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Slavoj Žižek

Professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana (Eslovênia). Autor, entre outros livros, de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo).

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Da guerra fria à paz quente

A primeira vítima da guerra na Ucrânia foi a universalidade

Guerra na Ucrânia (Foto: Ukrainian Armed Forces)
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Por Slavoj Žižek

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Com a invasão russa da Ucrânia, estamos entrando em uma nova fase de guerra e da política global. Além de um aumento do risco de catástrofe nuclear, já estamos em uma tempestade perfeita de crises globais que se reforçam mutuamente – a pandemia, as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e a escassez de alimentos e água. A situação exibe uma loucura básica: em um momento em que a própria sobrevivência da humanidade é ameaçada por fatores ecológicos (assim como por outros), quando abordar essas ameaças deveria ser priorizado sobre todo o resto, nossa preocupação principal mudou repentinamente – novamente – para uma nova crise política. Justamente quando a cooperação global é mais do que nunca necessária, o “choque de civilizações” retorna com força total.

Por que isso acontece? Como ocorre frequentemente, um pouco de Hegel pode ajudar a percorrer o longo caminho necessário para responder a essa pergunta. Na Fenomenologia do Espírito, Hegel descreve a famosa dialética do mestre e do escravo, duas “autoconsciências” que se encontram numa luta de vida ou morte. Se cada um deles está disposto a arriscar a própria vida para vencer, e se ambos persistem nesse objetivo, não há vencedor: um morre, mas o sobrevivente não tem mais ninguém para reconhecer sua própria existência. A implicação é que toda a história e a cultura repousam sobre um compromisso fundamental: no confronto direto, um deles “desvia os olhos”, sem vontade de ir até o fim, permanecendo como escravo.

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Mas Hegel se apressaria em notar que não pode haver um compromisso final ou duradouro entre os Estados. As relações entre Estados-nação soberanos estão permanentemente sob a sombra de uma guerra potencial, pois cada época de paz não passa de um armistício temporário. Cada Estado disciplina e educa os seus próprios membros, garantindo a paz cívica entre eles. Ora, esse processo produz uma ética que, em última análise, exige atos de heroísmo – uma prontidão para sacrificar a vida por seu país. As relações selvagens e bárbaras entre os Estados servem, assim, como fundamento da vida ética dentro dos próprios Estados.

A Coreia do Norte representa o exemplo mais claro dessa lógica; há sinais de que a China também está caminhando na mesma direção. De acordo com amigos na China (que devem permanecer sem nome), autores que escrevem em jornais militares agora reclamam que o exército chinês não teve uma guerra real para testar sua capacidade de combate. Enquanto os Estados Unidos estão testando permanentemente o seu exército tal como ocorreu no Iraque, a China não o faz desde sua fracassada intervenção no Vietnã, em 1979.

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Ao mesmo tempo, a mídia oficial chinesa começou a sugerir mais abertamente, frente à redução da perspectiva de integração pacífica de Taiwan à China, que será necessária uma “libertação” militar da ilha rebelde. Como preparação ideológica para uma ação, a máquina de propaganda chinesa tem incentivado cada vez mais o patriotismo nacionalista e a suspeita em relação a tudo o que é estrangeiro, com acusações frequentes de que os EUA estão ansiosos para ir à guerra por Taiwan. No outono passado, as autoridades chinesas aconselharam o público a estocar suprimentos suficientes para sobreviver por dois meses “apenas por precaução”. Foi um aviso estranho que muitos perceberam como um anúncio de que uma guerra é iminente.

Essa tendência vai diretamente contra a necessidade urgente de civilizar nossas “civilizações”, estabelecendo um novo modo dos países se relacionarem com os seus vizinhos. Precisamos de solidariedade e cooperação universal entre todas as comunidades humanas, mas este objetivo tem se tornado muito mais difícil de alcançar devido ao aumento da violência sectária, religiosa e étnica, “heroica”. Vê-se, também, uma presteza para sacrificar a si mesmo (e ao mundo), lutando por uma causa específica.

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Em 2017, o filósofo francês Alain Badiou observou que os contornos de uma futura guerra já eram discerníveis. Ele previu que “…os Estados Unidos e seus parceiros ocidentais, mais o Japão, de um lado, a China e a Rússia do outro, armas atômicas por toda parte. Não podemos deixar de recordar aqui uma afirmação de Lenin: “ou a revolução impedirá a guerra ou a guerra desencadeará a revolução”. É assim que podemos definir a ambição máxima do trabalho político por vir: pela primeira vez na história, a primeira hipótese – a revolução impedirá a guerra – deve se realizar, mas não a segunda – uma guerra desencadeará a revolução. Foi efetivamente a segunda hipótese que se materializou na Rússia no contexto da Primeira Guerra Mundial, e na China no contexto da segunda. Mas a que preço! E com que consequências a longo prazo!”

Os limites da Realpolitik

Civilizar nossas “civilizações” exigirá uma mudança social radical – uma revolução de verdade. Mas não podemos esperar que ela seja desencadeada por uma nova guerra. O resultado muito mais provável de tal curso seria o fim da civilização como a conhecemos, com os sobreviventes (se houver) organizados em pequenos grupos autoritários. Não devemos ter ilusões: em certo sentido básico, a Terceira Guerra Mundial já começou, embora por enquanto ainda esteja sendo travada principalmente por meio de intermediários.

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Os apelos abstratos à paz não são suficientes. “Paz” não é um termo que permite traçar uma distinção política chave agora necessária. Os ocupantes sempre desejam sinceramente a paz no território que ocupam. A Alemanha nazista queria a paz na França ocupada, Israel quer a paz na Cisjordânia ocupada e o presidente russo, Vladimir Putin, quer a paz na Ucrânia. Como disse certa vez o filósofo Étienne Balibar, “o pacifismo não é uma opção”. A única maneira de evitar outra Grande Guerra é evitar o tipo de “paz” que exige constantes guerras locais para sua manutenção.

Em quem podemos confiar nessas condições? Devemos depositar nossa confiança em artistas e pensadores ou mesmo em praticantes pragmáticos da realpolitik? O problema com artistas e pensadores é que eles também podem lançar as bases para a guerra. Lembre-se do verso bem apropriado de William Butler Yeats: “Eu espalhei meus sonhos sob seus pés / Pise suavemente porque você vai pisar em meus sonhos”. Devemos aplicar a lição contida nessas linhas aos próprios poetas. Quando eles espalham seus sonhos sob nossos pés, eles devem espalhá-los com cuidado, porque as pessoas reais os lerão e agirão de acordo com eles. Lembre-se de que o mesmo Yeats flertava continuamente com o fascismo, chegando ao ponto de expressar sua aprovação às leis antissemitas de Nuremberg da Alemanha, em agosto de 1938.

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A reputação de Platão sofre por causa de sua afirmação de que os poetas deveriam ser expulsos da cidade. No entanto, este é um conselho bastante sensato, a julgar pela experiência das últimas décadas, quando o pretexto para a limpeza étnica foi preparado por poetas e “pensadores” como o ideólogo de Putin, Aleksandr Dugin. Não há mais limpeza étnica sem poesia, pois vivemos em uma era supostamente pós- ideológica. Como as grandes causas seculares não têm mais força para mobilizar as pessoas para a violência de massa, é necessário um motivo sagrado maior. Religião ou pertencimento étnico cumprem esse papel perfeitamente (ateus patológicos que cometem assassinato em massa por prazer são exceções raras).

Realpolitik, pois, não se afigura como um guia melhor. Tornou-se um mero álibi para a ideologia; eis que esta, muitas vezes, evoca alguma dimensão oculta por trás do véu das aparências para obscurecer o crime que está sendo cometido abertamente. Essa dupla mistificação é muitas vezes anunciada por meio da descrição de uma situação de conflito como “complexa”. Um fato óbvio – digamos, um caso de agressão militar brutal – é relativizado evocando que há um “fundo muito mais complexo”. O ato de agressão é apresentado realmente como um ato de defesa.

É isso exatamente o que está acontecendo hoje. A Rússia obviamente atacou a Ucrânia; em consequência, está obviamente mirando em civis, provocando assim o deslocamento de milhões. E, no entanto, comentaristas e especialistas estão procurando avidamente por “complexidade” por trás disso.

Há complexidade, é claro. Mas isso não muda o fato básico de que a Rússia avançou sobre a Ucrânia.  Nosso erro foi que não interpretamos as ameaças de Putin literalmente, em nível suficiente; pensávamos que ele estava apenas praticando um jogo de manipulação estratégica, movido por intemperança. Lembre-se da famosa piada que Sigmund Freud contou uma vez: “Dois judeus se encontraram em um vagão de trem em uma estação na Galiza. “Para onde você está indo?” – perguntou um deles. “Para Cracóvia” – respondeu o outro. “Que mentiroso você é!” – interrompeu o primeiro. “Se você diz que vai para Cracóvia, quer que eu acredite que vai para Nuremberg. Mas eu sei que na verdade você vai para Cracóvia. Então, por que você está mentindo para mim?”

Putin anunciou uma intervenção militar; na ocasião, deveríamos tê-lo entendido literalmente quando disse que o motivo era pacificar e “desnazificar” a Ucrânia. Em vez disso, a censura feita por estrategistas desapontados, mas “profundos”, equivaleu a proferir: “por que você me disse que vai ocupar Lviv quando realmente quer ocupar Lviv?”

Essa dupla mistificação expõe o fim da realpolitik. Via de regra, essa posição se opõe à ingenuidade de vincular a diplomacia e a política externa a princípios morais ou políticos. No entanto, na situação atual, é a realpolitik que é ingênua. É ingênuo supor que o outro lado, o inimigo, também está visando um acordo pragmático limitado.

Força e liberdade

Durante a Guerra Fria, as regras de comportamento das superpotências foram claramente delineadas pela doutrina da destruição assegurada mútua (MAD, mutual assured destruction). Cada superpotência poderia ter certeza de que, se decidisse lançar um ataque nuclear, o outro lado responderia com força total destrutiva. Como resultado, nenhum lado podia começar uma guerra com o outro lado.

Por outro lado, quando o norte-coreano Kim Jong-un fala em desferir um golpe devastador contra os EUA, não podemos deixar de imaginar como ele vê a sua própria posição. Ele fala como se não soubesse que seu país seria também destruído. É como se ele estivesse jogando um jogo totalmente diferente chamado NUTS (Nuclear Utilization Target Selection), em que as capacidades nucleares do inimigo podem ser cirurgicamente destruídas antes que ele possa contra-atacar.

Nas últimas décadas, os EUA oscilaram entre MAD e NUTS. Embora aja como se continuasse a confiar na lógica MAD em suas relações com a Rússia e a China, ocasionalmente sonham com uma estratégia NUTS, pelo menos em relação ao Irã e à Coréia do Norte. Com o seu delírio sobre a possibilidade de lançar um ataque nuclear tático, Putin segue o mesmo raciocínio. O próprio fato de que duas estratégias diretamente contraditórias estão sendo mobilizadas simultaneamente pela mesma superpotência atesta o seu caráter fantasioso.

Infelizmente para o resto de todos nós, a loucura encontra-se presente. As superpotências estão cada vez mais testando umas às outras, experimentando o uso de representantes enquanto tentam impor sua própria versão de regras globais. Em 5 de março último, Putin chamou as sanções impostas à Rússia de “equivalente a uma declaração de guerra”. Mas ele afirmou repetidamente desde então que o intercâmbio econômico com o Ocidente deveria ter continuidade, enfatizando que a Rússia está mantendo os seus compromissos financeiros, que continua a fornecer hidrocarbonetos para a Europa Ocidental.

Em outras palavras, Vladimir Putin está tentando impor um novo modelo de relações internacionais. Em vez de guerra fria, deve haver paz quente: um estado de guerra híbrida permanente em que intervenções militares são declaradas sob o pretexto de missões humanitárias e de manutenção da paz.

Assim, em 15 de fevereiro, a Duma (o parlamento russo) emitiu uma declaração expressando “seu apoio inequívoco e consolidado às medidas humanitárias adequadas destinadas a fornecer apoio aos moradores de certas áreas das regiões de Donetsk e Lugansk da Ucrânia que manifestaram o desejo de falar e escrever em russo. Eles querem que a liberdade religiosa seja respeitada, dizendo que não apoiam as ações das autoridades ucranianas que violam seus direitos e liberdades”.

Quantas vezes no passado ouvimos argumentos semelhantes para intervenções lideradas pelos EUA na América Latina ou no Oriente Médio e Norte da África? Enquanto a Rússia bombardeia cidades, quando lança foguetes numa maternidade na Ucrânia, o comércio internacional deve continuar. Fora da Ucrânia, a vida normal deve continuar. É isso o que significa ter uma paz global permanente sustentada por intermináveis intervenções de manutenção da paz em partes isoladas do mundo.

Alguém pode ser livre em tal situação? Seguindo Hegel, devemos fazer uma distinção entre liberdade abstrata e concreta. A liberdade abstrata é a capacidade de fazer o que se quer independentemente das regras e costumes sociais; a liberdade concreta é a liberdade conferida e sustentada por regras e costumes. Só posso andar livremente por uma rua movimentada quando posso ter certeza razoável de que os outros na rua se comportarão de maneira civilizada comigo – que os motoristas obedecerão às regras de trânsito e que outros os pedestres não me roubarão.

Mas há momentos de crise em que a liberdade abstrata deve intervir. Em dezembro de 1944, Jean-Paul Sartre escreveu: “Nunca fomos tão livres quanto sob a ocupação alemã. Tínhamos perdido todos os nossos direitos e, em primeiro lugar, nosso direito de falar. Eles nos insultaram na cara. … E é por isso que a Resistência foi uma verdadeira democracia; para o soldado, como para seu superior, o mesmo perigo espreitava, a mesma solidão, a mesma responsabilidade, a mesma liberdade absoluta dentro da disciplina”.

Sartre estava descrevendo a liberdade abstrata, não a liberdade concreta. Esta última foi estabelecida quando ocorreu a normalidade do pós-guerra. Na Ucrânia de hoje, aqueles que estão lutando contra a invasão russa são livres e estão lutando pela liberdade sem restrições. Mas isso levanta a questão de quanto tempo a distinção pode durar. O que acontece se outros milhões de pessoas decidirem que devem violar livremente as regras para proteger sua liberdade? Não foi isso que levou uma multidão “trumpista” a invadir o Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021?

Um jogo não tão bom

Ainda nos falta uma palavra adequada para o mundo de hoje. De sua parte, a filósofa Catherine Malabou acredita que estamos testemunhando o início da “virada anarquista” do capitalismo: como descrever esse fenômeno da descentralização das moedas, do fim dos monopólios dos Estados, a obsolescência do papel mediador dos bancos, a descentralização das trocas e das transações?”. Esses fenômenos podem parecer atraentes, mas com o desaparecimento gradual do monopólio do Estado, os limites impostos pelo Estado à exploração e dominação implacáveis também desaparecerão. Embora o anarcocapitalismo vise a transparência, ele também “autoriza simultaneamente o uso em larga escala, mas opaco, de dados, a “dark web” e a fabricação de informações”.

Para evitar essa queda no caos, observa Malabou, deve-se ver que as políticas seguem cada vez mais um caminho de “evolução fascista”; por ele vem também um ambiente de segurança excessiva e um crescimento do poder militar. Tais fenômenos não contradizem um impulso para o anarquismo. Pelo contrário, eles indicam precisamente o desaparecimento do Estado protetor; uma vez que é eliminada a sua função social, a obsolescência de sua força é substituída pelo uso da violência. O ultranacionalismo sinaliza, assim, a agonia da morte da autoridade nacional”.

Vista nesses termos, a situação na Ucrânia não é a de um Estado-nação atacando outro Estado-nação. Em vez disso, a Ucrânia está sendo atacada como se fosse um país cuja identidade étnica é negada pelo agressor. A invasão se justifica em termos de esferas de influência geopolítica (que muitas vezes se estendem muito além das esferas étnicas, como no caso da Síria). A Rússia se recusa a usar a palavra “guerra” para sua “operação militar especial” não apenas para minimizar a brutalidade de sua intervenção, mas acima de tudo para deixar claro que a guerra no antigo sentido de um conflito armado entre estados-nação não se aplica.

O Kremlin quer que acreditemos que o exército russo está apenas garantindo a “paz” no que considera ser sua esfera de influência geopolítica. De fato, também já está intervindo por meio de representantes na Bósnia e no Kosovo. Em 17 de março, o embaixador russo na Bósnia, Igor Kalabukhov, explicou que “se [a Bósnia] decidir ser membro de qualquer aliança [como a OTAN], isso é assunto nosso. Haverá uma resposta nossa. O exemplo da Ucrânia mostra o que se deve esperar. Caso haja alguma ameaça, responderemos”.

Além disso, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, chegou a sugerir que a única solução abrangente seria desmilitarizar toda a Europa, com a Rússia e o seu exército mantendo a paz por meio de intervenções humanitárias ocasionais. Ideias semelhantes a essa última abundam na imprensa russa. Como explica o comentarista político Dmitry Evstafiev em uma entrevista recente dada a uma publicação croata: “Nasce uma nova Rússia que deixa saber claramente que ela não vê você, Europa, como um parceiro. A Rússia tem três parceiros: EUA, China e Índia. Você é para nós um troféu que será dividido entre nós e os americanos. Você ainda não entendeu isso, embora estejamos chegando já bem perto dessa realização”.

Dugin, o filósofo da corte de Putin, fundamenta a posição do Kremlin por meio de uma estranha versão do relativismo historicista. Em 2016, ele disse: “A pós-modernidade mostra que toda suposta verdade é uma questão de crença. Então acreditemos no que fazemos, acreditemos no que dizemos. E essa é a única maneira de definir a verdade. Portanto, temos nossa verdade russa especial que você precisa aceitar…. Se os Estados Unidos deixam de iniciar uma guerra, é preciso reconhecer que os Estados Unidos não são mais aquele mestre único. E [com] a situação na Síria e na Ucrânia, a Rússia está dizendo: ‘Não, você não é mais o chefe.’ Essa é a questão sobre quem governa o mundo. Só a guerra pode decidir isso realmente”.

Isso levanta uma questão óbvia: E quanto ao povo da Síria e da Ucrânia? Eles também não podem escolher a sua verdade e as suas crenças? Ou serão eles apenas um playground – ou um campo de batalha – dos grandes “chefes”? O Kremlin diria que eles não contam na grande divisão de poder. Dentro das quatro esferas de influência, existem apenas intervenções de manutenção da paz. A guerra propriamente dita acontece apenas quando os quatro grandes chefes não conseguem concordar com as fronteiras de suas esferas – como no caso das reivindicações da China a Taiwan e ao Mar do Sul da China.

Um novo não alinhamento

Mas se formos mobilizados apenas pela ameaça de guerra, não pela ameaça ao nosso meio ambiente, a liberdade que obteremos caso vençamos pode não valer a pena. Estamos diante de uma escolha impossível: se fizermos compromissos para manter a paz, estamos alimentando o expansionismo russo, que só uma “desmilitarização” de toda a Europa irá satisfazer. Mas se endossamos o confronto total, corremos o alto risco de precipitar uma nova guerra mundial. A única solução real é mudar a lente através da qual percebemos a situação.

Enquanto a ordem liberal-capitalista global está obviamente se aproximando de uma crise em vários níveis, a guerra na Ucrânia está sendo falsa e perigosamente simplificada. Problemas globais como a mudança climática não desempenham nenhum papel na narrativa banal de que há um confronto entre países bárbaros e totalitários e o Ocidente livre e civilizado. E, no entanto, as novas guerras e os conflitos entre grandes potências não deixam também ser reações a esses problemas. Se a questão é a sobrevivência em um planeta em apuros, deve-se garantir uma posição mais forte do que aquela mantida pelos outros. Longe de ser o momento de apenas esclarecer a verdade quando o antagonismo básico é exposto, a crise atual é um momento de profunda decepção.

Embora devamos apoiar firmemente a Ucrânia, devemos evitar o fascínio pela guerra que claramente tomou conta da imaginação daqueles que estão pressionando por um confronto aberto com a Rússia. Algo como um novo movimento não alinhado é necessário, não no sentido de que os países devem ser neutros na guerra em curso, mas no sentido de que devemos questionar toda a noção de “choque de civilizações”.

De acordo com Samuel Huntington, que cunhou o termo, o palco para um choque de civilizações foi montado no final da Guerra Fria, quando a “cortina de ferro” da ideologia ocidental foi substituída pela “cortina de veludo da cultura”. À primeira vista, essa visão sombria pode parecer o oposto da tese do fim da história avançada por Francis Fukuyama em resposta ao colapso do comunismo na Europa. O que poderia ser totalmente diferente da ideia pseudo-hegeliana de Fukuyama? Para ele, a melhor ordem social possível que a humanidade poderia conceber tinha finalmente se revelado como sendo a democracia liberal capitalista!

Podemos ver agora que as duas visões são totalmente compatíveis: o “choque de civilizações” é a política que vem no “fim da história”. Os conflitos étnicos e religiosos são a forma de luta que se encaixa no capitalismo global. Em uma era de “pós-política” – quando a política propriamente dita é gradualmente substituída pela administração social especializada – as únicas fontes legítimas de conflito remanescentes são culturais (étnicas, religiosas). A ascensão da violência “irracional” decorre da despolitização de nossas sociedades.

Dentro desse horizonte limitado, é verdade que a única alternativa à guerra é uma coexistência pacífica de civilizações (de diferentes “verdades”, como disse Dugin, ou, para usar um termo mais popular hoje, de diferentes “modos de vida”) . A implicação é que casamentos forçados, homofobia ou estupro de mulheres que se atrevem a sair em público sozinhas são toleráveis se acontecerem em outro país, desde que esse país esteja totalmente integrado ao mercado global.

O novo não alinhamento deve ampliar o horizonte reconhecendo que nossa luta deve ser global – sem deixar de ficar contra a russofobia a todo custo. Devemos oferecer nosso apoio àqueles que estão protestando contra a invasão dentro da própria Rússia. Eles não são alguns círculos abstratos de internacionalistas; eles são os verdadeiros patriotas russos – as pessoas que realmente amam seu país e ficaram profundamente envergonhadas dele desde 24 de fevereiro. Não há ditado mais moralmente repulsivo e politicamente perigoso do que “meu país, certo ou errado”. Infelizmente, a primeira vítima da guerra na Ucrânia foi a universalidade.

Publicado originalmente no portal Project Syndicate.

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