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Paulo Bearzoti Filho

Militante do MPM – Movimento Popular por Moradia e do Mímesis Conexões Artísticas, ambos coletivos progressistas de Curitiba (PR)

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Coronavírus, confinamento e biopolítica

A militância de esquerda e as organizações progressistas e populares devem, a meu ver, estar atentas e observar que, a partir de uma base indiscutivelmente real, têm sido adotadas ações de caráter biopolítico, ou seja, de domínio estatal e corporativo sobre nossos próprios corpos

(Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

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Independentemente de sua origem (…), a Covid-19 já impõe questões imensamente sérias sobre biopolítica (onde está Foucault quando se precisa dele?) e bioterrorismo.

Pepe Escobar, em artigo no Asia Times, 17/03/2020.

O repugnante discurso protonazista de Jair Bolsonaro e seu governo nos induzem a aceitar como natural e, em linhas gerais, a apoiar, sem o necessário senso crítico, práticas de confinamento impostas pelo Estado neoliberal que deveriam ser objeto de nosso questionamento, não apenas por seus aspectos econômicos e sanitários, mas também por suas consequências políticas de longo prazo.

É evidente que o vírus é real e que diante de uma ameaça terrível e real podem e devem ser adotadas medidas drásticas, que eventualmente incluam o isolamento domiciliar em massa. 

Isso posto, penso que seja importante distinguir o que seriam ações de emergência, quando tomadas por um Estado democrático-popular, que visam a garantir a sobrevivência social e trazem a marca da resistência, em contraste com iniciativas semelhantes, quando tomadas pelo Estado neoliberal e que visam a salvar o capital das crises que ele próprio produz e ampliar seu domínio sobre populações tornadas indefesas diante da iminência de um tragédia. Quanto mais, de uma tragédia espetacularizada em escala global.

A militância de esquerda e as organizações progressistas e populares devem, a meu ver, estar atentas e observar que, a partir de uma base indiscutivelmente real, têm sido adotadas ações de caráter biopolítico, ou seja, de domínio estatal e corporativo sobre nossos próprios corpos, sobre nossa própria vida (como sabemos, “bio”, em grego, significa “vida”). Embora isso não esteja claro no discurso oficial, o fato é que a expansão pandêmica da tragédia tem sido aproveitada, pelas elites políticas e econômicas, como a oportunidade para um inédito experimento de controle social em escala global. Nunca antes, talvez, na história contemporânea, havia sido possível levar mais de 2 bilhões de pessoas ao confinamento sem ser em tempo de guerra – e com isso de fato se abriu um notável precedente. 

Não precisamos, agora, tratar do colapso econômico e social que provavelmente nos aguarda. Fala-se que apenas o PIB dos Estados Unidos possa cair na casa de 10% (ou 30% ou 50%), com igual elevação exponencial do desemprego. Nos países do Terceiro Mundo, o quadro certamente será daí para pior. 

O ponto aqui é de natureza política. A constatação de que, por meio de um amplo programa midiático, estamos todos/as confinados/as. Um “consenso” que, até pela sua já referida base real, faz as guerras semióticas do Trump, Bannon ou Bolsonaro parecerem instrumentos primários de manipulação. 

Hoje, diante da ameaça genocida representada pelos governos de extrema-direita, somos induzidos/as a aceitar a liderança de gente como Dória, Witzel, Mandetta e a Rede Globo. É a vingança da elite financista e globalista, ao estilo dos Clinton, contra os neofascistas exploradores de petróleo guiados pelos Irmãos Koch.

E, neste contexto, nós (a esquerda, os movimentos populares) nos vemos presos/as à demanda da luta em favor do “direito democrático ao confinamento”. Pedimos água, sabonete, cestas básicas, isolamento remunerado. 

Não estou, naturalmente, sugerindo que estas sejam reivindicações equivocadas. Muito pelo contrário. Afinal, para as comunidades mais pobres, a opção será, na expressão do intelectual e ativista camaronês Achille Mbembe (o autor da “Crítica da Razão Negra”), a passagem – ou, antes, a ampliação – da biopolítica para a necropolítica, que é a realização do poder coercitivo, já não por meio da gestão de corpos vivos, mas por meio da morte, ela mesma (“necro”, em grego, significa “morte”).

Esta é sem dúvida a linha adotada pelo governo Bolsonaro, ainda com mais veemência desde o pronunciamento de 24 de março. De maneira crua, sem recorrer a praticamente nenhum disfarce retórico, o presidente deixou clara sua visão, violenta e irracional, segunda a qual “somente os fracos é que vão morrer”. Mesmo os idosos, como ele (que acabou de completar 65 anos), se “tiverem histórico de atleta”, nada sofrerão.

Entretanto, notem que, hoje, se o nosso povo se reunisse e protestasse contra essa política da morte, seria ainda mais fortemente reprimido, porque as aglomerações não estão permitidas. As próprias pessoas teriam medo de reunir-se e contaminar-se. Por vias transversas e sem que fosse preciso mexer na legislação permanente, as manifestações populares foram proibidas pela imposição do confinamento.

Penso, em síntese, que seja imprescindível incluir, ao lado das pautas econômicas e sanitárias, uma reivindicação política essencial: que sindicatos, movimentos sociais e outras formas de organização popular (inclusive partidos de esquerda) possam tomar parte dos comitês e fóruns de gestão da crise do coronavírus. Medidas extremas como o confinamento só podem ser consideradas realmente legítimas se também passarem pelo crivo decisório dessas organizações que representam a classe trabalhadora, e não apenas da tecnoburocracia estatal e corporativa.

Pois, na confluência de duas terríveis perspectivas é que nos encontramos nós, laçados/as pela armadilha perfeita a que a pandemia nos conduziu, qual seja, a de escolher entre biopolítica do confinamento e a pura e simples necropolítica.

É evidente – vamos repetir – que o vírus é real, que as mortes são reais e que o confinamento representa uma medida necessária. Mas é preciso não menosprezar suas implicações políticas e não nos deixar embebecer pelo canto da sereia neoliberal. 

Desta vez, de fato, a história se nos apresenta como tragédia. Mas – para citar o velho aforismo do jovem Marx – e quando for a vez da farsa? Como poderemos combatê-la se já então estiver demonstrada a possibilidade do controle biopolítico de imensas massas, na casa de bilhões de pessoas, mediante uma campanha midiática bem tecida? 

Podemos, naturalmente, considerar que sairemos melhor dessa situação, que ficará clara para todo mundo a importância da presença do Estado, a necessidade de uma boa saúde pública, do bem-estar social, da garantia do emprego…

Este é, a meu ver, o modo de compreender o que aconteceu na China  - que pessoalmente considero, em essência, uma democracia popular guiada pelo regime do socialismo de mercado. Mas no Brasil será igualmente assim? Nos Estados Unidos também? Na África? Em todos os cantos da Ásia e da Europa?

Nos países atrasados que compõem este Terceiro Mundo, temos de reconhecer, novamente aproveitando uma imagem de Achille Mbembe, que se generalizou a situação da Faixa de Gaza. Por meio de uma tragédia, se globalizou o toque de recolher. Um toque de recolher que, se é justificado por razões humanitárias, não deixa de se desejar também um consentido e massivo precedente de controle biopolítico.

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