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Lincoln Secco

Professor do departamento de história da USP, é autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê)

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Cinema na quarentena: Morangos Silvestres

"A filmografia de Ingmar Bergman pode ser vista a partir de três dilemas: a infância, o amor e a história", escreve Lincoln Secco. "Dos três elementos, o terceiro é o menos visível. O primeiro foi o mais explorado de maneira consciente. O segundo poderia ser definido mais como a falta de amor ou as sucessivas tentativas de conquistá-lo"

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Publicado originalmente no site A Terra é Redonda

Comentário sobre o filme clássico de Ingmar Bergman, premiado com o Urso de Ouro no Festival de Berlim.

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A filmografia de Ingmar Bergman pode ser vista a partir de três dilemas: a infância, o amor e a história. Dos três elementos, o terceiro é o menos visível. O primeiro foi o mais explorado de maneira consciente. O segundo poderia ser definido mais como a falta de amor ou as sucessivas tentativas de conquistá-lo.

Morangos Silvestres (Smultronstället, 1957) (https://www.youtube.com/watch?v=Ao12p1PzeS4) congrega a totalidade da problemática bergmaniana. Desde o problema da infância, do amor e da história, até à questão da existência de Deus. Tema tão presente em O Sétimo Selo (Det Sjunde Inseglet, 1956) e que retorna em Fanny e Alexander (Fanny Och Alexander, 1982).

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História

Já no início dos anos 1960, Jörn Donner tratou do substrato cultural, histórico e político dos filmes de Ingmar Bergman. Seus temas não poderiam ser tratados numa outra época ou numa outra sociedade. Em primeiro lugar pela própria incapacidade do diretor adaptar-se a outra realidade. Liv Ulmann conta em seu livro Mutações (Nórdica), a estranheza dela mesma e também de Bergman em relação ao comportamento norte-americano (Liv Ulmann foi esposa de Bergman e uma de suas maiores atrizes, ao lado de Ingrid Thulin e Bibi Anderson).

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Em segundo lugar, o cinema é ao mesmo tempo arte e indústria, e em nenhum lugar fora da Europa Ocidental e, talvez, especialmente fora da Suécia, um diretor poderia contar, inicialmente, com a dependência da burocracia estatal e com a independência do imediatismo do mercado. A Suécia do pós-segunda guerra estava dividida entre o projeto de construção do seu Welfare State e a culpa diante do silêncio e da “neutralidade” de muitos diante do nazismo.

Também não se explicaria o peso e a densidade dos diálogos na obra bergmaniana sem a tradição teatral sueca e nórdica em geral, de Strindberg ou Ibsen, e sem a tradição cinematográfica de Viktor Sjöström, por exemplo. A produção de uma sociedade avançada, no aspecto material, permitiu a concentração incisiva nos problemas mais angustiantes e existenciais do homem moderno.

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A história, entretanto, só nos importa na medida em que é filtrada por indivíduos. Para Bergman, esses indivíduos não são alegorias, mas símbolos, encarnações concretas de situações históricas de vida e até de classe. Suas anotações prévias aos textos que serviram de base aos filmes Cenas de um casamento (Scener ur ett Äktenskap, 1973) e Vida de Marionetes (Ur marionetternas liv, 1980) são bastante explícitas a esse respeito.

No primeiro caso ele diz: “Johan e Marianne são filhos de convenções bem precisas, formados dentro da ideologia da segurança material. Jamais consideraram os princípios burgueses em que vivem, como restritivos ou falsos. Organizam-se dentro de um padrão de vida que estão dispostos a transmitir para os descendentes. Suas atividades políticas anteriores são mais uma confirmação dessa ideia do que uma contradição”.

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Este filme, produzido para a televisão sueca, não escapou a certos exageros acerca do comportamento de Marianne. De tal sorte que parte de suas reações pareceu até mesmo a Liv Ulmann (a atriz que a interpretou) um tanto inverossímil. A reclamação de Liv Ulmann, em entrevista a David Outerbridge, procede, mas para Bergman o mais importante era levar os personagens ao paroxismo.

Em Vida de Marionetes, ele ressalta isto melhor: “Por que surge uma reação de curto-circuito numa pessoa totalmente bem adaptada e bem estabelecida?”. Sobre Face a face (Ansikte mot Ansikte, 1975), Bergman escreveu:  “Desta maneira, começou a personagem principal do nosso filme a tomar forma: um ser humano bem integrado na sociedade, capaz e disciplinado, uma profissional bem conceituada na sua carreira, bem casada com um talentoso colega, e rodeada daquilo que se pode chamar as coisas boas da vida. É o desmoronamento rápido e chocante desse caráter excepcional e seu doloroso renascimento que tentei descrever”.

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Amor

A falta de amor está vinculada a inúmeros filmes de Bergman e à sua própria vida. Nenhum resumo poderia ser melhor do que uma única narrativa do personagem Viktor, de Sonata de Outono (Herbstsonate ou Hostsonat, 1978): “Quando eu perguntei a Eva se ela queria se casar comigo, ela endireitou-se e disse que não me amava. Eu perguntei se ela amava outra pessoa. Ela disse que era incapaz de amar”.

O filme Trölosa (Infiel), de Liv Ulman (com roteiro de Bergman) tem várias sequências explicitamente autobiográficas. A fuga de David e Marianne para Paris. O sexo. A decepção. A infinita capacidade de destruição mútua de um casal. O abandono da filha à luta feroz dos adultos. Basta ler a autobiografia de Bergman, Lanterna Mágica (Guanabara), para ler o relato de um autor teatral em fuga com a amante para… Paris.

Em Morangos Silvestres o tema da falta de amor encontra-se condensado em uma cena terrível. Isak Borg amou Sara, mas ela casou-se com outro. Depois de velho, ele é levado por um homem em seu sonho. Param diante de uma clareira na floresta. Lá está sua mulher num ato sexual. O homem diz: “Muitos esquecem uma mulher que morreu há trinta anos, alguns guardam um doce retrato fugidio, mas você pode lembrar esta cena em sua memória. Parece estranho? Terça feira, primeiro de maio, 1917. Você estava exatamente aqui, e ouviu e viu precisamente o que aquele homem e aquela mulher fizeram”.

Como muito bem notou Jörn Donner, a importância da cena não está no ato, mas nas palavras da mulher. Ela planeja ir para casa e contar tudo ao marido. Ela já sabe o que ele irá dizer: “Pobre garota, eu sinto tanta pena de você. Exatamente como se fosse um deus. E eu irei chorar e direi: você tem realmente pena de mim? E ele dirá: eu sinto uma pena terrível de você e, então, eu chorarei mais e perguntarei se ele pode me esquecer, e ele dirá: você não deveria pedir para esquecer você. Eu nada tenho a esquecer, mas ele não sentirá nenhuma de suas palavras porque ele é completamente frio…”.

A posse de sua mulher por outro homem já importa pouco. Isak é frio. A combinação de “Is” (gelo) e “Borg” (fortaleza) foi apenas uma coincidência, como acentuou o próprio Bergman em seu livro Imagens (Martins Fontes). Como se estivesse morto. Uma das primeiras cenas do filme é o seu sonho. Ele se vê num caixão. Depois se prepara para viajar de Estocolmo até Lund, onde receberá o título de Doutor Honoris Causa em uma Universidade. Esta cerimônia parece extremamente fúnebre.

A sua mãe também é fria. O seu filho também é frio e deseja morrer. Qual a origem dessa frieza? No filme, a mãe de Isak sente frio no ventre. Isto remete a uma passagem autobiográfica de Bergman: “Eu tinha a impressão de que certas crianças nasciam de úteros frios”. A chave explicativa é, portanto, a infância.

Infância

O princípio de Morangos Silvestres é, de fato, a infância. Victor Sjöström – o grande diretor e ator sueco – tinha 78 anos quando atuou em Morangos Silvestres. Em 1916, durante uma crise na vida pessoal, Sjöström resolveu viajar de bicicleta por partes do país que ele sabia que tinha vivido na infância. Esta viagem coincide com o papel desempenhado agora por ele, aos 78 anos de idade.

Todavia, o próprio Bergman, em entrevista a Björkman, Sima e Manns, dá a explicação sobre a origem do roteiro: “Um dia, era de manhã cedo, peguei a estrada para Dalécarlie. Saí de Estocolmo às 4 ou 5 horas. Uma hora depois, aproximadamente, eu estava em Uppsala. (…). Vovó morava na rua Nedre Slottsgatan, número 14, em frente ao Skrapan, a escola, vocês sabem. Era um edifício muito velho e ela tinha um apartamento imenso. No longo corredor, tinha um banheiro com as paredes forradas de veludo. Os aposentos eram grandes, havia relógios de parede que tocavam, tapetes enormes, e móveis imponentes. O interior não tinha mudado desde que minha avó mudou para lá, recém-casada. Era um pouco a reunião do mobiliário de duas famílias burguesas, com quadros da Itália, esculturas e palmiers. Era lá que eu morava, de tempos em tempos, quando era pequeno, e este meio me marcou fundo. Em suma, neste dia, chegando em Uppsala, me veio subitamente a idéia de dar uma volta no número 14 da rua Slottsgatan. Era no outono, o sol começava a se mostrar atrás da Catedral e os relógios soavam 5 horas. Eu entro no pequeno pátio, que era recoberto de pedra redonda, subo as escadas e no momento em que pego o puxador da porta de serviço, que tinha ainda um vidro despolido colorido, digo a mim mesmo de repente: imagine um pouco, você abre a porta, e o que você vê, a velha Lalla, a velha cozinheira, com seu grande avental. Ela está preparando a sopa de aveia, como ela fez tantas vezes quando eu  era pequeno. De um golpe só podia abrir a porta da minha infância”.

Ora, Morangos Silvestres é a viagem de um velho num único dia entre Estocolmo e Lund. E, ao mesmo tempo, conta os sonhos que ele tem durante a viagem. A volta à infância. Sua história. A história de um bacteriologista envolto numa tradição que é apresentada pelo diretor como fúnebre, morta, de um país que já não mais existe. Entre a infância e a coroação de sua história de vida, medeia a amada que não se casou com Isak. Enfim, entre a história acabada e a infância nostálgica, um amor perdido para sempre.

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