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Marcelo Moraes Caetano

Psicanalista, doutor em Letras, professor adjunto na UERJ. Autor de mais de 50 livros publicados no Brasil e no exterior

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Olavo de Carvalho não morreu

"Os seguidores de Olavo de Carvalho, mesmo desconhecendo sua obra, intensificaram sua 'ideologia'. Agora, até a caridade é chamada de 'comunismo'"

Olavo de Carvalho (Foto: © REUTERS/Joshua Roberts/Direitos Reservados)
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No dia 24 de janeiro de 2022, morria o guru do bolsonarismo: Olavo de Carvalho. Dois anos se passaram. Precisamos revisitar alguns de seus postulados, que permanecem vivos e dando frutos.

Olavo diz, em entrevista a Benjamin Teitelbaum (Guerra pela eternidade), que “a coisa mais nojenta que existe é a metafísica estatal”. O que ele deseja é que o Estado se abstenha de propagar o bem-estar e a ética baseados na convivência. A “liberdade”, para a sua concepção, é um bem ABSOLUTO e INDIVIDUAL, e não RELATIVO e COLETIVO, não podendo ser freado pela vida em coletividade, que naturalmente torna a liberdade um bem que encontra seus limites justamente na convivência.

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Se assim não fosse, viveríamos a “lei do mais forte” (que, aliás, é a lei do mercado, que está estraçalhando países como a Inglaterra e os Estados Unidos), a “SELVA”, que eles adoram gritar, como fizeram em profusão, por exemplo, no atentado de 8 de janeiro à Praça dos Três Poderes. Bolsonaro, numa de suas ações cotidianas de espalhar a confusão caótica, chegou a dizer que “podemos viver sem oxigênio, mas não podemos viver sem liberdade”. Onde ele diz “liberdade”, leia-se”; SELVA. Para Olavo, essa missão “metafísica” do Estado, que nada mais é senão postular pela justiça social, seria “comunista”. Essa “metafísica” estatal é nada mais nada menos do que sua função de criar e sustentar civilização/cultura/convivência. Para quem busca a “selva”, isso é, de fato, como diz Olavo, “nojento”...

egundo seu ponto de vista, quem deve monopolizar qualquer assunto relacionado à provisão e à sobrevivência das massas são eles, os “filósofos-profetas”, aqueles que, na República de Platão, seriam os reis (seguidos dos soldados e, por fim, do resto das pessoas). No caso do olavismo, esses “filósofos-profetas” começam sendo partes da elite da igreja católica, a parte que é reacionária e completamente contrária e avessa à teologia da libertação e outros movimentos populares e progressistas da própria igreja católica, como a pastoral da terra, movimentos eclesiais de base, lutas em prol dos indígenas, da alfabetização, dos grupos vulneráveis, reforma agrária etc. Esse era um dos motivos pelos quais Dom Pedro Casaldáliga e, antes dele, Dom Hélder Câmara, era tão odiado.

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A atual vítima dessa sanha olavista é o padre Júlio Lancelotti, cujo grande “crime” é dar de comer e beber à população de rua. É claro que, por trás desse ódio, existem motivos como a especulação imobiliária em São Paulo, comprometida pela presença dos moradores de rua que o padre alimenta. Mas, na base, o ódio é mais visceral, teórico, metodológico, digamos, e tem relação direta com a “filosofia” ou “ideologia” olavista de que qualquer movimento que demonstre a preocupação com o bem-estar de populações vulneráveis é “comunista”, e altamente odiável e odioso.

É nesse sentido que o olavismo está mais vivo do que nunca. Está até dando frutos. Os filhotes de Olavo de Carvalho, mesmo que sequer saibam que são seus filhotes, mesmo que sequer tenham lido uma única linha dele, dobraram a aposta na sua “ideologia”, como demonstra o patético caso de um padre da periferia de São Paulo – o padre Júlio Lancelotti – cujo único grande “crime”, como foi dito, não é nem sequer alfabetizar, conscientizar politicamente, pleitear terras ou educação, mas, tão somente, ALIMENTAR os pobres que moram nas ruas. Agora ficou escancarado: até a esmola é “comunismo”.

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Se há grupos religiosos no Brasil que pregavam a esmola e a “caridade” e que podem ser tão reacionários e radicais quanto qualquer olavista, como os kardecistas, agora até mesmo a prática da esmola e da “caridade” é satânica e “comunista”. Trato do caso do “cristianismo kardecista” brasileiro em minha tese de pós-doutorado apresentada à Universidade de Copenhague, Dinamarca, onde saliento que SOMENTE NO BRASIL a doutrina de Alan Kardec (um homem branco e europeu do século XIX...) se tornou “religião”, e por que essa religião angariou a simpatia de parte das elites brasileiras, insatisfeitas com o catolicismo e “horrorizadas” com os cultos africanos, por serem provenientes de seus escravos.

Como se percebe, o fruto não só não caiu longe da árvore olavista, como podemos dizer que ele RADICALIZOU a árvore olavista.

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O que no bolsonarismo se chamava “núcleo ideológico” era todo esse grupo de pessoas ligadas a Olavo de Carvalho. Portanto, eram ligados aos setores mais reacionários da igreja católica, vinculados a movimentos como Centro Dom Bosco, Centro Dom Vital, canção nova, opus dei. O olavismo, em essência, é católico, monarquista, ultraliberal.

Porém, outros rios e correntes se uniram a esse mar de opressão, a esse oceano de segregações e racismos. Com o bolsonarismo fundido ao olavismo, surgiu o BOLSOLAVISMO. Este movimento, em termos “ideológicos” (e realmente essa era a única “ideologia”, ou seja, projeto de ideias para uma sociedade, que eles tinham), ainda angariou o neopentecostalismo, radicalizando-se muito mais.

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Como Georg Wink lembra, a igreja católica, nesse caldo, constitui a “elite”, ao passo que o neopentecostalismo constitui os “peões”, as pontas de lança dessa “ideologia” bolsolavista. Mas esses “peões” precisam ser compreendidos com muita atenção, porque eles são parte fundamental das estratégias da nova direita, sobretudo no caso brasileiro.

Na Europa e Estados Unidos, os “peões” da nova direita são as pessoas que odeiam os movimentos migratórios. O pretexto, lá, são as imigrações. Aqui, não está aí o “problema” que a nova direita elegeu como seu “inimigo”. Está em tudo aquilo que vai contra a radicalização do que se prega nas seitas neopentecostais, havendo “inimigos”, portanto, de caráter “moral”. Daí o PÂNICO MORAL incessante que os arautos da nova direita precisam alardear incessantemente, dia e noite, falseados como CONSERVADORES e paladinos da “moral” e dos “bons costumes”: “deus, pátria, família, liberdade”... Se, na Europa e Estados Unidos, o “inimigo” evidente são os imigrantes, por aqui os “inimigos” evidentes são os que se desviam das “doutrinas” neopentecostais.

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Mas isso tem razões de ser. Quase parafraseando Pascal, razões que a própria razão desconhece.

Sabemos das ligações do neopentecostalismo com as milícias. As milícias, em termos de grupos totalitários e autoritários contrários ao Estado Democrático de Direito, estão QUASE no topo da pirâmide, muito acima do tráfico.

Isso por uma razão muito simples: o tráfico necessita de evidente “combate” por parte do Estado e das forças policiais e judiciárias. Muito embora isso envolva uma hipocrisia que em algum momento precisará ser encarado pelo Estado, já que o produto oferecido pelo tráfico é consumido pelas elites dominantes... Mas isso é assunto para outro momento. O tráfico, digamos, é um inimigo claro, explícito, evidente. Constitui com clareza o ELES contra NÓS. A polícia é autorizada a entrar nos morros e periferias e combater ostensivamente o tráfico, e a população faz vista grossa para isso, pois, como foi dito, trata-se de um inimigo explícito. A “guerra contra o tráfico” é herdeira direta da antiga “guerra contra a vadiagem” que existe no Brasil contra os negros desde a “abolição” da escravatura. A lei da vadiagem está ATÉ HOJE no ordenamento jurídico brasileiro, e nada mais é do que um mecanismo de “limpeza” étnica iniciado logo após 1888.

Por outro lado, muito diferente, as milícias são grupos em que membros do próprio Estado estão enfronhados e imiscuídos até a cabeça. A distinção entre ELES e NÓS, no caso das milícias, fica comprometidíssima e altamente difusa por essa razão. Como NÓS seríamos contra ELES se ELES não são inimigos tão explícitos quanto os traficantes? Isso porque membros de corporações estatais estão, sem qualquer disfarce, à sua frente e, até mesmo, oferecem “proteção” e outras “provisões” (como casas, gás, segurança, fornecimento de alimentos, streamings de TV etc.) que deveriam ser providenciados pelo Estado.

Eu disse, há pouco, que as milícias estão QUASE no topo da pirâmide dos grupos totalitários e autoritários contra o Estado Democrático de Direito. Isso porque quem está realmente NO TOPO dessa pirâmide, atualmente, são os neopentecostais.

No caso dessas “igrejas”, aí sim a distinção entre ELES e NÓS é toda calculada para se apagar completamente. “Eles” sequer se apresentam como possíveis inimigos, nem longínquos. Ao contrário, o que os pastores ostentam são ações de “ajuda explícita” ao seu rebanho, atuando como verdadeiros “Estados” paralelos, que fornecem o amparo espiritual que as pessoas buscam quando nenhum outro amparo foi fornecido pelas estruturas estatais. Seu produto é pretensamente humanitário. Como enxergar “inimigos” em quem o produz?

Há todo um movimento de “intelectuais” que chega a defender o neopentecostalismo com base na premissa de que eles de fato dão às pessoas aquilo que o Estado deveria dar. Como “educação”, empregos, apoio “psicológico”, ajuda para se livrar de vícios, “curas emocionais”, “curas espirituais” etc. Para esse movimento, que romantiza o neopentecostalismo, os pastores estariam cobrindo uma lacuna deixada aberta pelo Estado, e, “por isso”, seriam bem-vindos. Assim como existem os “esquerdo-machos”, eu costumo dizer que existem os “esquerdo-neopentecs”.

Por isso eles estão no TOPO das estruturas paraestatais mais perigosas. Enquanto o tráfico se apresenta como inimigo declarado e a milícia se põe como uma relação promíscua entre Estado e forças paraestatais, onde a distinção se apaga, os neopentecostais ostentam um cartão de visitas que, para muitas pessoas, os situa como AMIGOS da população e até AUXILIARES do Estado.

Por isso mesmo é que a milícia, muito inteligentemente, busca cada vez mais se UNIR aos movimentos neopentecostais, para apagar ainda mais as evidências de suas ações criminosas e se colocar, como ocorre desde a sua fundação, como grupos paramilitares e paraestatais cujo serviço é “EM BENEFÍCIO” da população. Em atos “COMPLEMENTARES” às funções do Estado, como, na sua origem, servir como grupos de extermínios contra “criminosos”, fazendo o serviço sujo que o judiciário não se predispunha fazer.

Na fusão entre a metafísica católica, miliciana e neopentecostal, então, se baseia o bolsolavismo.

É claro que eu nem estou entrando nos aspectos psicológicos presentes nos bolsolavistas, como os ressentimentos, frustrações, recalcamentos, repressões etc. Esses são aspectos que caracterizam as pessoas que se identificam com a “ideologia” bolsolavista e, haja o que houver, continuarão se identificando com ela.

Tampouco estou tratando dos aspectos de colonização presentes nessa “ideologia”, que aponta que as classes dominantes devem ter todos os privilégios, e as demais classes devem ser seus meros vassalos e escravos, sem qualquer direito, sequer de existir e ser feliz. Aliás, uma classe de vassalos feliz é uma afronta imperdoável para os bolsolavistas. A empregada NÃO PODE ir à Disney, o aeroporto NÃO PODE parecer uma rodoviária, as universidades NÃO PODEM ter gente preta, LGBT+, das periferias etc. NÃO PODE! Isso subverte o pacto colonial e põe a colônia em posição igual à metrópole, o que é inadmissível para essas pessoas.

Enfim, no tripé religioso-militar se baseia o bolsolavismo. A adesão de setores ultraconservadores da igreja católica e a união do neopentecostalismo com as milícias formam uma espécie de “bíblia” bolsolavista.

É claro que, ao redor disso, surgem as bancadas com “B”, de Bolsonaro: a bancada da bala, da bíblia, do boi e dos bancos.

Nem é preciso dizer o quanto as leis que Bolsonaro promulgou facilitando a entrada de armas de fogo e o aumento de CACs e clubes de tiro ajudaram a armar até os dentes as milícias e, por extensão, a “proteger” o neopentecostalismo, com sua própria bancada à parte, a bancada da bíblia.

A bancada do boi diz respeito ao agronegócio, que também precisa da milícia para se expandir, já que o desmatamento de terras indígenas e reservas florestais – indispensável para o agronegócio continuar pop – é feito em grande parte por grilagem, técnica usada por milicianos com o apoio da bala... e da bíblia.

Sobre os bancos, a questão é simples: além de o pilar econômico do bolsolavismo ser um tipo de paulo-guedismo ultraliberal, de livre mercado e extinção absoluta do Estado (para que as milícias e o neopentecostalismo possam se expandir sem empecilhos e dar abrigo ainda maior ao ultraliberalismo), são os bancos que, no final de toda essa cadeia produtiva, recebem o DINHEIRO e LUCRAM com essa dinâmica perversa e promíscua entre bala, bíblia e boi. O “mercado” e os faria-limers só concebem essa lógica de modo de produção.

É por essa razão que a questão do neopentecostalismo precisa, SIM, ser encarada de frente pelo governo federal. Eles são, como eles próprios diriam, citando a bíblia, lobos em pele de cordeiro. Eles são, atualmente, a “justificativa” para as milícias existirem. Todo o caos criado pela anomia, por sua vez causada por grupos paraestatais e paramilitares como as milícias, recebe um manto de invisibilidade confeccionado pelos neopentecostais.

Não se trata de propugnar pela extinção das religiões protestantes. Trata-se de DISCERNIR quais são igrejas de verdade e quais são locais utilizados com outras finalidades, muitas das quais eu nem mencionei aqui...

Felizmente, parece que o governo não está acuado diante desse desafio enorme, e até mesmo histórico, ao Brasil. Se essas questões não fossem encaradas de frente, sem romantizações, sem os “esquerdo-neopentecs”, o poder do Estado poderia, pouco a pouco, migrar para as mãos dos milicianos e pastores, amparados pelas bancadas da bala e da bíblia, e festejados pelas bancadas do boi e dos bancos.

Olavo de Carvalho dizia “que a coisa mais nojenta é a metafísica estatal”. Esse seu ódio está mais vivo do que nunca e precisa ser freado.

O governo federal precisa, SIM, interferir em questões “metafísicas” como o crescimento desregrado de “igrejas” neopentecostais. Sem adentrar nessa questão “metafísica”, corre-se o risco de se perder completamente o próprio poder e, no fim das contas, o próprio Estado. Aliás, “pautas de costumes” também não deveriam ser sonegadas ou consideradas secundárias. A “moral” está no (epi)centro desse terremoto caótico.

Ou seja, se não encarássemos isso tudo, poderíamos nos tornar um Estado ainda pior do que estados teocráticos. Poderíamos nos tornar um “Estado” miliciano-pentecostal.

A hora de agir é agora. Sem tabus, sem medos, porque nada pode ser mais amedrontador do que se imaginar nas mãos desses grupos.

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