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Diálogos Conecta

A política da morte e a eliminação da diferença

Parece existir um padrão de letalidade que atinge centenas de pretos e pardos pelo Brasil afora e, principalmente, na região metropolitana do Rio

Mulher próxima de pessoa baleada perto do complexo de São Carlos, no Rio de Janeiro 27/08/2020 (Foto: REUTERS/Ricardo Moraes)
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Por Lenin Pires - pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC)

A vida humana tem pouco ou nenhum valor na sociedade fluminense. Sobretudo aquelas pertencentes a negros desempregados ou vivendo no subemprego. Pessoas com esse perfil, cada vez mais se ferem ou morrem; seja em situações cotidianas, seja na escalada bélica com que se pratica a chamada segurança pública. E com isso se esboça a chamada segurança pública.

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O assassinato do assistente de supermercado Durval Teófilo Filho, em fevereiro último, é um exemplo. Ele foi alvejado pelo sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra, seu vizinho em um condomínio em São Gonçalo. Este último alegou que o teria confundido com um assaltante. Outro exemplo é o de Hiago Bastos, um jovem negro de 21 anos, camelô, morto em frente a estação das barcas de Niterói por um sargento da PM. O assassinato se deu em decorrência de uma discussão, enquanto este último desembarcava. Já Matheus Carvalho, atendente de um fastfood em Jacarepaguá, foi alvejado em maio último por um sargento-bombeiro insatisfeito por não ter obtido um desconto na compra de um sanduíche. Matheus, também um jovem negro, perdeu um rim e parte do intestino no episódio. A banalidade desses casos sugere que as mortes ou violências perpetradas por agentes públicos, mas também por civis, parecem ter em comum, cada vez mais, a certeza da impunidade.

Opino que tais dinâmicas tem seu nascedouro nas atuações dos agentes estatais, cuja virulência cada vez mais alcançam legitimidade para amplos setores da sociedade que, inclusive, as mimetizam, quando possível. O resultado é o aumento da sensação de insegurança, legitimando os mercados oficiais e paralelos que vendem “proteção”. Estão aí as milícias, para não tergiversar. Proteção que se transforma em controle, com rendimentos econômicos e políticos, como a conjuntura eleitoral está mostrando. São persistentes os episódios envolvendo autoritarismos, preconceitos, racismo e impunidade. Extrapolam-se a partir das ações envolvendo instituições da chamada “segurança pública”, bem como outros atores, no controle dos territórios onde vivem pessoas de perfil pobre, preto ou pardo. Pode-se dizer que isso ocorre há anos, mas tem se agudizado nos últimos quatro anos.

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Até maio último, segundo dados do GENI/UFF, haviam ocorrido 16 operações policiais resultando em 85 mortes, no Rio, só em 2022. No mínimo, três pessoas morreram em cada uma delas. Tais dinâmicas se repetem há anos. Segundo o relatório do grupo de pesquisa (https://geni.uff.br/2022/05/06/chacinas-policiais/) coordenado pelo sociólogo Daniel Hirata, entre 2007 e 2021 ocorreram 593 chacinas, com 86% delas ocorrendo  na Região Metropolitana, resultando em mais de 2.000 mortos. As dramaticidades das chacinas, porém, não podem encobrir nossa percepção para as outras incursões onde o apetite por sangue negro permanece. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as operações policiais nos últimos cinco anos produziram uma cifra média de 1.100 mortos a cada ano. Ou seja, cerca de 5.500 mortos no período. Por outro lado, o tratamento estatístico não pode abstrair as dinâmicas cruéis com que tais ocorrências costumam acontecer. No Morro Fallet, por exemplo, em 2019, 13 pessoas foram assassinadas em um único quarto, sem direito à rendição. Em São Gonçalo, naquele mesmo ano, policiais promoveram um churrasco antes, durante e depois de conduzirem o morticínio de 8 homens que atuavam no tráfico local. Sem falar nas sangrentas incursões realizadas no Jacarezinho, em 2021, ou no Cruzeiro, há poucos meses. Estes e outros episódios dramáticos parecem querer performar um Estado que pratica a intolerância para com o crime, mas que mira também contra a diferença que caracteriza toda uma população. Estão aí as balas perdidas que não deixam margens a equívocos.

Esta política de morte, infelizmente, parece encontrar cada vez mais adeptos. O antropólogo Eduardo Rodrigues, pesquisador do LAESP/UFF e do InEAC, desenvolveu uma etnografia com jovens moradores das zonas norte e oeste do Rio que desejam ser policiais. A partir da proximidade com estes últimos, seja nas famílias ou nos bairros em que vivem, tais jovens se sentem atraídos para protagonizar as dinâmicas repressivas que caracterizam o ofício das polícias. Contrariando visões que apontam unicamente para a formação operada nas instituições policiais, Rodrigues demonstra que há uma socialização prévia que os fazem naturalizar a violência empregada contra outros jovens pretos e pardos nos contextos territoriais pelos quais transitam. Majoritariamente negros, estes buscam através do uso da força, oficial ou oficiosamente, se diferenciar daqueles outros com potencial de serem vítimas de tais arranjos. O acesso às armas e, se possível, à carteira funcional nas polícias é um brevê para voos autoritários. Desejam entrar para as polícias mas, eventualmente, quando não conseguem, vão desempenhar atividades correlatas como seguranças privados, ordenanças de milícia ou, em outros “esquemas”. Ou seja, negócios nem sempre legalizados onde a atividade de segurança se confunde com a disposição para o emprego da violência extrema, se necessário. Nestes últimos casos, vale apenas a proximidade com policiais para obtenção de salvo-condutos que validem práticas arbitrárias, o que pode incluir a eliminação de pessoas. Pode ser que tenhamos nesses processos, como propôs a psicanalista Lélia Gonzalez, uma espécie de racismo por denegação. Uma hipótese esgrimida pela socióloga Juliana Vinuto, também pesquisadora do LAESP e do InEAC.

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O apetite pelas mortes alheias tem gerado dividendos políticos. Wilson Witzel, lembremos, foi eleito governador do estado  pregando “atirar na cabecinha” de traficantes nas favelas. Cláudio Castro, seu sucessor, seguiu a mesma ladainha, ainda que sem o mesmo alarde. Resultado: foi reeleito recentemente, com 58% dos votos, no primeiro turno. Neste diapasão, crescem o número de vítimas nas localidades mais pobres, sejam criminosos ou não. Não por acaso existe uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - a ADPF 635 - dirigida ao estado do Rio de Janeiro. Os massacres conduzidos pelas polícias do Rio nas periferias ensejam contornos de um genocídio, segundo crescentes percepções.

O curioso é que o governo federal e seus apoiadores vêm comemorando o fato de que no último ano o país apresentou acentuada queda na taxa de homicídio. Um olhar cuidadoso, porém, pode conter a euforia. Começando pelo fato de que o número de assassinatos registrados segue próximo a 50 mil ao ano. Mais importante, contudo, é considerar o aumento de mortes violentas por causas indeterminadas (MCVI). É o que diz o Atlas da Violência 2021, confeccionado pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que compilou dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAM), ambos do Ministério da Saúde, a partir dos atestados de óbito. Enquanto a taxa de homicídios na maioria dos estados brasileiros apresentou queda, entre 2018 e 2020, o número de mortes violentas em que não foi possível identificar a motivação cresceu 35,2% no mesmo período. Os maiores aumentos foram registrados no Acre (185%), em Rondônia (178%) e, sobretudo, no Rio de Janeiro (232%). Essas mortes podem ter sido provocadas por agressões, suicídios, assassinatos ou acidentes, mas acabam entrando nas estatísticas como indefinidas, puxando os registros de homicídios para baixo. 

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Por outro lado, crescem vertiginosamente os desaparecimentos. Segundo o ISP, só entre janeiro e abril  de 2022, 1.777 casos foram denunciados por parentes. Esse número é 38,8% maior do que o total de desaparecidos do mesmo período de 2021. Mesmo considerando que pode ter havido subnotificações neste último, em virtude da Pandemia, é possível que neste universo de desaparecidos haja um grande número de homicídios invisibilizados. Entre eles, de um contingente considerável de pessoas sem registros civis ou quaisquer tipos de documentação.

Antes de se desconfiar da redução dos homicídios, é preciso afirmar que não se pode comemorar quaisquer melhorias nos índices sobre segurança enquanto o percentual de assassinatos entre jovens de 20 a 29 anos segue nas alturas. Observa-se que o percentual de assassinatos é maior contra jovens de 20 a 24 anos (52,3%), seguido pelo subgrupo de 25 a 29 anos (43,7%). Em 2018, pretos e pardos foram 75,7% das vítimas destes homicídios. Um massacre e ação deliberada de precarização dos segmentos populares, comprometendo seu presente e futuro. 

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Concluindo, parece existir um padrão de letalidade que atinge centenas de pretos e pardos pelo Brasil afora e, principalmente, na região metropolitana do Rio. A dinâmica da violência observada sugere que o modelo de administração dos conflitos vigente opera a liquidação do outro por motivo racial. O que coloca a luta contra o racismo como questão de primeira ordem para a defesa da democracia.

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