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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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Nos passos de Xuanzang, no Quirguistão

Essa jornada ao passado alcança também o coração da estratégia das Novas Rotas da Seda da China do século XXI

Caminhões de carga chineses vindos da fronteira entre o Quirguistão e a China (Foto: Asia Times / Pepe Escobar)
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Por Pepe Escobar, Lago Issyk-Kul, Quirguistão - Especial para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres para o 247

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Na alta dinastia Tang, em inícios do século VII, um jovem monge peregrino embarcou em uma viagem que duraria dezesseis anos, partindo da capital imperial Chang’an (hoje Xian) rumo à Índia, para coletar manuscritos budistas. Naquela época, Chang’an era seis vezes maior que Roma em seu auge, com uma população de mais de um milhão, o epicentro da civilização asiática. 

A história acabou por converter Xuanzang em uma lenda e em um herói nacional da China - embora, no Ocidente, ele jamais tenha alcançado os níveis de popularidade de Marco Polo.

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Xuanzang havia embarcado em uma busca que ainda ecoa nos dias de hoje. Ele queria saber se todos os homens - ou se apenas uns poucos iluminados - poderiam alcançar a condição de Buda.  Havia apenas um único meio de descobrir: viajar até a Índia e trazer textos sânscritos de volta para a China, em especial os da escola de budismo de Yogacara, que professava que o mundo exterior não existe, sendo apenas uma projeção de nossa própria consciência. 

Em sua épica jornada, Xuanzang atravessou o inferno e comeu o pão que o diabo amassou: tempestades de areia no deserto de Taklamakan ("Você pode entrar nele, mas não sairá nunca"), avalanches nas montanhas Tian Shan, piratas no Ganges. Suas viagens na antiga Rota da Seda são fascinantes, especialmente nos anos 629 e 630, quando ele alcançou os oásis da Rota da Seda do norte, como o reino de Hami.

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Nesses oásis, Xuanzang reabastecia sua pequena caravana de camelos e cavalos e interagia com os reis locais, com mercadores influentes e guerreiros profissionais. Ele estava a caminho de se tornar o mais famoso peregrino de todos os tempos na rota comercial mais antiga do mundo.

O encontro sino-túrquico de mentes 

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Em minha própria viagem, que misturou antigas e novas Rotas da Seda, atravessei o Quirguistão de sul a norte, da desolada fronteira com o Tajiquistão na rodovia Pamir - que parecia uma cena do Stalker de Tarkovsky – até o cruzamento do Sary-Tash, com um desvio por uma estrada construída pela China para examinar a fronteira sino-quirguiz em Irkeshtam; e de lá até Osh, a saída para o vale de Ferghana através do estonteante passo de Taldyk, contornando o Lago Toktogul, encarando miríades de passos cobertos de neve até chegar à capital Bishkek.

O que eu realmente desejava era alcançar a pastagem - nessa época do ano nada verdejante - às margens do rio Issyk-Kul, onde Xuanzang viveu um momento extraordinariamente histórico, ao se deparar com nada menos que o imenso acampamento de tendas da corte do khan dos turcos ocidentais.

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Foi graças ao rei de Turfan – um outro oásis na Rota da Seda, não muito distante da atual capital de Xinjiang, Urumqi – que foram dadas a Xuanzang vinte e quatro cartas reais, a serem mostradas nos vinte e quatro diferentes reinos pelos quais ele passaria no caminho, chegando finalmente ao grande khan dos Turcos Ocidentais. O rei de Turfan era de fato vassalo do grande khan, e ele pedia proteção para seu amigo chinês invocando um código de honra medieval que se aplicava igualmente à Europa e à Ásia. 

O império dos turcos ocidentais, naquela época, se estendia das montanhas Altai - hoje localizadas na Rússia - até o território que é hoje parte do Afeganistão e do Paquistão. Para chegar até o grande khan, Xuanzang teve que atravessar um inferno gelado. Ele descreveu montanhas de gelo que se erguiam até o céu e picos gelados desabando com grande estrondo. Ele levou uma semana apenas para cruzar o passo de Bedal (a 4.284 metros de altitude) naquilo que era então o Turquistão chinês.  Os turcos ocidentais usavam essa passagem para se conectar à bacia de Tarim. Mais adiante na estrada, Xuanzang ainda teria que enfrentar  o Hindu Kush e os Pamires. 

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Xuanzang e sua minúscula e esfarrapada caravana por fim chegaram à margem sul do Lago Issyk-Kul ("Lago Morno"), um mar interior que nunca congela, e o segundo maior do mundo, depois do Titicaca, na Bolívia. Era ali o quartel-general de inverno do grande khan, enquanto sua capital de verão continuava sendo Tashkent.

Fui recebido por uma encantadora jovem mãe com seu bebê em uma yurt às margens do Issyk-Kul. A descrição que Xuanzang faz do lago - que obtive em uma reedição publicada em 1969 pela Oriental Books do original de 1884, a versão londrina do Si-yu-Ki; Buddhist records of the Western World, de autoria de Xuanzang e traduzido por S. Beal - poderia ter sido escrita hoje. Exceto pelos dragões e monstros, é claro. 

"De todos os lados ele é cercado por montanhas, e diversos rios jogam nele suas águas e ali se desaparecem. A cor da água é um preto azulado, seu gosto é amargo e salgado. As ondas desse lago rolam tumultuosas  ao se desfazerem. Dragões e peixes nele coexistem. Em certas ocasiões, monstros escamados sobrem à superfície, onde viajantes que por ali passam oferecem orações pedindo boa sorte". 

Apresentando os balbals

Assim, no ano de 630 Xuanzang finalmente se  encontrou com o grande khan dos turcos ocidentais, na margem noroeste do lago Issyk-Kul, em Tokmak.

Tokmak é muito próxima à torre de Burana, o único marco da Rota da Seda ainda de pé no Quirguistão. Estamos no vale de Chuy, que era um ramal lateral muito movimentado da Rota da Seda do norte, na encruzilhada das civilizações sogdiana, túrquica e chinesa. 

A torre de Burana, o único marco da Rota da Seda ainda de pé no Quirguistão. Foto: Asia Times / Pepe Escobar

Tudo o que resta daquilo que no século XI era a sofisticada cidade de Balasagun – que os mongóis chamaram de Gobolik quando a arrasaram em 1218 - é a torre, na verdade um meio minarete. Por trás dela, encontramos as criaturas de pedra mais bonitinhas de que se tem notícia:  os balbal,  marcos de sepulturas de 1.500 anos de idade.

O encontro de Xuanzang com o grande khan foi um grande sucesso. Ele  descreveu "cavaleiros montados em camelos e cavalos, vestidos de peles e finas vestes de lã, portando longas lanças, bandeiras e arcos retos". Muito semelhantes aos guerreiros que vemos hoje nas extraordinárias exposições do Museu Nacional do Cazaquistão, em Nur-Sultan. A multidão, escreveu Xuanzang, "se  estendia até tão longe que o olho não saberia dizer onde ela terminava". 

Esse foi o último relato descrevendo a grande confederação nômade liderada pelo grande khan, que sucumbiu a lutas internas ainda em inícios do século VII. 

Havia também um assunto muito importante a esclarecer: cavalos. Foi isso que me levou à tradicional feira de animais de domingo em Karakol, não muito longe do extremo sudeste do lago. Lá, vi vários descendentes dos lendários cavalos Przhewalsky.

Przhewalsky, que deu o nome à minúscula raça de cavalos centro-asiáticos, foi o principal explorador científico da Mongólia,  de Gobi, do Tibete e de Xinjiang entre 1870 e 1885 – e morreu de tifo em um hospital próximo a Karakol, depois de ter liderado uma caravana que cruzou o Taklamakan – uma façanha quase impossível. Um belo museu da era soviética próximo a Karakol presta merecido tributo a ele. 

As relações sino-túrquicas na época do grande khan eram excelentes. Nos primeiros anos do reinado do Imperador Taizong, da dinastia Tang, o grande khan estava no auge de seu poder,  controlando todas as latitudes  entre as fronteiras do império chinês e a Pérsia, e de Kashmir, no sul às montanhas Altai, ao norte.

Confirmando o lendário espírito da antiga Rota da Seda de ser uma encruzilhada entre culturas e religiões, o grande khan conhecia até mesmo o budismo (um monge da Índia havia tentado convertê-lo).  Nas redondezas de Tokmak, arqueólogos soviéticos encontraram  dois santuários budistas dos séculos VII ou VIII. 

A fofoca mais saborosa sobre o encontro de Xuanzang com o grande khan foi que o imperador tentou dissuadi-lo de ir à Índia: "é uma terra tão quente, onde as pessoas são como selvagens, não tendo nenhum decoro". Mas o khan logo entendeu que Xuanzang era um homem engajado em uma missão. Ele deu ao monge cartas de apresentação aos seus inúmeros vassalos ao longo do caminho – príncipes de Gandhara, que hoje se divide entre o Afeganistão e o Paquistão. Xuanzang também recebeu de presente cinquenta peças de seda e belíssimas roupas de cetim escarlate. 

E assim, nosso monge peregrino partiu em segurança em sua épica jornada pelas terras túrquicas, cruzando o Syr-Darya, atravessando o Deserto das Areias Vermelhas  e chegando por fim à lendária Samarcanda. A maior peregrinação de todos os tempos pela Rota das Sedas - 16.000 quilômetros em dezesseis anos – estava apenas começando. Essa história está no cerne das Novas Rotas da Seda do século XXI. A China vem tentando reviver o espírito de um, dois, milhares de Xuanzangs.

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