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Lucca Bopp

Escritor e redator publicitário. Autor do livro "Na hora em que acabar a luz" e colaborador do The Players Tribune. É apaixonado por futebol e criador dos projetos artísticos Redondilhas e Duopia

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Meu quarteirão e os mísseis

A guerra está acontecendo aqui também, a gente só é mais talentoso na maquiagem das armas & das vítimas

Forças Armadas da Ucrânia (Foto: Reuters)
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Uma explosão acorda uma criança em Kiev. Talvez ela não acorde, talvez o míssil tenha atingido seu quarto. Talvez seus pais tenham sido vítimas no trabalho e ela acorde órfã porque um maluco nasceu há décadas atrás e hoje decidiu matar pessoas. No meu quarteirão nada aconteceu, a moça da minha frente na calçada perguntou pra amiga se foi ela que fez a própria escova. Parece que sim. A moça da minha frente disse que o cabelo dela não fica bom assim, deixando escapar uma certa inveja. Três homens negros, fortes, sem camisa descansam dentro de um caminhão, deitados & descalços. Tem uma garrafa de Fanta que encheram de água, tá um calor do caralho e eles precisam se hidratar.  A criança de Kiev talvez esteja morta. Se não estiver morta, talvez não tenha mais família. Metros à frente, vinte entregadores se espalham pela calçada e conversam esperando pedido do restaurante sair, alguns estão deitados na calçada, outros sentados na guia, outros apoiados nas bicicletas e motos. Alguns são tão poderosos que conseguem rir. Do outro lado da rua, as iniciais dos nomes dos executivos estão devidamente bordadas na camisa de algodão e poliéster da Brooksfield. Três rapazes brancos, com cara de saudável e relógio de grife no braço, conversam de máscara Knit, aquela que é boa pra quem faz aquele treino de manhã, tá ligado main? Vi que um menino na Ucrânia decidiu tocar piano em meio aos mísseis, acho que o Mario Frias e o Bolsonaro concordariam com os mísseis e discordariam do menino que toca piano. Por aqui, o picolé na bomboniere tá em promoção, sete reais. Um picolé-em-promoção-custa-sete-reais em 2022. Os homens deitados no caminhão começam a vestir suas botas e olham encabulados para os transeuntes como eu, que observam seu retorno ao batente acontecer ali, dentro de um container de ferro, pelando, enquanto nada acontece no Itaim, bairro de São Paulo, cidade do Brasil, país da América do Sul, longe muito distante da explosão das regiões separatistas ucranianas. As iniciais estão devidamente bordadas porque eles querem que saibam ou imaginem o nome deles. Os nomes dos entregadores a gente vê no aplicativo, mas esquece em questão de segundos, eles são poderosos e riem, mas são esquecidos. Os homens dentro do caminhão também, até a Fanta esqueceu de ser Fanta. A guerra está acontecendo aqui também, a gente só é mais talentoso na maquiagem das armas & das vítimas. É um míssil atrás do outro nesse quarteirão. A moça que queria fazer escova como a amiga tem inveja porque é difícil não sentir sentimentos ruins em 2022, e não é só porque o picolé tá custando sete reais, nem porque o Mario Frias e o Bolsonaro existem, ou porque um maluco decidiu matar pessoas hoje. O capitalismo é uma distração perigosa: a gente anda  por aí achando tudo normal enquanto uma explosão acorda uma criança em Kiev.Ela quer voltar a dormir. Quem não quer? Mas é melhor falar baixo, no meu quarteirão estamos todos dormindo.

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