foi produzido por assaltos sobre a sensibilidade e a inteligência de cada um. Um fascista sempre foi destruído antes para poder reproduzir a destruição que está dentro dele. Aquele que tem a alma aniquilada não sabe que ela foi aniquilada. 

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Nessa hora, a questão de “como conversar com um fascista” se recoloca. Hoje, conversar com um fascista, implicaria liberá-lo do horror, permitir que ele compreendesse o prazer da liberdade de pensar que está para além da mística da liberdade de expressão conspurcada por uma gritaria odiosa que não faz sentido para quem a repete. 

Esse dia histórico de derrota do fascismo pela inelegibilidade de um de seus principais líderes é o dia em que, por coincidência ou sincronicidade, eu volto ao Brasil. Depois de quase 5 anos de exílio, atacada, vilipendiada e ameaçada por um sistema de ódio do qual esse homem foi o principal líder, eu retorno ao meu país depois de meses tentando voltar. O exílio representou um horror, uma condição de dor, mas também de aprendizado. Sem dúvida, se trata de um  sofrimento que precisava acabar. Acabou e agradeço a todos que ajudaram a suportá-lo e a concluí-lo com dignidade. 

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Não há melhor lugar para viver do que o lugar onde consideramos estar em casa. Nesses anos estive na França vivendo a condição estrangeira e exilada, protegida por organismos internacionais que defendem defensores de direitos humanos. Lá eu tive trabalho e amparo e devo agradecer a todas as instituições e pessoas envolvidas. 

Agora, volto ao meu país tendo a certeza de que não há lugar melhor para viver do que a minha própria casa. E de que devemos todas e todos, nos mantermos vivos para seguir com a luta. A maléfica guerra da extrema-direita não terá força de parar a nossa luta. Somos muitas e muitos, somos mais! Somos a luz que ilumina as piores trevas! Seguiremos abrindo caminhos para a felicidade comum e coletiva que nos cabe construir. A essa felicidade comum daremos o nome de democracia criativa. Faremos do nosso país fonte de orgulho, onde ninguém mais passe fome ou tenha que se alimentar com venenos, onde mulheres não sejam vítimas de violência dentro de casa, violência política de gênero ou feminicídio. Onde pessoas negras não sofram racismo, nem sejam assassinados pelo Estado. Onde os povos indígenas tenham direito à demarcação. Onde as pessoas com deficiências sejam amparadas, onde os estudantes de todos os níveis tenham direito à educação de qualidade com suporte de bolsas de estudos que possam desenvolver o que temos de melhor que é a inteligência e a criatividade das nossas crianças e jovens. Há um país para reerguer dos escombros e todo o nosso trabalho não foi em vão e jamais será em vão. 

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Os aprendizados com o fascismo vivido em nossa pele não serão apagados e usaremos todo o conhecimento adquirido para impedir seu avanço porque merecemos um futuro luminoso e livre de todo pavor.

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