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Assange e o direito internacional da exceção

Fundador do site WikiLeaks é o protagonista de um extraordinário caso de perseguição judicial e diplomática, escrevem as juristas Carol Proner e Gisele Ricobom

Apoiadora do fundador do WikiLeaks, Julian Assange, em Londres (Foto: Reuters)
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Por Carol Proner é advogada, doutora em direito, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia -ABJD

Gisele Ricobom é advogada, doutora em direito, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia -ABJD

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Resumo: O caso Assange precisa ser compreendido nesse contexto de degradação extrema em que a exceção se torna a regra e no qual o direito internacional pouco a pouco se deixa contaminar pelo sentido preventivo e punitivo. Julian Assange, exercendo a profissão de jornalista, toma uma decisão que está lhe custando a própria vida: decide expor os bastidores da guerra contra o terror planificada pelo governo dos Estados Unidos em franca violação aos princípios mais elementares do direito internacional. Do ponto de vista dos direitos humanos, não cometeu crime algum, ao contrário. Além de estar protegido pelo exercício da profissão de jornalista, pela liberdade de expressão e de proteger o sigilo da fonte, ainda deu a conhecer a verdade sobre fatos relevantes para toda a humanidade, garantindo o direito à informação e o direito à verdade.

I. O direito internacional da exceção; 

O jornalista Julian Paul Assange, cidadão australiano fundador do site WikiLeaks, é o protagonista de um extraordinário caso de perseguição judicial e diplomática que engendra o direito internacional de muitas maneiras. Está em jogo não apenas o respeito aos seus direitos, como à livre expressão, o exercício profissional do jornalismo, a proteção das fontes, o direito de asilo político (desrespeitado, como se sabe), e o de ser tratado como ser humano digno onde quer que esteja, especialmente no atual estado de encarceramento em regime de máxima segurança sob custódia do sistema penitenciário britânico. Muitos ativistas de direitos humanos esperam com ansiedade um desfecho de uma saga alucinante e que revela a determinação dos órgãos de segurança e de justiça norte-americanos quando tomam uma decisão de condenar alguém de forma exemplar. Na dogmática do direito internacional, as normas que tratam de Direitos Humanos, de Direito Internacional Humanitário e de Direito dos Refugiados são consideradas contentoras normativos de qualidade civilizatória, conjuntos de regras e obrigações especializadas e que se enlaçam com o fim de estabelecer um corpus juris de proteção com capacidade para funcionar em quaisquer circunstâncias de tempo e de espaço.Muitos são os documentos importantes que podem ser mencionados na evolução garantista dos marcos internacionais. Alguns datam do século XIX ou mesmo antes, transmitindo princípios gerais e costumes ao direito consolidado que, posteriormente, seria consolidado em pactos. Entre tantos, a  Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, é o ponto de partida para a evolução do sistema de proteção internacional aos direitos humanos e representa a prevalência da inteligência e da lucidez das nações diante dos horrores das Guerras Mundiais e o esforço para construir os princípios reitores de um novo humanismo.Esse corpus juris está, simbólica e normativamente, enfrentado quando analisamos o caso “Assange” e não há exemplo mais emblemático de uma “inversão ideológica” do direito internacional para fins de perseguição de um adversário político, algo que tem sido estudado contemporaneamente a partir das claves do que se convencionou chamar de lawfare.Franz J. Hinkelammert, no importante artigo de referência: “La inversión de los derechos humanos: el caso de John Locke”, ao citar a ambivalência dos direitos humanos na justificativa da guerra de Kosovo e a destruição de um país em nome dos direitos humanos, antecipou algo que é absolutamente atual para o caso Julian Assange: “Los derechos humanos se transformaron en una agresividad humanitaria: violar los derechos humanos de aquellos que los violan. Detrás de esto hay otra convicción según la cual quien viola derechos humanos, no tiene derechos humanos. El violador de los derechos humanos es transformado en un monstruo, en una bestia salvaje que se puede eliminar sin que haya la más mínima cuestión de derechos humanos. Pierde hasta el carácter de ser humano.”A partir da filosofia política, o autor denuncia a armadilha da inversão ideológica que ocorre a partir da ambivalência do direito, transformando vítimas em culpados e algozes em inocentes. Essa lógica perversa tem conexão com a teorização justificadora de John Locke nos processo de colonização e dominação e marca metodologicamente a elaboração conceitual da aplicação colonialista/imperialista dos direitos humanos. De Kosovo a Julian Assange, a história registra vários casos nos quais se constata a degradação dos compromissos assumidos em matéria humanitária. Certamente nem a Carta da ONU de 1946 e nem a Declaração Universal de 1948 jamais foram capazes de limitar completamente o uso da força, e foram diversas as estratégias furtivas para saltar compromissos e premissas estabelecidas no pós-guerra. Mas é a partir de 11 de setembro de 2001 que a degradação dos compromissos ganha uma qualidade especial.Algo mudou definitivamente quando os Estados Unidos decidiram fundamentar a legitima defesa “preventiva” após sofrerem ataques no próprio território. O que era exceção, sob pretexto humanitário, passa a ser a regra e a capacidade de contenção do uso da força pelo direito torna-se a exceção. Em outras palavras, o direito internacional contemporâneo, vis a vis o ideal onusiano da paz e da segurança internacional, passa a ser o direito internacional da exceção.Acerta Franz Hinkelammert quando identifica a racionalidade cínica que prevalece nas guerras preventivas e que parte do esvaziamento normativo das declarações e pactos diante da “força compulsiva dos fatos”, da necessidade de guerrear em um mundo competitivo e cheio de ameaças furtivas, de grupos terroristas que agem nas sombras e que podem, potencialmente, atingir qualquer um em qualquer lugar.O caso Assange precisa ser compreendido nesse contexto de degradação extrema em que a exceção se torna a regra e no qual o direito internacional pouco a pouco se deixa contaminar pelo sentido preventivo e punitivo. Julian Assange, exercendo a profissão de jornalista, toma uma decisão que está lhe custando a própria vida: decide expor os bastidores da guerra contra o terror planificada pelo governo dos Estados Unidos em franca violação aos princípios mais elementares do direito internacional.Do ponto de vista dos direitos humanos, não cometeu crime algum, ao contrário. Além de estar protegido pelo exercício da profissão de jornalista, pela liberdade de expressão e de proteger o sigilo da fonte, ainda deu a conhecer a verdade sobre fatos relevantes para toda a humanidade, garantindo o direito à informação e o direito à verdade.

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II. Inventando um ciberterrorista.

A saga persecutória contra Assange nunca foi transparente e informada. Revelou-se aos poucos e, na medida em que as informações classificadas foram sendo reveladas, mostrou-se mais agressiva. Recordar alguns fatos deste longo périplo permite compreender o avanço do cerco jurídico que incluiu o desenvolvimento de um processo ad hoc, feito sob medida para inculpá-lo a partir de uma nova tipificação de conduta forçadamente criminosa e em franca violação ao principio da anterioridade da lei penal.Olhando para trás, do dia em que Assange foi detido pelas autoridades inglesas na embaixada do Equador, 11 de abril de 2019, até os dias atuais,  foram anos de subterfúgios jurídicos e diplomáticos cuja principal finalidade era a de viabilizar a extradição do jornalista para os Estados Unidos e dar início a um processo premeditado de transformação de Assange no ícone do ciberterrorismo.De todo o material secreto revelado pela agência WikiLeaks, criada por Assange em 2006, o mais impressionante foi a divulgação, em 2010, do vídeo “morte colateral”, no qual é possível ver e ouvir diálogos de atiradores das Forças aéreas estadunidenses disparando indiscriminadamente contra civis iraquianos desarmados a partir de um helicóptero Apache e atuando num cenário de guerra real como se estivessem jogando um videogame. A banalização da morte retratada no vídeo é estarrecedora e as imagens viralizaram na Internet, permitindo ao mundo constatar o cometimento de crimes de guerra.O militar responsável pelo vazamento da informação e envio para WikiLeaks, Chelsea Manninng, foi preso um mês após a divulgação e condenado por espionagem e roubo. Desde a punição de Manninng, esperava-se, entre outros efeitos, um comportamento dissuasório por parte de Assange, mas a divulgação das informações filtradas prosseguiu com forte repercussão e apoio de importantes meios de comunicação.Importantes veículos de imprensa trabalharam na triagem de informações relevantes, entre os quais o jornal The Guardian, que se comprometeu a desvendar, separar as informações de interesse público e publicar a totalidade dos 80 mil documentos compartilhados por WikiLeaks envolvendo documentação classificada relativa à invasão dos Estados Unidos no Afeganistão.Algo novo surgia e era celebrado por agências de notícias em todo o mundo: a fórmula WikiLeaks de permitir, via postagens de fontes anônimas, acesso a documentos, fotos e informações confidenciais vazadas de governos ou empresas sobre assuntos sensíveis. Para o governo estadunidense era fundamental não apenas censurá-los como criminaliza-los exemplarmente.A decisão de Julian Assange, à frente da WikiLeaks, de prosseguir com as revelações secretas enfureceu o governo dos Estados Unidos, então sob administração Clinton, e deu causa a uma estratégia acusatória que pudesse excepcionar o direito profissional de liberdade de expressão em nome da segurança nacional. Com a justificativa de que as filtrações vulneravam famílias de afegãos colaboradores dos Estados Unidos, WikiLeaks foi denunciada pelo Pentágono como organização criminosa: Julian Assange teria sangue nas mãos. É fundamental compreender, para entender a saga persecutória contra o jornalista que teve coragem de revelar os graves crimes, que desde 2010 Assange já era consciente de que o governo norte-americano pretendia prendê-lo. Toda a estratégia, que passou pela decisão de buscar asilo em embaixada segura e de não se entregar à justiça britânica para responder às acusações de crimes sexuais na Suécia, tem como fundamento a compreensão de que seria extraditado para a Suécia e posteriormente para os Estados Unidos ou diretamente para este país, e responderia a um processo draconiano com penas extremadas.O caso é impressionante porque engendra estratégias de lado a lado. De um lado, o governo dos Estados Unidos, por meio dos serviços de inteligência, acionou uma rede de colaboração com os governos britânico e sueco que passava pelo sistema de justiça de ambos os países. De outro lado, ao decidir solicitar direito de asilo, Assange recorreu à embaixada mais favorável à compreensão de sua situação, a do Equador, governo que, sob administração de Rafael Correa, tinha um posicionamento crítico ao imperialismo estadunidense. Logo que ingressou na embaixada, Assange recebeu apoio jurídico de importantes advogados dada a repercussão do caso para além do próprio jornalista. Em junho de 2012, ele já era o prisioneiro político mais vigiado do mundo, albergado em uma casa vitoriana no centro de Londres, observado diuturnamente pela polícia britânica e por agendes de inteligência e obrigado a sobreviver em um quarto de 20 metros quadrados, um cômodo opaco com as janelas fechadas, bloqueada da vista exterior, sem acesso à luz solar, sem direito a caminhadas para exercício, ou seja, viveu durante 7 anos em condições inumanas, o que lhe acarretou sérios problemas de saúde.Mesmo em condições indignas, mas tendo acesso à Internet, Assange continuou trabalhando na divulgação de informações confidencias. Entre as mais relevantes, WikiLeaks revelou que três presidentes franceses foram espionados pelo serviço secreto americano (Nicolás Sarkozy, François Hollande e Jacques Chirac), denunciando o que chamou de uma “distopia totalitária transnacional” por parte do governo dos Estado Unidos contra o mundo. Outro elemento que explica a determinação sancionatória dos americanos foi a obsessão de Assange contra a “superpotência imperialista” e o papel que exerceu durante as eleições de 2016, em especial divulgando documentos confidencias de Hillary Clinton em proveito de Donald Trump, o que lhe rendeu a acusação de tentativa de desestabilização do processo eleitoral em envolvimento com o governo russo.Este pequeno recordatório de fatos deixa de mencionar muitos outros, mas serve para demonstrar que, aos poucos, Julian Assange se transformou em um inimigo crucial a ser combatido pelos Estados Unidos e por aliados europeus, o que explica a determinação em construir uma estratégia processual exemplar e uma condenação paradigmática: “matar o mensageiro.”Dentro da embaixada equatoriana as condições foram se deteriorando com o tempo. Não apenas pelo tempo vivido em ambiente impróprio, como também pelas negativas de reconhecimento do direito de asilo tanto pelo direito britânico e como pelo direito europeu. Assange permaneceu trabalhando freneticamente desde que se refugiou, mas a pressão dos Estados Unidos contra o Equador se intensificou a ponto de fazê-los restringir alguns privilégios, entre os quais o acesso à Internet. Do ponto de vista do direito e da diplomacia que circundam o caso, são marcantes as reiteradas negativas de aceitar que o jornalista estava sendo perseguido e sob risco de extradição por um processo que se desenvolvia dentro dos Estados Unidos e sem o seu conhecimento ou de seus advogados. Hoje sabe-se que, durante o asilo, tanto advogados como visitantes foram espionados pela empresa espanhola responsável pela sua segurança (UG Global, David Morales Baltasar), o que viola absolutamente o direito à ampla defesa e o devido processo legal.Somente em 2018 o jornalista foi oficialmente acusado de espionagem e em 11 de abril de 2019, o presidente do Equador, então Lenin Moreno, se manifesta em rede nacional para dizer que a postura do Sr. Assange se tornou inaceitável e insustentável, para em seguida declarar o fim do asilo diplomático iniciado em 2012. No mesmo dia Assange foi preso pela polícia inglesa, acusado de desacato à justiça, e enviado a uma prisão de alta segurança, a prisão de Belmarsh, conhecida como Guantánamo britânica, permanecendo em máximo isolamento.A partir de então começa o julgamento, no sentido amplo da palavra. Não apenas a justiça britânica passa a ser acionada, mas toda a imprensa, a diplomacia internacional e o esforço imperialista na construção da imagem do inimigo a ser combatido, do monstro, do terrorista perigoso, como descreveu Franz Hinkelammert ao referir-se à inversão ideológica dos direitos humanos.

III. A trama jurídica da exceção.  

Em 04 de fevereiro de 2020 começa o processo contra Julian Assange diante da justiça Britânica. Ocorre a primeira audiência dentro da prisão, quando Assange aparece na sala destinada ao julgamento dentro de uma caixa de vidro, apresentado com um terrorista extremamente perigoso, bem longe de qualquer ideia de contraditório.Durante a audiência, o procurador faz acusações genéricas, enfatizando que pessoas foram colocadas em risco pelas ações do jornalista, mas não apresentou provas nem citou caso concreto ou pessoas afetadas. Desde 2012, Assange estava sendo investigado pelo grande júri do Distrito Oriental de Virgínia por vários crimes de espionagem e informáticos. As acusações permaneceram secretas durante anos, mesmo quando os advogados solicitaram que fossem tornadas públicas em outro julgamento em 2016. Somente em 2019, logo após o encerramento do asilo, as acusações foram liberadas para conhecimento público.Assange foi acusado de conspiração para invadir computadores com o objetivo de auxiliar Chelsea Manning a ganhar acesso às informações privilegiadas e de publicar no WikiLeaks. Esta é uma acusação relativamente menos séria em comparação com as acusações feitas contra Manning, e tem uma sentença máxima de cinco anos com a possibilidade de perdão. Mas a grande armadilha acusatória ocorreu no dia 23 de maio de 2019, quando se deu o indiciamento substitutivo, a partir do enquadramento numa lei de espionagem de 1917, o “Espionage Act de 1917”, na Corte do Distrito Oriental de Virgínia, por ofensas relacionadas à publicação dos casos diplomáticos e outras informações sensíveis. Esse processo acusatório substitutivo adicionou 17 acusações federais à original, totalizando finalmente 18 acusações criminais contra o jornalista que podem acarretar até 175 anos de prisão.No dia 25 de março de 2020 uma corte de Londres negou o pedido de fiança apresentado pela defesa e que tinham como fundamento, entre outros relacionados com a saúde de Assange, a possibilidade de que pudesse contrair Covid-19. O pedido foi negado, trazendo grande comoção aos apoiadores, amigos e familiares de Assange dada a fragilidade de seu estado de saúde.Quase um ano depois, em 04 de janeiro de 2021, a justiça britânica surpreendeu com uma decisão que rejeitou a extradição de Assange aos Estados Unidos. A juíza Vanessa Baraitser, responsável pela sentença, fundamentou a negativa a partir do estado psíquico do acusado: “La salud mental del Sr. Assange se halla en tal estado que resultaría agobiante para él ser extraditado a Estados Unidos”, declarou a juíza.A decisão foi comemorada como uma vitória pelos advogados de defesa e pela campanha Free Assange. Fundamentada em relatórios médicos e na história familiar do réu, além de argumentar a inquestionável precariedade do sistema prisional dos Estados Unidos, a decisão evitava temporariamente extradição. Por outro lado, conforme argumentos usados pela juíza, a atividade do jornalista foi claramente criminalizada.Por um lado, é verdade que a fundamentação da sentença chega a desqualificar o mecanismo penitenciário norte-americano e evitou a extradição. Por outro lado, da forma como foi justificada, a decisão pode ser considerada um carimbo legal para que jornalistas possam ser processados e julgados em casos futuros e que a extradição, em situações nas quais não estejam presentes as razões de Assange, seria concedida.Baraitser concordou que a publicação de material de segurança nacional constituía um crime nos Estados Unidos, sob a Lei de Espionagem, e que também o seria no Reino Unido, sob a Lei de Segredos Oficiais, sem defesa do interesse público em nenhuma das jurisdições.  Também concordou que encorajar uma fonte a vazar informações classificadas é crime e que as publicações do WikiLeaks colocaram vidas em risco.Conforme reconheceu o porta-voz do Departamento de Justiça dos EUA após o veredito: “Embora estejamos extremamente decepcionados com a decisão final do tribunal, estamos gratos que os Estados Unidos prevaleceram em todos os pontos da lei levantados. Em particular, o tribunal rejeitou todos os argumentos de Assange sobre motivação política, ofensa política, julgamento justo e liberdade de expressão. Continuaremos buscando a extradição de Assange para os Estados Unidos.”No dia 06 de janeiro a justiça britânica recusa liberar Assange sob fiança e decide que deverá permanecer preso.Em 11 de fevereiro de 2021 os procuradores recorrem da decisão, apelaram ao Supremo Tribunal de Justiça britânico para fornecer ao Reino Unido "garantias diplomáticas" destinadas a reduzir o risco de maus-tratos na detenção se Julian Assange fosse encarcerado em um estabelecimento prisional federal. 10 de dezembro de 2021, a Alta Corte de Londres responde impactando defensores da liberdade de imprensa e dos direitos humanos em todo o mundo. Reformando a sentença anterior, o tribunal decide autorizar a extradição de Julian Assange, desqualificando os argumentos humanitários apresentados pela juíza Vanessa. Os magistrados Ian Duncan Burnett e Timothy Holroyde revogaram a decisão anterior e foram além, repreenderam nos autos a atuação da juíza Baraitser. Frente ao temor pela saúde mental do réu – uma exceção contemplada na Lei de Extradição britânica de 2003 –, a juíza deveria, antes de tomar a decisão, ter oferecido ao Governo dos Estados Unidos a possibilidade de incorporar novas garantias de que nada aconteceria a Assange, disseram os juízes. O tribunal levou em consideração as promessas dos acusadores estadunidenses de garantir tratamento médico e psicológico em prisão ordinária, evitando a Supermax do Colorado, descrita por um ex-diretor do presídio como “a versão limpa do inferno” e um “destino pior que a morte”. Eventualmente, afiançam os promotores, a pena poderia até mesmo ser cumprida no país natal do acusado, a Austrália. Promessas semelhantes já haviam sido feitas no caso Abu Hamza, episódio narrado na sentença da juíza Baraitser demonstrando que os compromissos foram dramaticamente quebrados. No caso paradigma, o condenado, um homem com as mãos amputadas, foi privado de próteses que lhe permitiam escovar os dentes, praticar a higiene íntima, limpar a própria cela e outros afazeres de dignidade. A drástica decisão do tribunal também desconsiderou que Assange vinha sendo tratado com excepcionalidade em todo o périplo desde que trouxe ao mundo o conhecimento dos crimes de guerra e as estratégias de espionagem cometidas pelos Estados Unidos. Nas audiências, o ativista era tratado como um animal perigoso. No dia marcado para o julgamento, após ser revistado nu e tomar o café da manhã, foi transportado acorrentado até o tribunal e apresentado ao público mais uma vez dentro de uma caixa de vidro. Sem acesso direto aos advogados, era-lhe permitido escrever notas e ajoelhar para passá-las aos defensores por uma fenda no chão. Após a audiência, foi imediatamente reconduzido à prisão de Belmarsh. Mas essa é apenas a fase atual da perseguição. O périplo inclui acusações falsas de crimes sexuais, novos tipos penais feitos sob medida para o ativista, tribunais secretos, processos sigilosos e acusações supervenientes para garantir a construção de uma normativa inescapável contra ele e qualquer pessoa que ouse enfrentar as razões do império. O caso Assange é um exemplo extremo das estratégias de lawfare que combinam a cumplicidade dos sistemas de justiça de vários países, incluindo aqui, além dos principais perseguidores, também a Suécia e a União Europeia de modo geral – por não reconhecer e aplicar garantias em determinada etapa do processo –  e finalmente o Equador de Lenin Moreno, especialmente após o giro geopolítico de 2019 que resultou na entrega do jornalista ao conluio de jurisdições.A decisão de extradição ainda permite recurso à Corte Constitucional britânica e é possível que um colegiado defensor de direitos fundamentais evite a entrega de Julian Assange aos verdadeiros criminosos que buscam impor ao mundo a sua justiça de forma unilateral, coercitiva e ilegal.Essa é a expectativa da advogada Stella Moris que, atuando na defesa do jornalista, tornou-se sua mulher, mãe de dois filhos gerados durante o asilo. Moris está confiante de que Assange vencerá no Tribunal. Mas mesmo que a Suprema Corte decida não acolher o pedido da defesa, a batalha legal terá continuidade, pois a aprovação da extradição depende de decisão política do Ministro do Interior britânico.

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IV. Assange venceu. 

No momento em que este livro é publicado, Assange permanece recluso da prisão de Belmarsh à espera de uma decisão que poderá livrar-lhe da absurda extradição e permitir que possa viver ao lado da família com alguma paz depois de tantos anos de sofrimento.A campanha Free Assange se intensifica com milhares de pessoas em todo o mundo engajadas em defender a liberdade de expressão e os direitos de alguém que representa um mártir do jornalismo comprometido com um mundo mais humano. Mas, independentemente do veredito, Assange de certo modo já triunfou. Seu caso já é um exemplo do mais absoluto arbítrio e de desrespeito aos direitos humanos e à liberdade de expressão.O direito internacional tem muito a dizer a respeito do conjunto de direitos persistentemente violados neste caso emblemático, a começar pelo fato de que Assange é cidadão australiano, e não norte-americano. Tampouco WikiLeaks tem base nos Estados Unidos, tornando injustificável que a pena seja cumprida naquele país.Os Estados Unidos se arrogam ao direito de exercer jurisdição universal em um caso que engendra o conhecimento, graças ao exercício profissional do jornalista, de irregularidades e crimes cometidos por suas próprias forças de segurança. É irônico que os acusadores sejam justamente os que foram desmascarados no cometimento de crimes em nome da razão de Estado. Como é possível deduzir, a justiça estadunidense cria secretamente as condições ideais para conduzir um processo contra um alvo de sua política externa, um processo que se produziu secretamente durante anos, violando o direito universal de qualquer ser humano a um justo processo.Como argumentam os advogados de Assange, a lei de espionagem usada pelos EEUU para embasar as suas acusações é, como mínimo, genérica, duvidosa, bem como a argumentação acusatória apresentada nas audiências, sem provas, sem identificar vítimas concretas, nem mesmo o nome de pessoas.Pelo direito norte-americano, como jornalista, Assange tem direito à proteção da Primeira Emenda que impede, textualmente, ao Congresso americano de infringir seis direitos fundamentais, entre os quais a liberdade de expressão e à liberdade de imprensa. Excepcionar essa garantia de liberdade não seria razoável, pois direitos humanos não reconhecem fronteiras.Outro ponto sustentado pela defesa de Assange é a de que WikiLeaks tomou todos os cuidados na divulgação das notícias para garantir que os nomes das pessoas fossem preservados para justamente evitar riscos. Os textos foram redigidos com trabalho de curadoria, zelo e cautela, evitando palavras comprometedoras ou que não fossem de interesse público.Este julgamento vai muito além de Julian Assange. Por mais desanimadores que sejam os argumentos da justiça britânica, consolidando jurisprudência contra a liberdade de imprensa em casos semelhantes, a cada dia torna-se mais evidente que as razões ultrapassam o direito e repousam no campo da política e da geopolítica. Basicamente, o que se censura a Julian Assange é ter prejudicado a imagem dos Estados Unidos e principalmente de seus líderes, o que faz da permanência de sua prisão, e eventual extradição, um fardo a ser sustentado pela hipocrisia dos regimes pretensamente democráticos.

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