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Jean Goldenbaum

Músico, professor da Universidade de Música de Hanôver, Alemanha. É membro fundador do ‘Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil’ e fundador do coletivo ‘Judias e judeus com Lula’

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Acordo de paz entre Israel e EAU: nada além de mais uma jogada de Netanyahu e Trump (e do xeique)

Na semana passada fomos pegos de surpresa pelo anúncio de um “histórico acordo de paz” entre Israel e Emirados Árabes Unidos, que teve Donald Trump como mediador e protagonista

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Na semana passada fomos pegos de surpresa pelo anúncio de um “histórico acordo de paz” entre Israel e Emirados Árabes Unidos, que teve Donald Trump como mediador e protagonista. Entretanto, para quem conhece o contexto atual dos três países envolvidos, ficou logo claro que este trato não passa de mais uma jogada política da dupla ultradireitista Trump-Netanyahu, que nesta aventura conta também com o Príncipe Xeique Mohammed bin Zayed. No fim das contas, os personagens principais do mais grave e complexo conflito do Oriente Médio, os palestinos, foram mais uma vez desprezados. Ou até pior: nesta ocasião foram utilizados como “moeda de troca”.

Vamos esmiuçar toda esta história, compreendendo os motivos e as motivações de cada parte envolvida:

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Comecemos por Trump. Essa é simples. A menos de três meses das eleições presidenciais, o “gênio muito estável”, como ele se autointitulou, começa a se preocupar com suas chances de se manter na Casa Branca. Embora seu adversário seja muito fraco – sim, Joe Biden é fruto de mais um “tiro no pé” do Partido Democrata –, as pesquisas indicam hoje a derrota de Trump por cerca de dez pontos percentuais em contagem absoluta. E a avaliação de acordo com o sistema de colégios eleitorais, o que o salvou em 2016, desta vez também indica sua derrota.

Portanto ele necessita acelerar sua campanha o máximo possível agora. E ele fará isto de duas maneiras. A primeira é a sua especialidade: jogo baixo, ataques pessoais ao adversário, apelos nacionalistas e racistas e, logicamente, toda a eficiência da máquina de fake news. A segunda é criação da imagem de “líder que realiza coisas positivas para a América e para o mundo” – que é exatamente o oposto de tudo o que fez em seu mandato. É aí que entra seu parceiro Netanyahu, concedendo ao amigo ianque o rótulo de mediador de um aparentemente histórico aperto de mãos com os árabes.

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Mas antes de abordarmos ao primeiro-ministro de Israel, cabe ainda um interessante adendo sobre a relação de Trump com os EAU: o norte-americano possui vastos negócios com o país árabe e já ganhou muito dinheiro em parceria com este. Em seu relatório financeiro de julho de 2015, consta que ele possuía naquele momento conexão com pelo menos 12 empresas emiradas, das quais ele era presidente, chairman, diretor ou membro acionista. Cabe ainda lembramos que quando em janeiro de 2017 o cidadão assinou a racista Ordem Executiva 13769 (também conhecida como “muslim ban”, “banimento muçulmano”), que perseguia viajantes e refugiados islâmicos, os países listados como alvo de tal ação eram: Iêmen, Irã, Iraque, Líbia, Síria, Somália e Sudão, países em que Trump não possui business. Já nações (também muçulmanas) em que ele possui, como Arábia Saudita, Egito, Turquia e, é claro, EAU, simplesmente foram poupados da lista. Ou seja, é evidente como os interesses pessoais de Trump – sejam financeiros ou políticos – sempre reinam acima dos interesses das populações.

Mas voltemos a Netanyahu. Pois bem, ele nunca embarcaria em tal acordo simplesmente por “amor e dedicação” a Trump. Os dois líderes são semelhantes e, da mesma forma, o israelense também precisaria obter alguma vantagem pessoal com este importante passo. E sendo a “velha raposa política” que é, conseguiu unir o útil ao agradável.

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Vejam, teoricamente o principal atributo deste acordo de paz é o cancelamento do prosseguimento das anexações israelenses na Cisjordânia, algo que seria muito positivo para os palestinos. Mas Netanyahu já deixou completamente claro que seus planos principais em seu longuíssimo governo são justamente tomar mais e mais terras palestinas, instalando lá novos colonos judeus, em um clássico processo expansionista. E ele não se envergonha em deixar muito claro que este será o seu legado, de modo que se torne uma espécie de “rei moderno” de Israel. Por que então ele aceitou ceder justamente neste ponto?

A resposta é: ele não tinha escolha. Ao menos por ora. E isso se deu graças a dois motivos. O primeiro é a pandemia. Embora Israel tenha agido de maneira decente no início da crise, em julho o governo apressou-se a reabrir o comércio e as escolas, gerando uma grave e inesperada ascensão da curva de contaminações. Então agora está longe de ser o momento ideal para seguir em frente com esta complexa empreitada que exige tanto material humano.

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O segundo motivo é a fortíssima opinião internacional contrária às anexações. Diversos países se manifestaram contra o prosseguimento dos planos de Netanyahu, entre eles a Alemanha, país que encabeça a União Europeia. O posicionamento da Alemanha, liderado pelo Ministro de Relações Exteriores Heiko Maas (do partido SPD, uma espécie de “PT alemão”), foi muito claro e incisivo. E todos os grupos parlamentares do país – com exceção do AfD, partido neonazista e único alemão a parabenizar o presidente brasileiro por sua eleição – aprovaram a moção, considerando os planos de Israel “em contradição com a lei internacional”. Maas complementou: “A paz não pode ser alcançada através de passos unilaterais.”

Cabe ainda dizer que a Alemanha, devido o tenebroso passado relativo aos judeus, raramente critica os planos de Israel de maneira aguda e categórica, como fez desta vez. Então, esta mudança de postura possui um significado considerável e, em minha opinião, muito positivo.

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Desta forma, por conta destes dois motivos, Netanyahu simplesmente não teria como avançar agora com suas nefastas intenções. Sua opção foi então mudar os planos e utilizar a “não anexação” como moeda de troca no acordo de paz com os EAU. Assim, ao invés de se mostrar derrotado por não conseguir realizar o que queria, ele se apresentou como “estadista benevolente e perseguidor da paz”, ao alterar seus objetivos em nome de um “bem maior”.

Dito isto, é essencial deixarmos claro que em nenhum momento foi assinado qualquer acordo que cancele permanentemente a continuidade das anexações. Netanyahu continua comprometido com seus eleitores, a quem prometeu as terras da Cisjordânia e que, logicamente, continuarão o cobrando por elas. E como nem em um milhão de anos ele aceitaria perder todo o apoio da direita e da extrema-direita israelense, é só questão de tempo até que as próximas conversas acerca das anexações sejam retomadas. Parte de seus seguidores já o chamou de traidor, enquanto outra parte aguarda pacientemente o discorrer dos acontecimentos, mas estará pronta para também acusá-lo se se sentir traída.

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Por fim, chegamos aos interesses dos EAU. Aqui também não é necessário muito esforço ou imaginação para se compreender no que se baseia este acordo: grana. Simples assim. O país é riquíssimo, os xeiques são bilionários e Dubai é uma das cidades que mais atrai e gera dinheiro no planeta. E eles querem mais. E terão mais, tanto através de vínculos econômicos com Israel, quanto através de boas relações com judeus de outros países, que possivelmente passarão a enxergar o país de maneira positiva.

Vale também mencionar aqui que nos EAU a lei que rege é a Xariá, a legislação islâmica, na qual religião e direito não se separam. Então estamos tratando de leis medievais que geram todas as possíveis e imagináveis violações de direitos humanos sobre a população. Mas isto não parece importar ou incomodar nem aos envolvidos do acordo de paz e nem àqueles que gozam dos brilhos e riquezas da exuberante Dubai.

Mas, enfim, "e os palestinos?", o leitor ou leitora pode perguntar. A paralisação do avanço das anexações na Cisjordânia não é no fim das contas algo positivo? Repito: este argumento é ilusório, pois a paralisação é momentânea. Se trata de um adiamento, não de um cancelamento. Não há em vista nenhum progresso concreto em nome da causa palestina. Os EAU, embora parte de uma suposta irmandade muçulmana, sempre se mostraram minimamente interessados pelos “irmãos” palestinos. E mais uma vez só o que fizeram foi apertar as mãos de seus detratores, Netanyahu e Trump. Não é à toa que a resposta imediata de ambas as vertentes políticas palestinas, a Organização para a Libertação da Palestina e o Hamas, foi de completo desgosto com relação ao acordo:

Enquanto o Hamas descreveu o trato como uma “facada traiçoeira nas costas do povo palestino”, a OLP emitiu a declaração de que “rejeita e denuncia o surpreendente anúncio trilateral entre EAU, Israel e Estados Unidos”. Hanan Ashwari, membra da OLP mandou o seguinte recado aos emirados: “Que vocês nunca experimentem a agonia de ter seu país roubado; que vocês nunca sintam a dor de viver em cativeiro sob ocupação; que vocês nunca testemunhem a demolição de suas casas ou o assassinato de seus entes queridos. Que vocês nunca sejam vendidos por seus “amigos”.”

Em suma, há algo de positivo a se comemorar com este acordo? Sim, há, mas perto das negatividades, as positividades se mostram diluídas. Enxergar somente positividades é pensar somente na paz para poucos, e não para todos. Não podemos perder de vista: quem está mais em apuros do que qualquer outro povo no Oriente Médio é o povo palestino. Deste modo, qualquer normalização da situação, qualquer esforço para um bem parcial que exclua os mais oprimidos, é antes nocivo que benéfico.

É claro que pessoalmente dou boas vindas a qualquer acordo de paz. Mas acontecimentos políticos não ocorrem sem a presença de diversos outros eventos que se dão consequentemente a eles. Esta é também a visão da instituição norte-americana judaica progressista e esquerdista J-Street. Eles declaram: “O acordo entre Israel e os EAU para avançar em direção a laços totalmente normalizados também é uma boa notícia para todos os que desejam ver uma Israel estável e próspera vivendo em paz e segurança ao lado de todos os seus vizinhos regionais”. E alertam com relação às anexações: “Será necessário o esclarecimento de que esta não é simplesmente uma suspensão de curto prazo de uma ideia desastrosa. E os Estados Unidos e a comunidade internacional devem exigir que Israel se comprometa permanentemente a não prosseguir com qualquer anexação unilateral.”

Enfim, o futuro dirá o quão correta ou incorreta está toda esta minha análise. E se eu estiver errado, e a justiça aos palestinos for concretizada, não me esquivarei em reconhecer meu engano. Que maravilhoso seria que a paz entre Israel e Palestina finalmente acontecesse, afinal este é o sonho não somente de nossa geração, mas de nossos pais e avós. Será bizarro se isto se der através das mãos de pessoas que já provaram ser tão cruéis e odiadoras, como Netanyahu e Trump, mas a vida se mostra muitas vezes bizarra, não? Bem, por hoje só o que podemos fazer é continuar a analisar o jogo de xadrez geopolítico e torcer para que em algum momento os vencedores sejam não os mais fortes e poderosos, mas sim todos os povos em igualdade, convivência e respeito.

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