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Paulo Silveira

Sócio fundador do Observatório das Adições Bruce K Alexander (www.observatoriodasadcoes.com.br). Membro fundador do movimento "respeito é BOM e eu gosto!" (www.reBOMeg.com.br)

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Caxias da fé, do trabalho e dos excluídos sociais

CAXIAS DO SUL, RS, BRASIL (Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini)

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Por Cláudia Palhano* & Paulo Silveira

Algumas mais limpas, outras nem tanto. Repletas de pessoas que, na maioria das vezes, nem se conhecem, mas partilham aquele trecho da via como rota de passagem. Aliás, há quem fique nela e os motivos são variados. Assim são as ruas de Caxias do Sul, cidade no Rio Grande do Sul, mas poderia ser qualquer outra rua de outra cidade qualquer também.

Caxias do Sul apresenta a segunda maior população de rua do Estado do Rio Grande do Sul e, por isso, faz parte dos 10 municípios que seus representantes participarão dos encontros organizados pela Secretaria de Assistência Social do Estado para discutir o alinhamento de políticas públicas para a população em situação de rua, os “pop rua”, como são conhecidos em todo o Brasil.

A preocupação com a pop rua não é de agora, mas a cada apanhado de meses, por mudanças na administração pública ou devido a outro motivo qualquer, o tema ganha holofotes. Até o mês de abril de 2023, constavam no cadastro único da cidade de Caxias do Sul, 736 pessoas em situação de rua. Destes:

  •  589 delas recebem o bolsa família;
  •  89% são do sexo masculino;
  •  Tem entre 25 e 39 anos;
  •  Em torno de 65% é oriunda de outros municípios.

Seja para o bem ou para o mal, Caxias do Sul é, afinal, uma cidade atrativa. O lema da cidade “A cidade da FÉ e do TRABALHO” atrai pessoas de cidades próximas em busca de novas alternativas de vida.

A média de cidadãos atendidos diariamente no Centro POP Rua, espaço de acompanhamento e prestação de serviços sócio assistenciais a essa população, é de 67 pessoas. Apenas neste primeiro semestre, o Centro atendeu 1.256 indivíduos e o serviço de abordagem social 382.

 A avaliação dos serviços prestados pelos órgãos públicos é que há um certo grau de comprometimento daqueles que trabalham no acolhimento da pop rua, o que não exclui a participação de organizações da sociedade civil (OSCs) no acolhimento da pop rua.

Segundo informações do site da Prefeitura, no momento, a administração municipal assume 100% do custeio dessa estrutura de atendimento da pop rua. Eles fazem questão de ressaltar que, de acordo com a legislação, deveria existir um cofinanciamento entre o Estado e à União, mas 97,12% da verba destinada aos serviços de Assistência Social tem origem na Prefeitura de Caxias do Sul.

Neste inverno, por exemplo, foram abertas mais 34 vagas de acolhimento provisório oferecidas gratuitamente à população em situação de vulnerabilidade, totalizando 150 vagas para acolhimento dessa população, o que corresponde que eles tem direito a cama, banho e comida para amenizar a exposição às noites de frio intenso, comum na região. Mas essa preocupação tem dia e hora para acabar e nem tem a duração necessária para promover uma mudança efetiva neste triste quadro social.

As notícias constantes nos portais de informação da região deixam evidentes a brevidade das abordagens. Mesmo que a pauta ganhe destaque em determinados períodos, como já citado, o olhar do poder público local é curto, superficial e espaçado demais diante da sua urgência.

Nos sites locais o assunto quase nem citado. Parece que não dá para deixar de falar da economia, do crescimento das empresas, dos novos negócios que apontam tanta prosperidade e desenvolvimento para a cidade da Festa Nacional da Uva, a Caxias do trabalho, desenvolvimento esse que não chega ao social, a população que mais dele necessita.

Ao que parece, a intenção é transferir a responsabilidade de acolher a pop rua para as comunidades assistenciais ou voluntários religiosos ou as famílias dessas pessoas que são acusadas, injustamente, de teriam permitido a criação desse cenário, com o Estado deixando, mais uma vez, de cumprir sua responsabilidade, como se não fosse possível cuidar de todos.

Sim, essa é a Caxias da fé. A fé que se consiga um trabalho digno para não ser excluído da cidade reconhecida pelo avanço industrial e geração de empregos. “Cidade para quem gosta de trabalho” (como se a pop rua não gostasse!).

É fato que comparado a outras regiões do País, talvez o percentual de pop rua seja menor em relação ao restante do Brasil e isso é relevante, pois demonstra que algumas políticas de abordagens locais são bem-sucedidas, o que faz com que a cidade seja referência na prestação de serviços assistenciais, que inspiram sua reprodução em outras cidades, como planeja o governo do Estado.

A não permanência das pessoas nas ruas de Caxias do Sul tem, afinal, muitas motivações. Há oportunidades de trabalho formal e assistência por meio de serviços públicos que servem de estímulo à saída das ruas.

Mas há também o frio, o preconceito étnico-racial, a xenofobia e alguns outros fatores que contribuem para esse número reduzido de pop rua na cidade. Por outro lado, faltam caminhos efetivos para o resgate da cidadania dos que compõe a pop rua. Com frequência se observa que os pop rua que servem aos interesses dos governantes / elite local conservadora que ama os seus, é verdade, contanto que eles não se mostrem muito diferentes do padrão social aceito.

Não é difícil saber disso. As notícias de denúncia de trabalhos análogos a escravidão, violências raciais contra os imigrantes vindos do Haiti ou Senegal, as falas ofensivas e higienistas dirigidas aos nossos irmãos do norte e nordeste comprovam e reafirmam esses fatos. Essas e muitas outras atitudes do poder público e representantes das elites da cidade não conseguem ser abafadas, nem pelos principais veículos de informação.

E se até então soava um tanto contraditório um cenário de exclusão e falta de assistência diante de tantas oportunidades, prosperidade e solidariedade, com estes recortes fica mais fácil entender o porquê algumas pessoas não prosperam por aqui. Será que os valores são distintos?

Esse texto não visa demonizar nenhuma administração, região ou população. Tampouco dar destaque para o mínimo que é feito e para o qual, sim, há recursos públicos. Portanto, sim, Caxias, você está cumprindo com o mínimo que lhe cabe. Mas isso não basta. E não se trata só de verba, mas de vontade política e ética social também.

A falta de alternativa isola as pessoas em suas realidades. A falta de empatia também. Há um bom tempo é possível acompanhar notícias pelo país e pelo mundo acerca do crescimento da população em situação de rua, oriunda do desemprego e vulnerabilidade social, e agora agravadas pela pandemia da Covid-19, pelas mudanças nos meios de produção etc. Cada vez mais famílias se veem à mercê do cuidado dos outros, por se encontrarem sem perspectivas de recuperação ou melhora.

Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicados na “Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil (2012-2022)” apontam crescimento de 38% entre 2019 e 2022, atingindo 281.472 pessoas. Se analisada a década de 2012 a 2022, o crescimento desse segmento da população foi de 211%. Entretanto, se avaliadas as informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 11% entre 2011 e 2021 de crescimento foi registrado.

O montante aqui também denuncia discrepância. Afinal, que metodologia é essa adotada pelo IBGE que exclui as pessoas em situação de rua neste recenseamento, já que se dá apenas com abordagem a domicílio? Como, afinal, criar políticas para quem é invisibilizado?

Mas, sim, essa questão de como fazer um senso que inclua efetivamente a pop rua não é uma exclusividade de Caxias do Sul, já que a falta de coleta de dados sobre a população de rua faz parte do método de funcionamento do IBGE. Assim como a vulnerabilidade social não é exclusividade de Caxias. Nem o preconceito. Nem as grossas vistas. O que talvez gere intriga para aqueles que acompanham esse tema são as contraditoriedades de uma população tão acolhedora.

Saúde mental, mal que acomete aqueles que vivem ou não pelas ruas, é tema de palestras e seminários, na iniciativa pública e privada, contanto que não atrapalhe o rendimento no trabalho. Aliás, o uso de substâncias ilícitas, principalmente, é bastante criticado por aqui. E não importa a relação que você tenha com as ditas “drogas”: se você faz uso, o caso é segurança pública, e haja fé e trabalho para dar conta de exterminar com essa gente. E, sim, as pessoas em situação de rua sempre são associadas ao uso abusivo de drogas e não importa o que alegam.

A questão aqui é: a conversa é longa e os caminhos cheios de obstáculos, mas há quem faça, só precisa ser mais efetivo e amplo e menos discriminatório. Ou seja, não cabe a alguém decidir sozinho. É conversa de toda a comunidade. Mas quem provavelmente leu até aqui, arrisco dizer, está farto de saber da necessidade de ações múltiplas e intersetoriais para promoção de políticas de cuidado com as pessoas em geral, mas principalmente as que expõem suas tantas vulnerabilidades nas ruas.

É preciso um IBGE mais inclusivo, mas uma gestão mais assertiva. É preciso conversas menos superficiais também e muita empatia. Está aí um desafio gigante: se colocar no lugar do outro, inclusive para compreender a estrutura que esse cenário se consolida e o porquê de ser assim. Acredite, só precisa ter interesse para se debruçar sobre o tema que rapidamente tudo se desenrola e passa a fazer sentido.

Dia desses uma pergunta latejou por aqui. Ela dizia “como evitar que as pessoas busquem (ou encontrem) as ruas como moradia?”. Eu não sei responder, mas penso que se juntássemos esforços para compreender, seria sabido que isso vai aquém de dinheiro e até mesmo acessos, por mais fundamentais que esses sejam. Talvez no dia que as pessoas se debruçarem sobre isso, mesmo sem resposta, será possível notar um efeito de redução de corpos invisibilizados, nas ruas, manicômios ou dentro das próprias casas por aí.  

*Jornalista residente em Caxias do Sul

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