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A bilionária indústria cultural do preconceito

É graças a ela que muitas outras indústrias se mantêm poderosas por tantas décadas, como o cinema nos EUA e a moda na Itália. O problema são os abismos sociais gerados, cujos danos são revertidos para estes mesmos países

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Existe uma indústria poderosíssima no mundo. É uma indústria que não tem sede, não tem filial, mas está presente em todos os países do planeta. É talvez a indústria mais lucrativa do mundo, pois move dinheiro na produção de carros, moda, roupas e, principalmente, na produção cultural. Estamos falando da Indústria do Preconceito. A ideia aqui é entender como este maquinário do preconceito gera lucros para uns, mas garante a manutenção da miséria e da pobreza cultural e econômica de muitos outros.

Que fique claro que o significado da palavra preconceito é conceito prévio, ou seja, algo que não foi empiricamente comprovado pelo contato físico, visual ou intelectual. A palavra, em si, não é negativa. E ela pode gerar dividendos incríveis para uma região ou país. É graças ao "pré-conceito" que as pessoas têm com relação à moda europeia que muitos acham chique roupas vindas de Milão, Londres etc., garantindo a manutenção da poderosa indústria da moda local. Não que a moda de Milão e Londres seja ruim, mas o que garante que ela seja sempre boa, eternamente? O "pré-conceito". Mas quando um ganha, outro necessariamente deixa de ganhar. Assim, quando milhões de turistas do mundo todo torram dinheiro em roupas europeias e marcas norte-americanas, a indústria de calçados, vestidos, calças e óculos de dezenas de países deixa de crescer, mesmo que algumas produzam produtos tão bons quanto.

O campo do cinema é emblemático. Graças ao "pré-conceito" generalizado que se tem no mundo, Hollywood consegue manter-se como a indústria cinematográfica mais lucrativa do planeta há mais de um século. O "pré-conceito" que se tem de Hollywood é: uma indústria que produz filmes de qualidade, boas histórias e entretenimento. Mas você sabia que, dos cerca de 400 filmes produzidos pelos estúdios hollywoodianos todos os anos, menos de um quarto chega aos cinemas mundiais? E desse um quarto, uma fatia ainda menor garante lucro aos estúdios? Qual seria a razão? Uma delas, obviamente, é a qualidade dos filmes, pois os próprios americanos derrubam as piores produções ao patamar do fracasso de público. No entanto, o mundo continua pensando que Hollywood ainda é majoritariamente de qualidade e lucrativa, criando uma bola de neve na qual a divulgação do lucro gera ainda mais lucros, como diria o filósofo francês Pierre Bourdieu.

Isso é devastador para as cinematografias mundiais. Alimenta-se, até hoje, no ideário entre muitos brasileiros de que filme nacional é
baixaria e ruim. E tal preconceito só é momentaneamente quebrado quando festivais internacionais atestam a qualidade de um
produto como Central do Brasil, Cidade de Deus e Tropa de Elite. Mas até chegar a este ponto, muitos elos da cadeia deixaram de se desenvolver e, graças ao "pré-conceito" que beneficia Hollywood, praticamente todas as outras cinematografias mundiais têm ainda mais dificuldades de se tornarem auto-sustentáveis.

Moda e cinema são exemplos de indústrias ajudadas ou derrubadas pela indústria maior, a do preconceito. Mas esta produz estragos ainda mais graves nas diferentes culturas humanas. Uma cor de pele, de cabelo, um sotaque, uma fisionomiasão capazes de impedir uma pessoa a se tornar parte efetiva de um grupo social. Por que se alimentou tanto, no século 20, preconceito contra estrangeiros nos Estados Unidos e Europa? Entre muitas razões, uma delas se chama insegurança. Afinal de contas, os europeus e norte-americanos que são preconceituosos têm que se apoiar em sua cor de pele, seus olhos claros e sua ausência de sotaque para manterem seus status sociais, seu emprego e sua superioridade no meio, mesmo que ela não se baseie em nada de concreto intelectualmente e profissionalmente.

Mas por culpa de uma minoria ignorante nestes países, a maioria acaba perdendo. Quando um senhor espanhol pergunta a outro compatriota onde ele adotou a menina mestiça do seu colo, quando um técnico de futebol inglês chama um jogador de "chino", "macaco", quando um norte-americano xinga um muçulmano de terrorista, quando um francês se recusa a cumprimentar um indiano por que o acha sujo, alimenta-se outra cultura, a cultura do ódio, da vingança e a formação de guetos, como os que se vêem em Los Angeles, por exemplo. Lá, existe, na periferia, o bairro dos latinos, dos negros e dos asiáticos, bem longe de Beverly Hills, onde se agrupam fechadamente alguns brancos que agradecem aos céus – ou às clínicas de estética – por serem brancos, loiros e de olhos claros.

É essa indústria do "pré-conceito" que alimenta a venda de clareadores de pele na Índia, sucesso cada vez maior entre as classes A/B do país. É a indústria do "pré-conceito" que faz com que, em cidades como São Paulo, Nova York e Paris, orientais andem apenas entre si, criando um abismo cultural em cidades que têm a fama (ou "pré-conceito") de serem cosmopolitas, de abraçarem diferentes culturas.

Felizmente, foi-se o tempo em que pseudocientistas formulavam teorias atestando que a mistura de raças resulta, necessariamente, em seres inferiores, mais fracos intelectualmente. Tal idéia foi amplamente difundida na formação do Brasil e de outras nações mas, hoje, caiu por terra. No entanto, seu legado de séculos ainda persiste a ponto de se encontrar exemplos em qualquer esquina. Quer apostar? Quantas vezes você já não ouviu alguém falar "que chique", quando outro disse que viajou para a Europa? Quantas vezes você não ouviu dizer que alguém se deu bem na vida porque se casou com um norte-americano? Quantas vezes você já não ouviu alguma grávida torcer, mesmo que discretamente, para que seu filho nasça "loirinho e de olhos azuis" como a bisavó distante? Está vendo, você tem bem menos idade do que tais teorias pseudocientíficas e ainda assim convive com o resultado delas.

A boa notícia é que países que alimentam preconceitos continuarão a ser invadidos por uma legião de imigrantes legais e ilegais, que forçarão um convívio durante séculos e séculos. A boa notícia é que a ordem econômica mundial está mudando, trazendo um "chino", um vilão dos filmes de Hollywood (como sempre foram os Russos), um "indiano de hábitos exóticos", uma "mulata" e um "negro" para a linha de frente, os tais Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Quer mais heterogêneo do que esses países? Quem sabe eles podem reverter a lógica de consumo do mundo. Já pensou viver num mundo onde os "pré-conceitos" vigentes são: "Rio de Janeiro é a melhor cidade para turismo no mundo", "O melhor carro do mundo vem da China", "Cinema russo é puro entretenimento", "Ser chique é usar a moda indiana" e "Ser belo é ser negro, os sul-africanos são os mais belos do mundo". Um mundo de cabeça para baixo? Talvez (aliás, lembra porque, nos mapas, a Europa está no norte e a América Latina no sul?) Bom? Não, pois seriam todos "pré-conceitos", o que quase sempre é ruim. Mas é inegável que, se o mundo chegar a tais convicções, ele certamente percorreu um caminho mais aberto ao novo, ao diferente, ao outro.

Franthiesco Ballerini é jornalista e, atualmente, professor e coordenador da Academia Internacional de Cinema. Mantém o site franthiescoballerini.com

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