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Lincoln Secco

Professor do departamento de história da USP, é autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê)

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Como democratizar a leitura?

Só o socialismo poderá semear livros a mancheia e manter as pessoas que trabalham na sua cadeia produtiva

Rio de Janeiro - Crianças da comunidade escolhem livros na abertura da quarta edição da Festa Literária das Periferias (Flupp) (Tomaz Silva/Agência Brasil) (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)
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Por Lincoln Secco 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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No Brasil avança o debate sobre a proposta de uma lei do preço fixo do livro (ou Lei José Xavier Cortez), cuja relatoria é do senador Jean Paul Prates (PT/RN). Inspirada na Lei Lang da França, a lei obrigaria todas as livrarias a limitar no máximo a 10% o desconto em uma publicação durante o primeiro ano após o seu lançamento. Com isso, o pequeno comércio livreiro estaria protegido de grupos poderosos como a Amazon.

Marisa Midori Deaecto, nossa maior especialista em história do livro e professora dessa matéria na USP, defende a proposta de lei. Ao conhecer essa sua nova frente de luta, lembrei do nosso velho professor Edgard Carone, bibliófilo e colecionador de livros socialistas e rascunhei algumas notas sobre uma realidade quase desaparecida: as políticas de fomento ao livro nos países socialistas.

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Os ciclos do livro no antigo bloco socialista acompanharam as vicissitudes da história do partido comunista. A Revolução Russa entronizou o livro como o principal veículo do agitprop (agitação e propaganda). Vladimir I. Lênin, que era um cultuador dos livros a ponto de se irritar com edições mal-cuidadas, preocupou-se em garantir orçamento para bibliotecas e editoras. Aliás, todos os principais líderes bolcheviques devoravam livros e tentavam se impor nos debates com recurso à erudição. Nikolai Bukharin era um intelectual nato. Grigori Zinoviev escreveu uma História do partido bolchevique. Léon Trotsky provavelmente era o mais talentoso deles e teve que levar ao exílio caixas enormes de livros e documentos. Josef Stalin manteve uma ampla biblioteca pessoal com centenas de livros anotados.

Livros e agitprop

A propaganda consiste na formação política dos quadros que atuam permanentemente no partido ou nas organizações por ele influenciadas. A agitação visa atingir as massas em comícios, passeatas, greves, protestos, confrontos etc.

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Resumindo, para Lênin a agitação vulgariza poucas ideias para muita gente e a propaganda difunde muitas ideias para um número menor de militantes.[i] O agitprop não é uma soma de tarefas fixas rigidamente separadas, mas um conjunto de processos e relações entre pessoas. O objetivo é transformar cada vez mais membros das massas em quadros e alterar qualitativamente a relação entre dirigidos e dirigentes.

A agitação recorre a cartazes, volantes, panfletos, jornais etc. A propaganda utiliza cursos, debates teóricos e livros. Essa é uma distinção analítica, porque na prática jornais podem trazer capítulos de livros, debates teóricos e opúsculos; palestras podem servir à agitação.[ii]

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O que nos importa aqui é que o livro tem uma função nuclear nessas atividades. Com a existência de um poder socialista, seu papel se faz muito mais importante em provocar a passagem da quantidade à qualidade, pois milhões de pessoas passam a ter acesso à teoria.

No período stalinista o conteúdo das edições tornou-se controlado. Em 1931 foi fundada a Editorial Progresso de Moscou. Por seu turno, a desestalinização refletiu-se em diversas reformas que afetaram a leitura. O período Kruschev foi o da expansão da moradia urbana familiar, quando as pessoas conquistaram sua cozinha privativa. Isso fez com que se pudesse ser mais crítico e independente na vida privada. E também discutir obras semi proibidas, como a literatura manuscrita ou de mimeógrafo chamada de samizdat.

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O filme Eu tenho 20 anos, dirigido por Marlen Khutsiev em 1964, mostra uma vida cultural em Moscou muito ativa e centrada no livro. Há pilhas de obras literárias num apartamento, bancas de livros usados, leitura pública de poemas etc. Por mais que houvesse a intenção de propaganda era significativo que o filme desse relevo ao livro.

Essa realidade levou o historiador francês Serge Wolikow a notar uma contradição entre a democratização da leitura e o controle autoritário sobre o seu conteúdo,[iii] portanto entre a quantidade e a qualidade. Contudo, o bloco socialista nunca foi uniforme. Na Iugoslávia, após o rompimento com a URSS em 1948, o modo de produção e distribuição do livro foi descentralizado e o sistema de preços de mercado introduzido. Além disso, diminuiu a censura.[iv]

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Distribuição

Em geral, todos os países socialistas tinham uma política para o livro. Na Alemanha Democrática, um decreto de 1973 determinou que as empresas deveriam ter uma biblioteca, com um bibliotecário. Fábricas deveriam manter uma relação proporcional entre número de trabalhadores e de livros. As maiores deveriam ter 30.000 exemplares. Durante a existência do país, o número de livros impressos a cada ano mais que triplicou[v] e incrementou-se a proporção daqueles que eram ficção.

Nos anos 1980, quando eu descobri as edições soviéticas em línguas estrangeiras, o socialismo se me apresentava basicamente como um mundo de livros. O papel que a teoria desempenhava entre os comunistas exigia muita leitura. Era natural que a ideologia soviética se difundisse especialmente por meio de impressos, já que se tratava de uma propaganda concentrada e dirigida pelo Estado.

Em São Paulo eu frequentava, salvo engano, na Rua Barão de Itapetininga, a Livraria Tecno-Científica que importava livros da citada Editorial Progresso, além de vender assinaturas de revistas soviéticas a preços módicos.

A Editorial Progresso de Moscou só se tornou conhecida mundialmente a partir de 1963, quando assumiu o papel de casa publicadora de livros soviéticos em línguas estrangeiras. Naquele ano, a URSS reorganizou sua indústria editorial e a submeteu ao controle geral do Comitê Editorial do Estado, ligado ao Conselho de Ministros. Em última instância, o livro era um assunto da cúpula do poder.

Um efeito importante das Edições em Línguas Estrangeiras de Moscou foi a mudança qualitativa das traduções de Lênin ao português. Segundo a inovadora pesquisa de Fabiana Lontra, todas as traduções brasileiras de Lênin foram feitas, principalmente, a partir do francês e espanhol e nenhuma do original russo. É possível que Otávio Brandão tenha traduzido artigos de Lênin diretamente do russo quando viveu na União Soviética. Mas não há nenhum livro de Lênin oficialmente traduzido por ele.

Em 1964 o editor Enio Silveira pretendeu lançar as Obras Escolhidas traduzidas por Alvaro Vieira Pinto a partir do original russo, mas a ditadura destruiu os manuscritos da tradução. É possível que a decisão tivesse ou buscasse apoio em Moscou?

As edições em Línguas Estrangeiras permitiram que Lenin fosse traduzido diretamente ao português de Portugal após a Revolução dos Cravos, graças à sociedade entre Avante! (editora do Partido Comunista Português) e Progresso. Os textos foram reproduzidos, depois de adaptação, por editoras brasileiras.[vi]

No aspecto quantitativo, os países socialistas deram um salto na oferta de bens culturais. Entre 1957 e 1961 a exportação anual média de livros da URSS foi de 35 milhões de exemplares,[vii] embora haja controvérsias estatísticas derivadas da definição do tamanho de um livro e da junção de livros e outros impressos (panfletos) na contagem[viii]. Também era o país que mais traduzia títulos de outras línguas.

Em títulos por milhão de habitantes (entre 1955 e 1971) a União Soviética saltou de 140 a 175 e os Estados Unidos de 66 a 278.[ix] A tiragem média na União Soviética em 1965 foi de 16.811. Entre os países que lideravam o mundo neste quesito estavam Alemanha Democrática (17.900), Hungria (11.300), Polônia (10.800), Bulgária (10.600), Chile (8.000), Iugoslávia (7.500) e Tchecoslováquia (7.300). Os países nórdicos lideravam a produção de títulos per capita.[x]

Depois da Queda

A autodissolução da URSS não foi apenas uma catástrofe geopolítica, para citar o controverso presidente Vladimir Putin. Ela reduziu o nível cultural das nações que surgiram em seu lugar. A Editorial Progresso continuou existindo, sem apoio para difundir obras russas no exterior.

Qual o papel de uma editora socialista depois da queda de um bloco de países que supostamente representavam o futuro? Além disso, surgiu o desafio da Revolução Informática e, naturalmente, da internet. A digitalização ampliou o acesso aos textos, mas não eliminou o mercado de livros impressos. Consultamos livros e também telas de computadores de acordo com a finalidade da leitura e do preço das obras. Isso recoloca a questão dos custos, direitos autorais e lucro.

Nenhum militante de esquerda exige que advogados prestem consultoria a sindicatos e não cobrem. Que um criador de conteúdo marxista para uma plataforma de compartilhamento de vídeos não ganhe por isso. Apenas no mundo dos livros de esquerda há a cobrança por gratuidade e o desrespeito aos direitos autorais é comparado à quebra de uma patente de uma grande empresa farmacêutica.

Por outro lado, na prática dificilmente o texto digital pirateado substitui o impresso. A editora Lawrence and Wishart foi fundada em 1936 para difundir a literatura comunista na Inglaterra. Com o fim do bloco socialista e do próprio Partido Comunista da Grã-Bretanha, a editora entrou em crise. Em 2014 ela resolveu revogar a permissão para que o site Marxists Internet Archive mantivesse no ar a Marx/Engels Collected Works (MECW). Trata-se de sua principal coleção, editada entre 1975 e 2004 em 50 volumes. A justificativa é que a editora fecharia se não pudesse vender ela mesma as cópias impressas e, futuramente, digitais.

Decerto, muita gente perdeu o acesso a uma citação fácil e rápida de textos de Marx. Por outro, sem o esforço editorial, o trabalho de tradutores e o investimento financeiro, jamais teria existido a coleção. Como chegar a uma solução para esse dilema?

Trabalho coletivo e voluntário de tradução em rede é um primeiro passo, embora sujeito a muitos problemas. Exigir do Estado o investimento em bibliotecas públicas é outro. Solicitar que os partidos de esquerda mantenham editoras com obras impressas também. Mas como em todos os outros problemas da sociedade capitalista, só o socialismo poderá semear livros a mancheia e manter as pessoas que trabalham na sua cadeia produtiva.

Notas

[i] Conceição, Fabiana Zogbi Lontra. As Obras de Lênin no Brasil (1920-1964): em busca de uma história da tradução. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Ufrgs, 2022.

[ii]Deixemos de lado a tradução desses conceitos para a esfera virtual, mas lives e textos em tela podem se situar numa zona intermediária entre agitação e propaganda, talvez servindo como passagem de uma a outra, ou seja, da divulgação à leitura de livros.

[iii]Woliwow, S. “História do livro e da edição no mundo comunista europeu”, in Deaecto, Marisa e Mollier, Jean-Yves. Edição e Revolução. São Paulo: Ateliê, 2013, p. 324.

[iv]Booher, Edward. “Publishing in the USSR and Yugoslavia”, The Annals of the American Academy of Political and Social Science, Sep., 1975, Vol. 421, Perspectives on Publishing (Sep., 1975), pp. 118-129.

[v]Um Estudo Internacional de Alfabetização em Leitura, na época da queda do Muro descobriu que “a compreensão média de leitura dos alunos da oitava série da Alemanha Oriental era significativamente maior do que na Alemanha Ocidental”. Oltermann, Philip.  “Red poets’ society: the secret history of the Stasi’s book club for spies”, The Guardian, 5 Fevereiro de 2022.

[vi] Conceição, Fabiana Zogbi Lontra. As Obras de Lênin no Brasil (1920-1964): em busca de uma história da tradução. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Ufrgs, 2022.

[vii]Escarpit, Robert. La Revolution du livre. Paris: Unesco, 1969.

[viii]Enoch, Kurt. e Frase, Robert. W. “Book distribution in the USSR”, ALA Bulletin, v. 57, N. 6, Chicago, junho de 1963

[ix]Unesco, Statiscal yearbook, 1972. Paris:  Unesco, 1973.

[x]Book publishing in the USSR, New York, American Book Publishing, 1963.

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