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Weiller Diniz

Jornalista especializado em cobertura política, ganhador do prêmio Esso de informação Econômica (2004) com passagens pelas redações de Isto É, Jornal do Brasil, TV Manchete, SBT. Também foi diretor de Comunicação do Senado Federal e vice-presidente da Radiobrás, atual EBC.

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O Brasil no pesadelo de Alice

'O universo de Alice foi o caminho escolhido por 39% dos brasileiros. Nos mergulharam em uma toca sombria em 2018 e no retrocesso', diz Weiller Diniz

(Foto: Adriano Machado/Reuters)
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(Publicado originalmente em Os Divergentes) 

Com o título original “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, a instigante obra publicada em 1865 por Lewis Carroll - pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson – alcançou um merecido reconhecimento mundial. A leitura proporciona múltiplas interpretações e analogias infindáveis. Os diálogos são intrigantes e as reflexões complexas. A singularidade da obra - pretensamente infantil - resistiu à ação corrosiva do tempo e ainda hoje ganha adaptações, reedições e leitores de todas as idades. Na essência o livro aborda a naturalização do absurdo, as crises de identidade, a tirania monárquica, os desvarios dos personagens, as falsidades, a desordem, as armadilhas ensejadas pelo desejo irrefletido do novo, o valor do tempo e, principalmente, as consequências de julgamentos injustos. No estranho mundo onírico de Alice, animalizado por sapos, porcos e ratos falantes, estão todos os componentes da literatura disruptiva brasileira atual: bizarrices, autoritarismo, crises de identidade, caos, diversionismos, mentiras, irracionalidade, a loucura, a estupidez, o terror, a insegurança e manipulações judiciais. 

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O enredo surreal banalizando a lógica do absurdo é inaugurado quando Alice, atraída - ou traída - por uma imprudência irrefletida, fruto da curiosidade infantil, mergulha em uma toca perseguindo o coelho branco do relógio sem pesar as consequências ou se será possível reverter o caminho escolhido. O sonho que se transformou em pesadelo. A invocada racionalidade de Alice se torna presa fácil para o apelo do novo e do desconhecido. O insólito coelho, reluzindo a falsa novidade, é a alegoria da passagem inevitável do tempo, de seu caráter fluído, inapreensível e não reembolsável. Ao entrar na toca, Alice cai em um buraco escuro e sofre uma queda prolongada até atingir as profundezas de um mundo bizarro que a desconecta da realidade. 

Nesse fosso caótico, Alice flutua em dois mundos antagônicos e se bate em dicotomias: a mentira, a verdade, a transgressão e as normas, o absurdo e a racionalidade, a loucura e a sanidade, a morte e a vida, a insegurança e a previsibilidade, o caos e a ordem, os surtos e o equilíbrio, as bizarrices e a normalidade, a anarquia e a lógica, o terror e a estabilidade, o grotesco e a padronização, o ódio e a tolerância, a negação e a realidade e a tirania e a democracia. 

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O distorcido universo do subterrâneo de Alice foi o caminho escolhido por perto de 39% dos brasileiros, contaminados por uma síndrome de Alice inconsequente. Eles nos mergulharam em uma toca sombria em 2018 e condenaram o Brasil a um vertiginoso retrocesso à idade média. O tempo desperdiçado na aventura inconsequente não será reposto jamais. A novidade Jair Bolsonaro traiu seus seguidores, suas Alices choram, mas as vidas que perdemos, a economia que implodiu, os empregos fechados, o tempo desperdiçado são irrecuperáveis. O apelo simplista da mudança, a sedução pelo novo, a ilusória esperança no desconhecido, de mudar por mudar ou por inquietação, conduzidas pelo terror da desorientação sempre nos legarão desassossegos, ameaças graves e desintegrações profundas. 

Agora estamos muito mais “atrasados”, como repete o roedor branco, objeto da curiosidade de Alice. Da cartola bolorenta do chapeleiro maluco Jair Bolsonaro saíram as mortes, o mal, a miséria, as milícias, os maus militares, as malversações, o medo e as mamatas. São 3 anos asfixiando em um buraco sombrio, distorcido, destrutivo, absurdo e animalizado pelos cavernícolas que povoam o bolsonarismo. Nesse mundo disparatado, o “país das maravilhas” deve ser visto como o gênero do esdrúxulo, assombroso, jamais na acepção de admirável.

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Para se adaptar ao ambiente inóspito e esquisito, Alice ingere um líquido para diminuir de tamanho, mesmo processo de encolhimento generalizado do Brasil após escolher se atirar na toca fascista de Bolsonaro. Em suas vertigens, Alice desanda a falar coisas desconexas e, temendo estar perdendo a sanidade, chora copiosamente e quase se afoga nas próprias lágrimas geradas por uma escolha errada, uma aventura impensada. Sufocada pela estranheza incômoda da nova atmosfera, o desconforto com personagens destrambelhados e caóticos, Alice mergulha em outra toca, a da confusão mental, e se põe a questionar a própria identidade e já quase não se reconhece. É confundida pelos personagens do livro com a empregada Mary Ann e até com uma serpente. “Por fim, a Lagarta tirou o cachimbo da boca e dirigiu-se a Alice com voz lânguida e sonolenta: “Quem é você?” Alice respondeu muito tímida: “Eu... já nem sei, minha senhora, nesse momento... Bem, eu sei quem eu era quando acordei esta manhã, mas acho que mudei tantas vezes desde então...” A lagarta, cuja essência é a metamorfose, arrisca que ela acabará se acostumando. Na ficção de Caroll, uma das leituras deste episódio é a transição de Alice da fase infantil para puberdade. Na tormenta brasileira, o buraco fascista e a ignorância oficial representaram a involução, a diminuição da estatura brasileira na geopolítica mundial, a desconexão da realidade e o embaçamento da identidade nacional.

A reflexão de Alice reproduz a crise de identidade que fustiga o Brasil após o “chá de loucos”, realizado diariamente na farra despudorada da estupidez no centro do poder. São cada vez mais assíduos e procedentes os questionamentos sobre a fragmentação da identidade brasileira e o esfarelamento antropológico. A partir de uma literatura da intolerância, do ódio, da má-fé, de realidades paralelas, da tirania e das mentiras - replicadas pela maior caixa de ressonância dos sistemas presidencialistas - foram sendo pulverizados os atributos positivos dos brasileiros reconhecidos mundialmente: a boa índole, a harmonia, a mistura humanizada, a identidade social miscigenada, a interação generosa, a diversidade acolhedora e amistosa, a graça, a capacidade criativa e a cordialidade. O buraco pantanoso do bolsonarismo se incumbe de enterrar essas virtudes diariamente para substituí-las por um país habitado por criaturas rústicas e bestializadas que, literalmente, colocaram Brasil de “cabeça para baixo”, como no mundo incompreensível e caótico de Alice. 

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Nossos “desaniversários” são melancólicos, com as janelas fechadas para o mundo, atolados na ignorância, no desprezo, no isolamento subterrâneo e no sadismo. O absurdo, rotineiro e desproporcional, não choca mais de tanto ser reiterado. Todos vão dessensibilizando, se habituando à normalização da esquizofrenia, da insanidade e da homogeneização do mal. O desvario virou um comando único, rotineiro, inercial, de quem pretende nos condenar à morte e deseja que ela seja silenciosa e consentida. Tornar-se medíocre passou a ser moralmente tolerável e a convivência com a estupidez, obrigatória. Houve um rebaixamento generalizado de expectativas e exaltação da desesperança através de maniqueísmos redutores. Nesse buraco humanitário os obscurantistas se sentem em casa, intimamente confortáveis em suas tocas escuras ecoando suas demências. O país se tornou estranho, sombrio, imoral, fantasmagórico, colérico, surreal, crepuscular e hostil. Somos uma Nação-buraco soterrada por ruínas civilizatórias, subterrâneos socioeconômicos e escombros da loucura. “Mas eu não quero me encontrar com gente louca”, observou Alice. “Oh, não se pode evitar”, disse o Gato, “todos são loucos por aqui. Eu sou louco. Você é louca.” “Como sabe que eu sou louca?” indagou Alice. “Você deve ser”, respondeu o Gato, “ou então não teria vindo aqui.” 

Alegoria máxima da insanidade e do absurdo encontra-se no julgamento do Valete de Copas e no mandamento despótico da Rainha de Copas na perseguição habitual e única aos adversários que ousam enfrentá-la: “Cortem-lhe a cabeça”, uma metáfora da eliminação autoritária das ideais e ideologias divergentes. Equivale a “minha especialidade é matar” de Bolsonaro. A trama e os personagens guardam uma desconfortante similitude com o pesadelo brasileiro. O julgamento do Valete de Copas é precedido por uma estridência de elevados decibéis, correrias, exatamente como na publicidade opressiva, nos vazamentos seletivos e conduções coercitivas abusivas patrocinadas pela 13 Vara de Curitiba. O ex-juiz Sérgio Moro é o espelho arquetípico do Rei de Copas que, mesmo envergando a peruca branca dos juízes, responsável pela observância dos preceitos legais, é o símbolo da tibieza, da manipulação, da subserviência, da transgressão e da mediocridade. O método, tanto no País das Maravilhas quanto na nossa barbárie, é a fixação antecipada da sentença e a condenação, mesmo sem provas. Nas masmorras da esdrúxula torre de Curitiba os capítulos das decapitações ilegais foram escritos a muitas mãos. Várias cabeças de inocentes rolaram em nome de uma fábula política estapafúrdia, rabiscada pelo Rei de Copas e alguns valetes de naipes fascistas do Ministério Público. 

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O Coelho Branco, condutor fantástico que transita temeroso entre os dois mundos, lê a acusação. O Valete de Copas era, fraudulentamente, acusado de roubar as tortas da Rainha colérica. As testemunhas convocadas parecem escolhidas fortuitamente para condenar, já que não sabem nada sobre a situação. Alice, que no começo mostrava-se animada para assistir a um julgamento, fica cada vez mais irritada com todos os absurdos que presencia. Fica ainda mais revoltada quando descobre que a falsa prova que existe contra o Valete é um bilhete sem a sua caligrafia nem assinatura. Durante todo o julgamento, Alice não se intimida com a histeria autoritária da Rainha e passa a defender o Valete de Copas contra as falsas imputações. Estimulados pela atitude de Alice as cartas se rebelam e inicia-se a batalha das cartas. O episódio é uma sátira ao sistema judicial, revelando a injustiça, a miséria e o absurdo dos processos judiciais. No pesadelo brasileiro, o Rei de Copas - Sérgio Moro - já foi declarado incompetente e parcial pelo STF. Ele rasteja em popularidade, que supunha ser superior à da Rainha. A tocaia jurídica contra o ex-presidente Lula expôs uma caudalosidade de absurdos, mostrando tratar-se de um jogo de cartas marcadas, com propósitos políticos para decapitar o favorito das eleições e passar o cetro e o trono para Rainha de Copas do fascismo. 

A Rainha de Copas é a autoridade máxima daquele território assombroso, aterrorizando todos os personagens e forçando-os a obedecer a suas ordens desarrazoadas e satisfazer os seus caprichos autocráticos. Além de encarnar a iniquidade de um sistema com pendores monárquicos, ilustra o autoritarismo e o abuso de poder dos tiranetes. Chamada de “velha tirana” por Alice, a Rainha é a caricatura do terror imperial, caprichosa, egocêntrica, absolutista, eruptiva, impulsiva e aterrorizante. De pavio curto e deformada, governava através do medo, guiada por uma fúria cega, por gritos, ameaças e sempre bajulada por súditos acríticos. Suas sentenças monotemáticas de degola eram genéricas e arbitrárias. Todos os atributos de Jair Bolsonaro: autoritário, colérico, belicoso, genocida, despreparado e bravateiro que comanda um universo grotesco de súditos bestializados, assassinos, corruptos e milicianos que só atormentam o país.

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Na bizarrice monárquica, assim que é ordenada a decretação da sentença do Valete de Copas antes mesmo do veredito dos jurados, Alice desafia a Rainha, mostrando que perdera o medo. Vai além, expondo o absurdo e a loucura de toda a situação: "Vocês não passam de um maço de cartas!”. Quando finalmente assume a coragem de confrontar aqueles que a atacavam, afirmando a sua força e determinação, Alice acorda e percebe que tudo foi um sonho, uma agonia aterrorizante. No pesadelo brasileiro as cartas da estranheza já estão com data de validade vencida, marcadas e amarfanhadas. Se prestaram a todo tipo de truques, ilusionismo, malversações, mortes, mentiras e surrupios. No apagar das luzes desse buraco civilizatório, muito nos foi subtraído, sobretudo vidas, esperanças e dias perdidos. Os mágicos desse pesadelo transformaram a diversão em trapaça, a magia em fraude e o entretenimento em tormenta golpista.

Uma das passagens mais emblemáticas no suplício de Alice, que nos é assustadoramente íntimo, é retratada no diálogo com gato risonho, símbolo de independência e da mudança. “Você poderia me dizer, por favor, qual o caminho para sair daqui?” “Depende muito de onde você quer chegar”, disse o Gato. “Não me importa muito onde...” foi dizendo Alice. “Nesse caso não faz diferença por qual caminho você vá”, disse o Gato. “...Desde que eu chegue a algum lugar”, acrescentou Alice, explicando. “Oh, esteja certa de que isso ocorrerá...Alice não disse nada: sentou-se com a cabeça entre as mãos, indagando a si mesma se alguma vez as coisas voltariam a ser como antes”. Em outubro os brasileiros irão embaralhar e distribuir as cartas para decidir se permanecem nesse buraco fantasmagórico e asfixiante ou despertam do pesadelo através do voto consciente, realista e democrático para tudo voltar a ser como antes.

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