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Carlos Eduardo Araújo

Bacharel em Direito, mestre em Teoria do Direito e professor universitário

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É isto um homem? - Os direitos humanos pelos olhos de primo levi

O tema dos Direitos Humanos ganha, transcorrer dos anos, importância renovada e deve ocupar, hoje e sempre, destacado lugar no debate público, nacional e internacional

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Eles povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse concentrar numa imagem todo o mal do nosso tempo, escolheria essa imagem que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento. (LEVI, 1988).

O tema dos Direitos Humanos ganha, transcorrer dos anos, importância renovada e deve ocupar, hoje e sempre, destacado lugar no debate público, nacional e internacional.

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No dia 10 de dezembro de 2018, mais uma efeméride lembrou os 70 anos da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Referida declaração veio a lume em 1948, como uma resposta aos horrores do Holocausto e todas as transgressões que foram perpetradas contra a dignidade da pessoa humana, durante a segunda guerra mundial. 

Consoante Devine, Hansen e Wilde (2007): 

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Existe um amplo consenso de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 constitui o ponto de partida do movimento moderno de direitos humanos – é a quintessência dos documentos de direitos humanos. Segundo o Dr. H.V. Evatt, presidente da Assembléia Geral da ONU de 1948, “milhões de homens, mulheres e crianças em todo o mundo, a muitas milhas de Paris e de New York, tentarão buscar neste documento ajuda, orientação e inspiração”. 

Flávia Piovesan (2011) dirá que “A Declaração consolida a afirmação de uma ética universal ao consagrar um consenso sobre valores de cunho universal a serem seguidos pelos Estados”. 

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Uma visão otimista e, talvez, um tanto ingênua levou parte da humanidade a imaginar e ter esperanças de que depois das malignidades perpetradas durante a segunda guerra mundial e com a emergência da internacionalização dos direitos humanos, simbolizada na Declaração dos Direitos Humanos e nos tratados que a sucederam, as violações aos aludidos direitos cessariam ou seriam significativamente minoradas, tornando-os, gradativamente, respeitados, observados, obedecidos e as infrações deles resultantes seriam eventos históricos, que deveriam ser guardados no escaninho da memória da humanidade. Talvez tal convicção se amoldasse ao otimismo iluminista do século XVIII, que foi amargamente sepultado pelas atrocidades do Holocausto, mas se mostrou utópica no século XX, deitando seus maléficos efeitos sobre nosso século XXI. 

A Declaração universal dos Direitos Humanos não é um tratado, mas uma resolução que não disporia de força coercitiva para obrigar ou constranger os Estados Nacionais ao cumprimento interno de seus ditames. O seu propósito, como se depreende de seu preâmbulo, é promover o reconhecimento universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais a que faz menção a Carta da ONU, de 1945, em particular por meio de seus artigos 1º, item 3 e 55. Nesse último artigo da Carta está a previsão de que as Nações Unidas devem promover o respeito e a observância universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. No artigo 56, do mesmo instrumento, está consignado que é dever dos membros das Nações Unidas envidarem esforços e intentar ações conjuntas ou separadas para o alcance dos propósitos enunciados no artigo 55.

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Todavia, ainda que à Declaração Universal de 1948 não se tenha dado a forma de um tratado internacional, “apresenta força jurídica obrigatória e vinculante, na medida em que constitui a interpretação autorizada da expressão “direitos humanos” ... Ressalte-se que, à luz da Carta, os Estados assumem o compromisso de assegurar o respeito universal e efetivo aos direitos humanos”. (PIOVESAN, 2011).

Ocorre que, hodiernamente, as transgressões aos direitos humanos seguem inabaláveis em seu curso, reclamando dos governos e da comunidade internacional vigília constante e ininterrupta. Basta um olhar para o cenário nacional brasileiro e para a cena internacional para sermos invadidos por uma pletora de situações e fatos ilustrativos do cotidiano e comezinho desrespeito aos mencionados direitos. 

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No cenário internacional nos deparamos com guerras, que ocorrem, concomitantemente, em vários continentes, com abundantes violações aos direitos humanos, notadamente tendo as populações civis como o primeiro, indefeso e principal alvo, a exemplo do que ocorre na Síria, Iêmen, Líbia, etc. Assistimos também ao problema dos refugiados que afluem às centenas de milhares, principalmente para a Europa, fugindo de guerras, conflitos religiosos, epidemias, perseguições políticas e étnicas, provocando uma crise humanitária de proporções imensuráveis. 

Outro exemplo abjeto de frontal desrespeito aos direitos humanos foi-nos dado pela “maior democracia do mundo moderno”, os EUA. Refugiados que tentam ingressar nesse país são tratados com iniqüidade, de forma violenta, indigna e desumana, com famílias sendo “enjauladas” e pais separados de seus filhos, muitos em tenra idade. Cenas de chocar e sensibilizar os mais inflexíveis corações.

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Zygmunt Bauman (2017), com sua peculiar sensibilidade social e seu olhar crítico e penetrante para diferentes mazelas contemporâneas, que afligem a sociedade global, com reflexos e medos provocados na Europa, constata que:

Acumulam-se os sinais de que a opinião pública, em conluio com uma mídia ávida por audiência, está se aproximando de modo gradual, porém inexorável, do ponto de “fadiga da tragédia dos refugiados”. Crianças afogadas, muros apressadamente erguidos, cercas de arame farpado, campos de concentração superlotados e competindo entre si para acrescentar o insulto de tratarem os migrantes como batatas quentes às injúrias do exílio, de escapar por pouco dos perigos enervantes da viagem rumo à segurança – todas essas ofensas morais cada vez são menos notícia e aparecem com menor frequência “no noticiário”. Infelizmente, o destino dos choques é transformar-se na rotina tediosa da normalidade – e o dos pânicos é desgastar-se e desaparecer da vista e das consciências, envoltos no véu do esquecimento. Quem se lembra agora dos refugiados afegãos buscando asilo na Austrália, espremendo-se contra as cercas de arame farpado de Woomera ou confinados nos grandes centros de detenção construídos pelo governo australiano em Nauru ou na ilha Christmas, “para impedi-los de entrar em suas águas territoriais”? Ou das dezenas de exilados sudaneses mortos pela polícia no centro do Cairo, “após terem sido privados de seus direitos pelo Alto Comissariado para Refugiados, das Nações Unidas”?

A crise humanitária vivenciada por nossa vizinha Venezuela, com reflexos no território brasileiro, para o qual têm afluído milhares de cidadãos daquele país, como conseqüência, além de crise política interna, com a relativização da democracia, igualmente vem sofrendo com ações imperialistas e com um bloqueio econômico reiterado, promovidos sob a liderança norte-americana.  Essas hostilidades são apoiadas no Brasil, inclusive pelo governo Bolsonaro, com um show de preconceitos, desinformação e má-fé da grande imprensa brasileira. Não restam dúvidas que os problemas venezuelanos são graves e urgentes, mas têm de ser enfrentados e solucionados internamente, em respeito ao princípio, agasalhado em nossa Constituição, da autodeterminação dos povos. Todavia, o ouro negro, depositado no subsolo venezuelano, com as maiores reservas petrolíferas do mundo, atrai a cobiça e o apetite insaciável do Tio Sam.

No Brasil, o histórico de desrespeito aos direitos humanos ganhou contornos abrangentes e inquietantes com a recente ascensão ao poder da extrema direita, com sua pauta homofóbica, misógina, racista, ecocida, de estímulo à violência, com o afrouxamento das regras para a posse de armas de fogo e com a anunciada criminalização dos movimentos sociais, como o MST e o MTST. Convivemos com denúncias diárias de ataques à comunidade LGBTI, assassinatos de lideranças sociais, cujo exemplo mais clamoroso é o bárbaro, impiedoso e lancinante caso Marielle Franco. Somem-se, ainda, as ameaças odientas e brutais contra o ex-deputado federal Jean Wyllys, reeleito para mais um mandato, o qual não foi assumido por temer por sua vida e de seus familiares. Ainda há que se acrescentar a essa conta, já extensa, os assassinatos de jornalistas, num dos mais altos índices do mundo. 

No plano das lesões aos direitos humanos de segunda geração – direitos econômicos, sociais e culturais – colecionamos transgressões à mão cheia. O desmonte do arcabouço jurídico-protetivo desses direitos foi iniciado de forma dramática no governo Temer, com a substancial supressão dos direitos sociais trabalhistas, denominada, eufemisticamente, “reforma trabalhista”. Direitos que resultaram de lutas sociais históricas e seculares foram banidos a canetadas e engodos. A pilhagem segue seu aterrador curso sob o governo de Jair Bolsonaro, com a “MP da Liberdade Econômica”, a qual visa dar cabo do que restou dos direitos trabalhistas, depois da pilhagem promovida pelo governo Temer. Está igualmente em curso o desmonte da Previdência Pública dos brasileiros, um dos mais exitosos sistemas de poupança solidária do mundo, sob a ludibriadora justificativa de que a mesma é deficitária e a que reforma será geradora de novos empregos e propiciará a economia de mais de um trilhão de reais, o que não corresponde à verdade dos fatos. O sábio legislador constituinte de 1988 previu, no artigo 195 da Constituição da República, fontes diversificadas de custeio que, na verdade, a faz superavitária. É bom lembrar que aludidos direitos mereceram proteção internacional, materializada no “Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, firmado em na Sede da ONU, em 1966, em Nova York e ratificado pelo Brasil.

Essas são algumas das situações em que os direitos humanos são vitimados cotidianamente, dia após dia, de minuto a minuto. Para apontar mais uma situação, que ensejou ações na “Corte Interamericana de Direitos Humanos” contra o Brasil, podemos citar nosso caótico e explosivo “Sistema Penitenciário Brasileiro”. Na maioria de nossos presídios seres humanos são encarcerados em condições subumanas, vivendo em situação de completa penúria. Tais instituições, onde os apenados deveriam cumprir suas penas e volverem ao convívio social, se transformaram em fábricas de delinqüência e crime organizado, potencializando, desmedidamente, o grau de violência e insegurança que envolve e faz prisioneira, por sua vez, toda a sociedade, ecoando de parte dela o bordão facínora: “Bandido bom é bandido morto”! 

O Supremo Tribunal Federal reconheceu, em julgamento recente, que vivemos, quanto ao Sistema Penitenciário, aquilo que já foi denominado pela Corte Constitucional da Colômbia, “estado de coisas inconstitucional”, diante da seguinte situação: violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades. 

Não nos esqueçamos, outrossim, das vítimas cotidianas da violência urbana, que atemoriza milhões de pessoas nas cidades brasileiras e que tem alcançado até mesmo o meio rural. “Balas perdidas”, “explosão de caixas eletrônicos”, “sequestros relâmpagos”, “latrocínios”, fazem de reféns, recorrentes e habituais, os cidadãos e a cidadania brasileira.

Temos a lamentar, todavia, que, tanto no plano internacional, como internamente, os instrumentos necessários para dar efetividade às normas jurídicas, decorrentes de tratados internacionais e leis nacionais, são de aplicação deficiente, comprometendo, em demasia, sua eficácia.

Feita uma breve e parcial apresentação do contexto interno e internacional, que envolve os direitos humanos, nos ocuparemos, daqui por diante, em perscrutar as origens do “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, sub-ramo do direito público internacional, vendo-as a partir das lentes do escritor Primo Levi, testemunha ocular das mazelas do Holocausto. Primo Levi, foi prisioneiro de um campo de concentração entre os anos de 1944 e 1945, e passou as décadas seguintes, a essa abominável experiência, escrevendo, analisando e refletindo sobre tal vivência.

A origem dos direitos humanos mergulha suas raízes, fundamente, na história da humanidade. A ideia de direitos inerentes à pessoa humana encontrou defensores ao longo da história, identificada em diferentes povos e culturas.

Antônio Augusto Cançado Trindade (2003) chega a dizer que: 

A ideia dos direitos humanos é, assim, tão antiga como a própria história das civilizações, tendo logo se manifestado, em distintas culturas e em momentos históricos sucessivos, na afirmação da dignidade da pessoa humana, na luta contra todas as formas de dominação e exclusão e opressão, e em prol da salvaguarda contra o despotismo e a arbitrariedade, e na asserção da participação na vida comunitária e do princípio da legitimidade. O reconhecimento destes valores e conceitos básicos, formando padrões mínimos universais de comportamento e respeito ao próximo, constitui um legado, mais do que do chamado pensamento ocidental, das mais diversas culturas, da consciência universal de sucessivas gerações de seres humanos, tendo presentes suas necessidades e responsabilidades. 

Assim, como se colheu do trecho acima, da lição do prestigiado Internacionalista e juiz da Corte Internacional de Justiça, a ideia de direitos humanos acompanha praticamente toda a historia humana. Desta conclusão não destoa o magistério do professor André de Carvalho Ramos (2014):

Não há um ponto exato que delimite o nascimento de uma disciplina jurídica. Pelo contrário, há um processo que desemboca na consagração de diplomas normativos, com princípios e regras que dimensionam o novo ramo do Direito. No caso dos direitos humanos, o seu cerne é a luta contra a opressão e busca do bem-estar do indivíduo; consequentemente, suas “ideias-âncoras” são referentes à justiça, igualdade e liberdade, cujo conteúdo impregna a vida social desde o surgimento das primeiras comunidades humanas. Nesse sentido amplo, de impregnação de valores, podemos dizer que a evolução histórica dos direitos humanos passou por fases que, ao longo dos séculos, auxiliaram a sedimentar o conceito e o regime jurídico desses direitos essenciais. A contar dos primeiros escritos das comunidades humanas ainda no século VIII a.C. até o século XX d.C., são mais de vinte e oito séculos rumo à afirmação universal dos direitos humanos, que tem como marco a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. 

Mas em que consistem estes direitos, cuja origem e existência perpassam toda a história humana e, paradoxalmente, são tão desdenhosamente ignorados em várias partes do mundo e do Brasil, historicamente? Segundo André de Carvalho Ramos (2014): “Os direitos humanos consistem em um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade. Os direitos humanos são os direitos essenciais e indispensáveis à vida digna”. 

Há um consenso entre os internacionalistas quanto ao fato de que a origem do “Direito Internacional dos Direitos Humanos” situar-se-ia no Pós Segunda Guerra Mundial e teria surgido em razão desse grande e traumático conflito mundial. Thomas Buergenthal comunga deste entendimento: 

O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse. (Apud PIOVESAN, 2014).

Neste mesmo diapasão a prestigiada internacionalista Flávia Piovesan (2014):

Considerando a historicidade dos direitos, destaca-se a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. Essa concepção é fruto da internacionalização dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do Pós-Guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos, a Era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, que resultou no envio de 18 milhões de pessoas a campos de concentração, com a morte de 11 milhões, sendo 6 milhões de judeus, além de comunistas, homossexuais e ciganos. 

Continua a professora Flávia Piovesan (2014): 

É nesse cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Com efeito, no momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que é cruelmente abolido o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável. A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor-fonte do Direito. 

Os crimes perpetrados durante a segunda guerra mundial, época de uma grande involução humana, no plano da ética e dos valores, fez mergulhar a humanidade em uma barbárie inominável e insólita, que chocou fortemente o mundo “civilizado”. Aprendemos da forma mais ignóbil, violenta e cruel possível, que a perfídia humana pode cavar fundo num poço sem fundo.

Depois de 1945 foram inseridas no léxico da “civilizada” humanidade palavras como “Holocausto” e “Genocídio”, com uma força e veemência inimagináveis até então. A tão propalada civilização ocidental, principalmente no seu epicentro europeu, orgulhosa dos valores humanísticos e iluministas que a caracterizaram até então, que houvera produzido um legado de contribuições no campo da Filosofia, Literatura, Artes, Música, Teatro, História, viu emergir de um subterrâneo tétrico sua face horrenda e desprezível, a lá Dorian Gray.

Como dirão Devine, Hansen e Wilde:

A ironia do Holocausto é que ele acabou causando o repúdio definitivo da crença no progresso humano supremo, ideia que perdurou até o início do século XX. A partir de então, filósofos, teóricos políticos, teólogos, o público em geral e seu líderes tiveram de lidar com a realidade do quanto uma guerra em escala mundial podia tornar-se desumana. Desse reconhecimento proveio a conclusão de que tal horror não deve ocorrer, e uma miríade de mecanismos foram desenvolvidos para evitá-lo. O tamanho, a amplitude e audácia colossais do Holocausto criaram pela primeira vez uma séria preocupação do Ocidente pelos direitos humanos.

Zygmunt Baumam (1998), uma das vozes mais lúcidas e clarividentes de nosso tempo, faz uma arguta análise desse momento: 

O mundo dos campos da morte e a sociedade que engendra revelam o lado progressivamente mais obscuro da civilização judaico-cristã. Civilização significa escravidão, guerras, exploração e campos da morte. Também significa higiene médica, elevadas ideias religiosas, belas artes e requintada música. É um erro imaginar que civilização e crueldade selvagem sejam antíteses... Em nosso tempo as crueldades, como muitos outros aspectos do nosso mundo, passaram a ser administradas de maneira muito mais efetiva que em qualquer época anterior. Não deixaram e não deixarão de existir. Tanto a criação como a destruição são aspectos inseparáveis do que chamamos civilização. 

Depois de 1945 a sociedade internacional tomou conhecimento dos horrores perpetrados, principalmente pelo nazismo, com a divulgação da existência dos campos de concentração, espalhados por toda a Europa: fábricas de produção da morte, em escala industrial, presididas por um processo de “racionalização” burocrática. 

O efeito de estupefação e de medo que produziu a descoberta da magnitude dos crimes nazistas — “É a primeira vez que o homem dá lições ao inferno”, disse André Malraux — desencadeou no imediato e a posteriori uma espécie de desatenção voluntária ao alerta geral dos relatos dos deportados sobreviventes. Carregadores extenuados de uma “experiência” sem precedentes. (BAUMAN, 1998).

Os campos de concentração da Alemanha nazista e as atrocidades que ali foram perpetradas obrigaram a que se desse uma ressignificação àquilo que, até então, o direito conhecia e rotulava como crime. Como afirma Giorgio Agamben (2002):

O que aconteceu nos campos supera de tal modo o conceito jurídico de crime, que amiúde tem-se deixado simplesmente de considerar a específica estrutura jurídico-política na qual aqueles eventos se produziram. O campo é apenas o local que se realizou a mais absoluta conditio inhumana que se tenha dado sobre a terra. 

Ainda segundo Giorgio Agamben (2002): 

O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se regra [...]. Na medida em que os seus habitantes foram despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente à vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico jamais realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura vida sem qualquer mediação.

Como dirá Jeanne Marie Gagnebin: 

Esta ausência de normas, de nomoi, faz do campo de concentração, paradoxalmente, o “paradigma biopolítico do moderno”, um novo nomos, portanto, que solapa as condições de possibilidade de uma construção ética clássica. Solapa igual e especialmente a possibilidade de emitir um juízo ético a respeito daquilo que aconteceu (o que não é sinônimo de concordância). (Apud AGAMBEN, 2002)

O Holocausto é um inquestionável divisor de águas na história dos direitos humanos. A partir dele o mal se redimensionou, assumindo novos matizes, erigindo uma nova singularidade. 

Nas palavras de Juan Goytisolo: 

Até então, o mal – pois um nome tem que ser dado a essa assombrosa conjugação de circunstâncias apenas aparentemente inesperadas – infiltrara-se aos poucos, em silêncio, em estágios que pareciam inofensivos ... Ainda assim, revendo as coisas, fazendo uma análise retrospectiva, parecia óbvio que o acumulo de sinais não resultava de mera casualidade. Possuíam, ao contrário, por assim dizer, uma dinâmica própria, embora ainda secreta, como uma corrente subterrânea que vai aumentando, encorpando e, de repente, impetuosamente, aflora; bastava voltar atrás, à época em que surgiram os primeiros sinais ameaçadores, e traçar um gráfico, um quadro clínico, de sua irresistível ascensão”. (Apud BAUMAN, 1998).

Entre os sobreviventes dessas cloacas mortíferas surgiram relatos e testemunhos dos horrores vivenciados por milhões de pessoas. Tais relatos passaram a integrar o que foi denominado de “Literatura de Testemunho”.

Várias obras e inúmeros autores se notabilizaram através desses registros, verdadeiros libelos acusatórios a esbofetear a face horrenda de uma dada “humanidade”.

Uma ínfima parte daqueles que vivenciaram a experiência dos campos da morte sobreviveu. Em alguns desses, o desejo de fazer de si mesmos um testemunho material e eloqüente do horror sofrido, foi o estímulo que os manteve vivo, em meio ao morticínio incomplacente. É o que se extrai do depoimento do austríaco Hermann Langbein:

De minha parte, tinha decidido firmemente que, independente do que me viesse a acontecer, não me teria tirado a vida. Queria ver tudo, viver tudo, fazer experiência de tudo, conservar tudo dentro de mim. Com que objetivo, dado que nunca teria tido a possibilidade de gritar ao mundo aquilo que sabia? Simplesmente porque não queria sair de cena, não queria suprimir a testemunha que podia me tornar. (Apud AGAMBEN, 2008).

Giogio Agamben (2008), passando em revista vários relatos de sobreviventes dos campos de concentração, se deparou com outras razões que viabilizaram o não aniquilamento. Segundo conclui, nem todos, ou melhor, só uma parte ínfima dos detidos invoca para si mesma a necessidade do testemunho. Podendo se tratar de uma razão mais trivial: gostaria de sobreviver por este ou aquele motivo, por esse ou aquele objetivo, e se encontram centenas de pretextos. “A verdade é que se gostaria de viver a qualquer preço”, como dirá um sobrevivente. Ou então pode tratar-se “apenas de vingança”, como admitirá W. Sofsky: “naturalmente poderia suicidar-me lançando-me sobre a cerca elétrica, isso sempre podemos fazê-lo. Mas eu quero viver. Quem sabe aconteça um milagre e seremos libertados. E então irei me vingar, contarei a todo o mundo o que aconteceu aqui dentro”. (Apud AGAMBEN).

Márcio Seligmann-Silva (2008) entende que:

O testemunho cumpre um papel de justiça histórica e de documento para a história. Foi este o sentido principal sobretudo da produção de testemunhos no imediato pós-guerra, como foi o caso da importante obra de Primo Levi, É isto um homem? A segunda cena característica é mais individual e vê o testemunho como um momento de perlaboração do passado traumático. ... O testemunho possui um papel de aglutinador de um grupo de pessoas — antes de mais nada, em se tratando da Shoah, dos próprios judeus — que constroem a sua identidade a partir dessa identificação com essa “memória coletiva” de perseguições, de mortes e dos sobreviventes.

A origem da “internacionalização’ dos direitos humanos está indubitavelmente ligada ao Holocausto e aos campos de concentração, por ele forjados. O fio condutor da análise que doravante vamos empreender é a pungente, provocadora e angustiante “literatura de testemunho”, composta por relatos, ensaios e pelas memórias daqueles que, tendo visitado o inferno, voltaram para nos informar que ele é aqui.

François Ost (2005) reserva à literatura um papel destacado na análise do fenômeno jurídico e social: “Mostrar que a literatura contribui diretamente para a formulação e a elucidação das principais questões relativas à justiça, à lei e ao poder ...” 

A obra do escritor italiano Primo Levi, da qual pretendemos extrair determinados trechos, ilustrativos dos horrores do Holocausto, nos coloca em contato direto com os horrores dos “campos da morte”, com o seu cotidiano de espoliação, degradação, violência, desumanização, tortura e morte de seres humanos. Concomitantemente nos situa e nos põem em contato com essas ações que serão o mote para o surgimento da “internacionalização dos direitos humanos”.

O escritor italiano Primo Levi (1919-1987) sobreviveu à atroz experiência vivenciada em um dos mais tristemente lembrados campos de concentração, o campo de Auschwitz, na Polônia.

A partir de 1940 o governo nazista construiu uma rede de campos de concentração, por vários pontos da Europa invadida e submetida ao Terceiro Reich. Auschwitz, um dos mais funestos e conhecidos deles, localizava-se no sul da Polônia.

Como nos informa Zygmunt Bauman (1998): 

Auschwitz foi uma extensão mundana do moderno sistema fabril. Em vez de produzir bens, a matéria-prima eram seres humanos e o produto final, a morte, com tantas unidades por dia cuidadosamente registradas nos mapas de produção do administrador. As chaminés que são o próprio símbolo do moderno sistema fabril, despejavam uma fumaça acre de carne humana sendo queimada. A malha ferroviária da Europa moderna, com sua brilhante organização, passou a transportar uma nova matéria-prima para as fábricas. E da mesma maneira que fazia com outros tipos de carga. Nas câmaras de gás as vítimas inalavam gazes letais desprendidos por pelotas de ácido prússico, produzidas pela avançada indústria química da Alemanha. Engenheiros projetavam os crematórios; administradores de empresa projetaram o sistema burocrático, que funcionava com um capricho e eficiência que nações mais atrasadas invejariam. Mesmo o próprio plano global era um reflexo do moderno espírito científico desvirtuado. O que testemunhamos não foi nada menos que um esquema de engenharia social em massa ...  

Primo Levi nasceu em Turim, em 1919, tendo se formado em Química nessa mesma cidade. Nasceu, triste coincidência, concomitantemente à fundação do movimento fascista por Benito Mussolini. Em dezembro de 1943, quando tinha 24 anos, se engaja em um movimento antifascista e, logo em seguida, é preso. Como dirá mais tarde, era um jovem judeu, sem nenhuma experiência e com uma forte propensão ao isolamento, como decorrência das leis antijudaísmo impostas na Itália de então. Assim, ao ser preso tem a ingenuidade de informar sua ascendência judaica e é, em conseqüência, entregue pela polícia fascista à Gestapo. Em seguida, depois de um périplo por outros campos foi enviado para Auschwitz, onde permanecerá por quase um ano, até a libertação do campo pelos russos em janeiro de 1945.

Em seu mais contundente e clássico livro “É isto um Homem?”, escreve: 

Como judeu, mandaram-me a Fóssoli, perto de Módena, onde em um grande campo de concentração, anteriormente destinado aos prisioneiros ingleses e americanos, eram reunidas as pessoas pertencentes às várias categorias não gratas ao governo fascista republicano. (LEVI, 1988).

Primo Levi (1988) narra-nos o momento em que ele os demais (“peças”) são reunidos e colocados em trens de ferro rumo a um destino até ali ignorado: 

Com a absurda precisão à qual em breve nos acostumaríamos, os alemães fizeram a chamada. Ao final — Wieviel Stuck? — perguntou o sargento, e o cabo, batendo continência, respondeu que as “peças” eram seiscentas e cinqüenta, e que tudo estava em ordem. Embarcaram-nos, então, nos ônibus e nos levaram até a estação de Cárpi. Lá nos esperavam o trem e a escolta para a viagem. E lá recebemos as primeiras pancadas, o que foi tão novo e absurdo que não chegamos a sentir dor, nem no corpo nem na alma. Apenas um profundo assombro: como é que, sem raiva, pode-se bater numa criatura humana? Os vagões eram doze, e nós, seiscentos e cinqüenta; no meu vagão havia apenas quarenta e cinco, mas era um vagão pequeno. Ali estava, então, sob nossos olhares, sob nossos pés, um dos famosos comboios alemães, desses que não retornam, dos quais, com um calafrio e com uma pontinha de incredulidade, tantas vezes tínhamos ouvido falar. Era isso mesmo, ponto por ponto: vagões de carga, trancados por fora, e, dentro, homens, mulheres e crianças socados sem piedade, como mercadoria barata, a caminho do nada, morro abaixo, para o fundo. 

Primo Levi (1988) continua seu relato: 

Foram justamente as privações, as pancadas, o frio, a sede que, durante a viagem e depois dela, nos impediram de mergulhar no vazio de um desespero sem fim. Foi isso. Não a vontade de viver, nem uma resignação consciente: dela poucos homens são capazes, e nós éramos apenas exemplares comuns da espécie humana. As portas foram trancadas imediatamente, mas o trem só partiu à noite. Soubemos com alívio qual era o nosso destino: Auschwitz. Um nome que, para nós, nada significava, mas que deveria corresponder a algum lugar deste mundo. ... Das quarenta e cinco pessoas do meu vagão, só quatro tornaram a ver as suas casas; e o meu vagão foi, de longe, o mais afortunado. 

As condições dessa surreal e ímpia viagem ao extremo sul do perecimento, do padecimento, do aniquilamento, eram as mais inóspitas, ásperas, adversas e degradantes: 

Sofríamos com a sede e o frio; a cada parada, gritávamos pedindo água, ou ao menos um punhado de neve, mas raramente fomos ouvidos; os soldados da escolta afastavam quem tentasse aproximar-se do comboio. Duas jovens mães, com crianças de peito, queixavam-se dia e noite implorando por água. Havia também a fome, a fadiga, a falta de sono, mas a mesma tensão nervosa as mitigava. As noites, porém, eram pesadelos sem fim. (LEVI, 1988).

A cena da chegada dos vagões dos trens ao seu nefasto destino nos é razoavelmente conhecida, povoam nosso imaginário, lá onde foram se alojar, depois de tantos livros lidos e tantos filmes assistidos: ficção e realidade deram as mãos na tentativa de nos convencer que aquilo de fato aconteceu, fomos capazes daquilo e muito mais. O desalento toma-nos, deixa-nos revoltados, atônitos e, finalmente, perplexos como resultado da triste constatação de nossa ignóbil existência. Primo Levi (1988) nos informa que: 

Em dez minutos todos nós, homens válidos, fomos reunidos num grupo. O que aconteceu com os demais, mulheres, crianças e velhos, nunca pudemos descobrir, nem na época, nem depois. Foram, simplesmente, tragados pela noite. 

Essa nefasta experiência marcará indelevelmente a vida de Primo Levi até sua morte, por suicídio, em 1987, em sua cidade natal, Turim. Sobre tão brutal experiência escreveu a trilogia: “É isto um Homem?”, “A Trégua” e “Os Afogados e os Sobreviventes”.

No terceiro livro de sua trilogia do Holocausto Primo Levi (2004) dá voz a seu companheiro de mortificação Jean Améry que, como ele próprio fará uma década depois, comete suicido em 1978: 

Não se lêem sem espanto as palavras escritas por Jean Améry, o filósofo austríaco torturado pela Gestapo por militar na resistência belga e depois deportado para Auswchwitz por ser judeu: Quem foi torturado permanece torturado. (...) Quem sofreu o tormento não poderá mais ambientar-se no mundo, a miséria do aniquilamento jamais se extingue. A confiança na humanidade, já abalada pelo primeiro tapa no rosto, demolida posteriormente pela tortura, não se readquire mais.

O famigerado campo de Auschwitz é preservado ainda hoje, como prova viva de que tudo aquilo que os alemães foram capazes de perpetrar, para que não o esqueçamos, para que não se permita apagar tão horrendo passado, como já o tentaram e ainda hoje tentam, os “revisionistas” de plantão, como aqui no Brasil querem reescrever a história da ditadura militar, em uma narrativa benfazeja aos militares. 

Em texto de 1980, Primo Levi (2016) mostra sua indignação com a má-fé revisionista, contra a qual terá de lutar muitas vezes. Em um texto que fala da suspeita de falsificação levantada contra o relato da jovem Anne Frank diz: 

A estratégia, ao que parece, é sempre a mesma. No passado “alguém” desencavou na França um professorzinho mal informado, muito ambicioso e meio esquisito, e o incumbiu de nobre missão: demonstrar que as câmeras de gás de Auschwitz nunca existiram, ou melhor, existiram sim, mas serviam só para matar piolhos; que toda a impressionante documentação sobre o genocídio nazista, mapas e objetos, memoriais e museus, tudo é obra de falsários; que, por conseguinte, todos os testemunhos de acusação são mentirosos. O argumento chave do professorzinho era singular: afirmou-se que havia câmaras de gás em Oranienburg e Dachau; não havia; portanto, não havia em lugar nenhum, e a matança é uma invenção dos judeus. 

Em outro texto, “Caçadores de mentiras para negar o Holocauto”, do mesmo ano (1980), Primo Levi (2016) volta ao tema do revisionismo negacionista:

Em Torrance, perto de Los Angeles, foi fundado um Ìnstitute for Hostorical Review”, cujo objetivo estatutário é a revisão da história oficial da Segunda Guerra Mundial. Sobre essa finalidade nada haverá que objetar se dos estatutos não se inferisse que essa revisão é de mão única: está preocupada apenas em negar ou minimizar os crimes do nazismo. Não surpreende ler que em Torrance ocorreu um seminário do qual participou um especialista no ramo, aquele professor Faurisson que tentou obstinadamente dar o que falar no ano passado, ao afirmar que as câmaras de gás de Auschwitz não mataram ninguém, aliás, foram construídas depois da guerra com o objetivo de difamar o regime nazista. 

À entrada do campo de Auschwitz há um grande portão e, em cima do mesmo, uma frase bem iluminada “Arbeit Macht Frei” (o trabalho liberta), a ilustrar o humor negro e pútrido dos algozes. Em um texto em que analisa essa expressão Primo Levi (2016) constata:

Como todos sabem, essas eram as palavras escritas sobre o portão de entrada do campo de concentração de Auschwitz. Seu significado literal é “o trabalho liberta”; seu significado profundo é bem menos claro, só pode causar perplexidade e presta-se a algumas considerações. O campo de concentração de Auschwitz foi criado razoavelmente tarde; foi concebido desde o início como campo de extermínio, não como campo de trabalho. [...] É provável que tivesse significado irônico, que brotasse daquela veia humorística pesada, arrogante, sinistra, cujo segredo só os alemães têm e que só em alemão tem nome. 

Primo Levi (1988) reconstrói, pelo fio de sua prodigiosa memória, os instantes iniciais, logo após ter passado pela seleção, na qual uns tomam imediatamente o caminho da morte e outros têm o direito de prolongar seu calvário: 

Descemos, fazem-nos entrar numa sala ampla, nua e fracamente aquecida. Que sede! O leve zumbido da água nos canos da calefação nos enlouquece: faz quatro dias que não bebemos nada. Há uma torneira e, acima, um cartaz: proibido beber, água poluída. Besteira: é óbvio que o aviso é um deboche. “Eles” sabem que estamos morrendo de sede, botam-nos numa sala, há uma torneira e Wassertrinken verboten. Bebo, e convido os companheiros a beber também, mas logo cuspo fora a água: está morna, adocicada, com cheiro de pântano. Isto é o inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gotejante mas que não tem água potável, esperando algo certamente terrível, e nada acontece, e continua não acontecendo nada. Como é possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos. Alguns sentam no chão. O tempo passa, gota a gota.  

O ímpeto que preciso conter, para o bem de todos nós, é não me deixar tomar pela citação, pela transcrição de toda a obra, de cada descrição, de cada situação, em que a experiência humana é levada a limites inimagináveis. Além de tudo isso, Primo Levi, com seu domínio verbal e com a literariedade de seu texto, é inimitável.

Diante dessa atroz realidade, como sobreviver, como não sucumbir, como não submergir diante de tanta violência, privação, fome e frio? Como manter a sanidade, a humanidade, a civilidade, a civilização? Primo Levi (1988) nos dá alguma pista: 

A capacidade humana de cavar-se uma toca, de criar uma casca, de erguer ao redor de si uma tênue barreira defensiva, ainda que em circunstâncias aparentemente desesperadas, é espantosa e mereceria um estudo profundo. Trata-se de um precioso trabalho de adaptação, parte passivo e inconsciente, parte ativo: cravar um prego no beliche para pendurar os sapatos, à noite; ajustar tácitos acordos de não-agressão com os vizinhos; intuir e aceitar os hábitos e leis peculiares do Kommando e do Bloco. Graças a esse trabalho, depois de umas semanas consegue-se alcançar certo equilíbrio, certo grau de segurança frente aos imprevistos; o ninho está feito, o trauma da mudança foi superado. 

Primo Levi (1988) faz uma reflexão, digna de nota, sobre a vida no campo de concentração:

Essa, então, é a vida ambígua do Campo. Desse modo brutal, oprimidos até o fundo, viveram muitos homens do nosso tempo; todos, porém, durante um período relativamente curto. Poderíamos, então, perguntar-nos se vale mesmo a pena, se convém que de tal situação humana reste alguma memória. A essa pergunta, tenho a convicção de poder responder que sim. Estamos convencidos de que nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que todas merecem ser analisadas; de que se podem extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse mundo particular que estamos descrevendo. Desejaríamos chamar a atenção sobre o fato de que o Campo foi também (e marcadamente) uma notável experiência biológica e social. Fechem-se entre cercas de arame farpado milhares de indivíduos, diferentes quanto a idade, condição, origem, língua, cultura e hábitos, e ali submetam-nos a uma rotina constante, controlada, idêntica para todos e aquém de todas as necessidades; nenhum pesquisador poderia estabelecer um sistema mais rígido para verificar o que é congênito e o que é adquirido no comportamento do animal-homem frente à luta pela vida. Não acreditamos na dedução mais óbvia e fácil: de que o homem é essencialmente brutal, egoísta e estulto, como pareceria demonstrar o seu comportamento ao ruir toda a estrutura social, e que portanto o Häftling é somente o Homem sem inibições. Preferimos pensar que, quanto a isso, pode-se chegar apenas a uma conclusão: frente à pressão da necessidade e do sofrimento físico, muitos hábitos, muitos instintos sociais são reduzidos ao silêncio. 

Há uma questão que sempre afligiu Primo Levi e a muitos outros sobreviventes de campos de concentração: Por que sobrevivi, enquanto tantos sucumbiram? Quais circunstâncias físicas, psíquicas, ou de outras naturezas estão associadas à preservação da vida, nas condições mais adversas, e quais contribuem para o inevitável aniquilamento do corpo e da alma? Segundo Primo Levi (1988): 

Sucumbir é mais fácil: basta executar cada ordem recebida, comer apenas a ração, obedecer à disciplina do trabalho e do Campo. Desse modo, a experiência demonstra que não se agüenta quase nunca mais do que três meses. A história — ou melhor, a não-história — de todos os “muçulmanos” que vão para o gás, é sempre a mesma: simplesmente, acompanharam a descida até o fim, como os arroios que vão até o mar. Uma vez dentro do Campo, ou por causa da sua intrínseca incapacidade, ou por azar, ou por um banal acidente qualquer, eles foram esmagados antes de conseguir adaptar-se; ficaram para trás, nem começaram a aprender o alemão e a perceber alguma coisa no emaranhado infernal de leis e proibições, a não ser quando seu corpo já desmoronara e nada mais poderia salvá-los da seleção ou da morte por esgotamento. A sua vida é curta, mas seu número é imenso; são eles, os “muçulmanos”, os submersos, são eles a força do Campo: a multidão anônima', continuamente renovada e sempre igual, dos não-homens que marcham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em chamar “morte” à sua morte, que eles já nem temem, porque estão esgotados demais para poder compreendê-la. 

Entretanto, não se sobrevive impunemente a uma “experiência” como essa. As feridas físicas tendem a cicatrizar sem que, talvez, delas reste nenhum vestígio. As feridas impingidas à alma, essas são perenes, são como cicatrizes, que se formam na psique, como sequelas de grandes ferimentos, a mente lesionada jamais readquire sua tonicidade pregressa. Os sobreviventes carregam consigo, indefinidamente, a culpa por terem sobrevivido, quando “tantos bons e justos” tiveram suas vidas impiedosamente suprimidas. Acompanhemos as reflexões de Primo Levi (2004):

Você tem vergonha porque está vivo no lugar de um outro? E, particularmente, de um homem mais generoso, mais sensível, mais sábio, mais útil, mais digno de viver? É impossível evitar isso: você se examina, repassa todas as suas recordações, esperando encontrá-las todas, e que nenhuma delas se tenha mascarado ou travestido; não, você não vê transgressões evidentes, não defraudou ninguém, não espancou (mas teria força para tanto?), não aceitou encargos (mas não lhe ofereceram ...), não roubou o pão de ninguém; no entanto é impossível evitar. É só uma suposição ou, antes, a sombra de uma suspeita: a de que cada qual seja o Caim do seu irmão e cada um de nós (mas desta vez digo “nós” num sentido muito amplo, ou melhor, universal) tenha defraudado seu próximo, vivendo no lugar dele. É um suposição, mas corrói; penetrou profundamente, como um carcoma; de fora não se vê, mas corrói e grita. 

E a vergonha de quem inflige dor? De quem sabia o que acontecia e não agiu? A população alemã, no seu conjunto, sabia o que se desenrolava à sua volta, com seus vizinhos, no seu bairro, em sua cidade, em seu país? Havia como ignorar? Havia o que fazer?  Primo Levi (2010), assim como tantos outros, se fazia essas indagações: 

Sabiam eles o que tinha acontecido em Auschwitz, as matanças silenciosas e quotidianas, a um passo das suas portas? Se o sabiam, como podiam andar pelas ruas, voltar às suas casas, olhar para os seus filhos, atravessar o átrio de uma igreja? Se não o sabiam, tinham que nos escutar religiosamente, informar-se por nós, por mim, de tudo e rapidamente; sentia o número tatuado no meu braço gritar como uma ferida. 

O tema da vergonha, a qual todos deviam curvar-se, foi tema recorrente em suas reflexões e análises: 

E há uma outra vergonha mais ampla, a vergonha do mundo. John Donne disse admiravelmente, e foi citado inúmeras vezes com ou sem propósito, que “nenhum homem é uma ilha” e cada sinal de morte ressoa para todos. No entanto, existe quem, diante da culpa alheia ou da própria, dá as costas a fim de não vê-la nem se sentir por ela tocado: foi o que fez a maior parte dos alemães nos doze anos hilterianos, na ilusão de que não ver significasse não saber e que não saber os livrasse de sua cota de cumplicidade ou de conivência. Mas a nós o biombo da ignorância deliberada, o partial shelter de T. S. Elliot, foi negado: não pudemos deixar de ver. O mar de dor, passado e presente, nos circundava, e seu nível subia de ano em ano até quase nos fazer submergir. Era inútil fechar os olhos ou virar-lhe as costas, porque estava inteiramente em torno de nós, em toda direção até o horizonte. Não nos era possível, nem quisemos, ser ilhas; entre nós, os justos, nem mais nem menos numerosos do que em qualquer outro grupo humano, experimentaram remorsos, vergonha, dor – em resumo -, pelo crime que outros, e não eles, tinham cometido, e no qual se sentiram envolvidos, porque sentiam que tudo quanto acontecera em torno deles, em sua presença, e neles, era irrevogável. Jamais poderia ser cancelado; demonstrava que o homem, o gênero humano, nós, em suma, éramos potencialmente capazes de construir uma quantidade infinita de dor; e que a dor é a única força que se cria do nada, sem custo e sem cansaço. Basta não ver, não ouvir, não fazer. 

Primo Levi disse algumas vezes, com certa angústia e desalento, que quando voltou à sua Turim natal, depois de um infernal e interminável périplo, assunto do livro “A Trégua”, segundo de sua trilogia, sentia que as pessoas não queriam ouvir os relatos do que tinha acontecido. Escolheram esquecer, como se esquecendo tais fatos deixassem de existir. Em 1955, por ocasião dos dez anos da libertação dos campos de concentração vemos que seu testemunho desolado ainda se faz presente: “... é triste e significativo constatar que, pelo menos na Itália, o assunto, em vez de ter se tornado história, está caindo no mais completo esquecimento”. (LEVI, 2016). 

Continua Primo Levi (2016), no mesmo relato de 1955:

Nesta ocasião, é supérfluo lembrar números; lembrar que se tratou da mais gigantesca carnificina da história, a ponto de praticamente reduzir a zero, por exemplo, toda a população de judeus de nações inteiras da Europa Oriental; lembrar que, se a Alemanha nazista tivesse tido as condições de levar seu plano a termo, a técnica experimentada em Auschwitz e em outros lugares teria sido aplicada a continentes inteiros com a conhecida seriedade dos alemães. Hoje é indelicado falar dos campos de concentração. Corremos o risco de ser acusados de vitimização ou de amor gratuito ao macabro, na melhor das hipóteses; na pior, de mentira pura e simples, ou quem sabe de atentado ao pudor. É justificado esse silêncio? Devemos tolerá-lo, nós, os sobreviventes? Devem tolerá-lo aqueles que, petrificados pelo espanto e pela repugnância, assistiram às partidas dos vagões vedados, em meio a espancamentos, palavrões e gritos desumanos, e, anos depois, viram o retorno dos pouquíssimos sobreviventes, com o corpo e o espírito em frangalhos? Será justo considerar esgotada a tarefa de dar testemunho, coisa que então era sentida como necessidade e dever imediato? A resposta só pode ser uma. Não é lícito esquecer, não é lícito calar. Se calarmos, quem falará? Claro que não os culpados e seus cúmplices. Se faltar nosso testemunho, num futuro nada distante os feitos da bestialidade nazista, exatamente por sua enormidade, poderão ser relegados ao rol das lendas. Falar, portanto, é preciso.

Thomas Jefferson nos legou uma frase que se tornou lapidar: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. O Holocausto, como o ícone mais pungente do desrespeito aos direitos humanos, não pode jamais ser esquecido ou ter sua memória desvanecida. Esse temor, do esquecimento, afligiu a muitos daqueles que vivenciaram os padecimentos da mortífera maquina de guerra nazista.

Theodor Adorno (1995), importante filósofo alemão e um dos mais destacados integrantes da “Escola de Frankfurt” foi uma das vítimas do nazismo. Tendo que emigrar de seu país natal a fim de preservar a própria vida, também fala da “exigência” de que a experiência de Auschwitz não se repita, sendo, segundo ele, que a primeira de todas as exigências para a educação é impedir que repitamos a barbárie, expressando, de igual modo, sua indignação pela pouca atenção dada a tão atroz acontecimento:

A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação.

Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. E isto que apavora. Apesar da não-visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz. Dentre os conhecimentos proporcionados por Freud, efetivamente relacionados inclusive à cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de que a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. Justamente no que diz respeito a Auschwitz, os seus ensaios O mal-estar na cultura e Psicologia de massas e análise do eu mereceriam a mais ampla divulgação. Se a barbárie encontra-se no próprio principio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de desesperador.

Por isso, é preciso lembrar sempre, em um exercício mnemônico reiterado e ininterrupto. Em razão disso, a importância seminal de relatos como os de Primo Levi, por mais dolorosos que sejam. Os cadáveres devem ficar insepultos, metaforicamente falando, a memória desses trágicos, horrendos, ignóbeis e abjetos acontecimentos deve ser perene. Tal com um “Funes, o memorioso”, personagem inesquecível de Jorge Luís Borges, a humanidade deve preservar cada detalhe deste incômodo evento, que nos faz lembrar do que fomos e do que somos capazes de perpetrar.

Carlos Eduardo Araújo

Mestre em Teoria do Direito (PUC-MG). 

Referencias Bibliográficas

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2- AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

3- AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008.

4- BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

5- BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. 

6- DEVINE, Carol; HANSEN, Carol Rae; WILDE, Ralph. Direitos Humanos: Referências Essenciais. São Paulo: EDUSP, 2007.

7- LEVI, Primo. É isto um Homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

8- LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2ª edição, 2004.

9- LEVI, Primo. A Trégua. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

10- LEVI, Primo. A Assimetria e a Vida – Artigos e ensaios (1955-1987). São Paulo: UNESP, 2016.

11- OST, François. Contar a Lei: As fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Unisinos, 2005.

12-  PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 12.ª edição, 2011.

13- PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional: Um Estudo Comparativo dos Sistemas Regionais Europeu, Interamericano e Africano. São Paulo: Saraiva, 5.ª edição, 2014.

14- RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2014.

15- SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho da Shoah e Literatura, 2008. Disponível em: http://diversitas.fflch.usp.br/files/active/0/aula_8.pdf. Acesso em: 02 set. 2019.

16-  TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, Volume I, 2.ª edição, 2003. 

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