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Lincoln Secco

Professor do departamento de história da USP, é autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê)

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A pós-República

Comentário sobre o fim da Nova República

Palácio do Planalto (Foto: Ricardo Stuckert/PR)
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(Publicado no site A Terra é Redonda)

Há alguns anos se discute o fim da mal chamada Nova República. O ensaio de neoliberalismo extremo que tivemos a partir de 2016 exprimiu algo que não tem mais nenhuma objetividade como regime político e social. Ele não pode negar e recolocar o sistema anterior como seu momento constitutivo. O binômio social-liberal que marcou a era trabalhista do capitalismo colapsou. Potencialmente, a sociedade não mais existe, é só o lado liberal que se põe como a aparente totalidade. Ele se nutre de um terreno social deformado por serviços privatizados, falsas organizações sociais e terceirizações. A “política” não incorpora a classe trabalhadora na esfera da cidadania, apenas indivíduos dotados de direitos que não restrinjam a taxa de lucro.

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Na VI República vivenciou-se um regime de tensão entre uma ótica social e outra liberal. Social nas conquistas populares da Assembléia Constituinte, liberal na execução dos governantes. O golpe de 2016 levou ao poder dois governos ilegítimos. A vitória do PT em 2022 interrompeu momentaneamente a fascistização do Estado.

A fase atual difere da Nova República porque sua forma é a do progressismo em matéria de novos direitos, todavia desconectados de qualquer mudança na esfera produtiva. Houve avanços irrenunciáveis na cultura política e nas relações intersubjetivas, mas na maioria dos casos sem custo econômico para as classes dominantes.

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O mudancismo da década de 1980, por outro lado, só tangenciava aqueles direitos individuais, o que era injustificável. Por outro lado, atingia o nível das relações de produção e, especificicamente a forma salário. É verdade que o salário expressa e ao mesmo tempo obscurece a exploração da força de trabalho, mas é em torno dele que ocorre o principal conflito distributivo nas sociedades capitalistas. A defesa dos direitos trabalhistas e sindicais e do salário direto e indireto davam o tom daquele período histórico.

Com a Constituição de 1988 os direitos trabalhistas, previdenciários e sociais se tornaram um terreno comum de disputa. Mesmo governos neoliberais eram comedidos diante daquelas travas sociais. Contudo, a partir do século XXI, a própria esquerda deixou de tratá-los como intocáveis. E nos dias de hoje, mesmo governos progressistas têm receio do “vandalismo mercantil”[i] que os impede até de cogitar uma mera alteração na meta de inflação no Copom. O novo arcabouço, ou seja, a estrutura em que a luta de classes deve se mover, é agora fiscal e não social. Os nomes não são casuais.

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República

O historiador Murilo Leal Neto registrou a presença de um sujeito coletivo formado pela “classe operária + classes populares + setores da classe média” no período 1951-1964 num contexto de industrialização acelerada, urbanização e tendência ao pleno emprego na capital paulista.[ii]

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Embora as mudanças sociais e materiais que ocorreram depois fossem decisivas, aquele campo popular ainda se fez presente nos anos 1980 quando assistimos às greves gerais e lutas sindicais, depois esvaziadas pela automação e pela orientação política das direções sindicais. Poderíamos agregar novos valores religiosos, o neoliberalismo, o setor informal, ataques à CLT etc. Mas o processo de desindustrialização foi decisivo para diferenciar a chamada Nova República das fases políticas anteriores, particularmente a República de 1946.

A Sexta República foi marcada por um Estado redistribuidor da mais-valia social para além das capacidades produtivas do país. Houve uma desconexão entre o baixo crescimento econômico, a capacidade de tributar os ricos e a promessa de ampliação da participação da classe trabalhadora no produto social. Em outras palavras, a forma jurídica das relações de produção exprimia uma correlação política de forças que não correspondia mais ao chão material da economia.

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A expressão jurídica daquele conflito foi resumida por Hideyo Saito quando afirmou que a Constituição de 1988 “criou o arcabouço progressista de proteção social, mas um sistema tributário conservador, incapaz de sustentá-lo. A classe dominante e sua mídia, entretanto, pregam a ideia de que a Constituição tornou o país ingovernável devido ao ‘excesso’ de direitos sociais e sindicais: o desvio estaria nesses direitos e não na regressividade dos tributos, que poupa as classes mais abastadas”.[iii]

Obviamente poderia haver distribuição de renda passada, mas num sistema capitalista democrático a tensão de um conflito distributivo sem renda adicional levaria à ditadura de uma das classes sociais fundamentais: o proletariado ou a burguesia. Não é à toa que a democracia é na maioria dos países um regime instável. O rumo tomado foi o da conciliação de classes que o boom do agronegócio e a orientação reformista do governo permitiram.

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O ensaio de revolução democrática de 1984-1989 (Diretas Já!, constituinte, greves gerais, Frente Brasil Popular) coindidiu com o final do longo ciclo de crescimento econômico brasileiro. Se a CLT marcou a decolagem da indústria pesada no Brasil, a Constituição de 1988 assinalou o fim da industrialização.

A Assembleia Nacional Constituinte ampliou gastos, contudo foi regressiva na arrecadação. Um exemplo, entre tantos, foi o da tabela do imposto de renda. No final da Ditadura o Decreto-lei 2.065/83 fixou a alíquota máxima de 60%. A Constituição de 1988 reduziu para 25%. Em 1999 estabeleceu-se 27,5%.[iv] Pouco antes houve a isenção de lucros e dividendos (1995).

A disputa pelo orçamento público na VI República teve duas balizas opostas: (i) estabelecimento de percentual mínimo de gastos com saúde e educação, manutenção da seguridade social etc.; (ii) a dívida pública que sequestra parte expressiva da arrecadação para remunerar os rentistas.

Era um arcabouço marcado pelo conflito: de um lado, protegia-se um piso mínimo de recursos sociais e a destinação de alguns tributos para garantir direitos sociais. De outro, defendia-se o superávit primário (resultado positivo de receitas menos despesas do governo, excetuando os gastos com juros). Politicamente, o contencioso se traduziu no presidencialismo de cerco. O congresso assediou o executivo quando este teve veleidades “populistas”.

Diante do consenso popular favorável à gratuidade da educação e da saúde pública, o congresso sempre teve dificuldade para desvincular receitas e o caminho adotado pela direita foi o de estabelecer um corte linear no gasto público. Os marcos desse processo foram: 1997 com a retirada do direito dos estados de emissão de títulos públicos[v] (dívida mobiliária); 2000 com a Lei de Responsabilidade Fiscal; 2016 com o teto constitucional para despesas primárias (ou seja, desconsiderando o pagamento de juros); 2023 com o novo arcabouço fiscal.

O ciclo petista

Entre 1981 e 2022, a população cresceu 1,4% ao ano e o PIB cresceu 2,2% ao ano. Assim, a renda per capita aumentou só 0,8% ao ano.[vi] Após a constituinte, o PIB cresceu apenas 1,8% por ano entre 1989 e 2003. No segundo mandato de Lula, o PIB brasileiro cresceu 4,6% ao ano. Naquele curto período o PT valorizou o salário mínimo e o gasto social, mas o crescimento não se assentou numa base industrial ou de serviços tecnológicos avançados e reproduziu a dependência estrutural do país. Sujeitou-se assim à regressão que rapidamente se seguiu.

Embora a VI República possa ser dividida entre os períodos do PSDB e PT, sua unidade residiu naquela desconexão produtiva citada acima. É como se a história política e a econômica caminhassem separadas quando recortamos analiticamente cada fase e ao mesmo tempo articuladas quando consideramos o período como um todo. A extensão de direitos sem base material sólida só pode se dar de forma precária.

A chamada Nova República repousava na promessa de atendimento das demandas sociais sem contrapartida na produção material. A parca distribuição de renda havia se autonomizado diante de sua estreita base econômica no momento petista. Foi a dialética da segunda fase daquele período histórico.

Não significa que os direitos conquistados fossem financiados pelo confisco da renda passada dos ricos. Ao contrário. A desigualdade de renda diminuiu na VI República, mas isso se deu de forma tímida e a concentração de riqueza patrimonial se manteve. Há um extenso debate metodológico sobre a mensuração da desigualdade brasileira. O fato é que a universalização de direitos se traduziu de duas formas: precarização e ampliação do acesso.

Não é um binômio estanque. Acesso a saúde, educação, habitação, cisternas, eletricidade não é algo precário para quem não tinha nada disso. O termo precarização é ambíguo ao ser importado para o Brasil. A força de trabalho em sua maioria sempre foi informal. Entrar numa escola pública que rebaixou a qualidade não é percebido como desqualificação por quem não podia ir à escola.

O Estado é que escolheu a desqualificação porque preferiu remunerar organizações “sociais”. O problema é que quando o acesso se generaliza, o passo seguinte dos governos deveria ser a melhoria do serviço e para isso seria preciso mudar o modelo econômico neocolonialismo, criar uma economia industrializada e um sistema de impostos progressivos. Isso não cabia no leito estreito em que adormeciam os conflitos da VI República. O descompasso entre “economia” e “política” precisava ser resolvido.

A Lava Jato e o golpe de 2016 procuraram uma forma jurídico-política neoliberal. Já o fascismo rompeu com qualquer forma e pôs a nu o que hoje temos. A derrota apenas eleitoral do fascismo abriu o interregno de um país em compasso de espera. Há que se definir se teremos uma república social ou o aprofundamento do mais puro liberalismo porque a junção das duas coisas não deu certo.

Notas

[i]A expressão é de Gilberto Maringoni. Agradeço a leitura dele e de Giancarlo Summa.

[ii]Neto, Murilo Leal Pereira. “A fábrica, o sindicato, o bairro e a política: a “reinvenção” da classe trabalhadora de São Paulo (1951-1964)”. Revista Mundos do Trabalho, vol.1, n. 1, janeiro-junho de 2009.

[iii]Saito, H. “”Ricos devem pagar mais imposto”, Mouro no. 15, janeiro de 2021, p. 308.

[iv]Nóbrega, Cristovão B. História do Imposto de Renda no Brasil, um Enfoque da Pessoa Física (1922-2013). Brasília: Receita Federal, 2014.

[v]Trindade, J. R. “Dependência fiscal”, https://aterraeredonda.com.br/dependencia-fiscal/. Sobre a privatização dos bancos estaduais vide: Paes, Julieda P. P. Bancos estaduais, ‘criação’ de moeda e ciclo político. São Paulo: FGV, 1996.

[vi] Alves, José E. D. “O crescimento do PIB brasileiro por períodos presidenciais entre 1956 e 2022”, EcoDebate, 28-09-2022.

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