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Zacarias Gama

Professor Titular da UERJ/Faculdade de Educação. Coordenador Geral do Programa de Pós-graduação Desenvolvimento e Educação Teotonio do Santos (ProDEd-TS) e membro do Comitê Gestor do LPP-UERJ

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Novo Ensino Médio, cada trabalhador que se vire como puder, se puder.

Nossa legislação é obediente à lógica mercadológica hegemônica em nossa sociedade, e é pouco interessada em oferecer educação de qualidade

Ah, tá bom! - A educação trincada
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Tenho estudado as leis de educação brasileiras – LDB, BNCC e Reforma do Ensino Médio – com o propósito de identificar as fragilidades existentes e os óbices que nos impedem avançar qualitativamente em termos de oferecimento de uma educação de qualidade socialmente referenciada. As comparações com as legislações de outros países têm ajudado muito, não apenas por alargarem os nossos horizontes, mas porque iluminam o quanto as nossas leis são obedientes à lógica mercadológica hegemônica em nossa sociedade e pouco interessadas em oferecer uma educação de qualidade para além da qualificação para o mercado de trabalho. De imediato salta aos olhos o comprometimento qualitativo e cidadão de outros países com a educação de suas crianças e jovens. No México o Estado tem como prioridade o interesse superior de crianças e jovens no exercício de seu direito à educação, colocando para si o dever de garantir o desenvolvimento de programas e políticas públicas que tornem eficazes o princípio constitucional  (México, 2019). Na Bolívia a educação é uma função suprema e primeira responsabilidade financeira do Estado, que tem a obrigação indeclinável de sustentar, garantir e administrar (Bolívia, 2010). E na França é a primeira prioridade nacional, sendo o serviço público de educação projetado e organizado em torno de alunos e estudantes (França, 2022). Aqui, entre nós, lamentavelmente, nem este compromisso indeclinável e exclusivo do Estado com a educação conseguimos assegurar; a obrigação de educar as nossas crianças e jovens é compartilhada pelo Estado com as famílias. Além disto, é sempre preciso ressaltar que o movimento em prol da privatização da educação pública está em marcha. 

Quando nos detemos na análise dos objetivos educacionais inscritos no projeto de educação que o Estado brasileiro se dispõe a oferecer, ficamos igualmente estarrecidos com mesquinhez existente; ele somente objetiva “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Espera-se, ao final do ensino médio, que o estudante brasileiro tenha consolidado e aprofundado os conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, tenha se preparado para o trabalho e a cidadania; tenha se aprimorado com ética, autonomia intelectual e pensamento crítico; e tenha adquirido a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos. Na França, além da transmissão do conhecimento, o serviço público de educação garante que os estudantes da educação básica apreendam os valores da República, respeitem a igualdade e a dignidade dos seres humanos, tenham liberdade de consciência e secularismo, e sejam cooperativos uns com os outros. Na Bolívia a expectativa é que os estudantes ao fim da educação básica tenham tido uma formação integral com consciência social e crítica da vida e na vida para viver bem, sejam capazes de vincular teoria e prática; enfim que sejam homens e mulheres sem preconceitos, com desenvolvidas potencialidades e capacidades físicas, intelectuais, afetivas, culturais, artísticas, desportivas, criativas e inovadoras, com vocação de servir à sociedade e ao Estado Plurinacional. No México, além da formação integral dos educandos, os objetivos visam que eles promovam o respeito irrestrito à dignidade humana e aos direitos humanos; fomentem o amor pela pátria e o respeito por suas culturas, interculturalidade, história, valores, símbolos e instituições, com atitudes solidárias em níveis nacionais e internacionais; inculquem o respeito pela natureza e sejam capazes de promover o desenvolvimento sustentável e a resiliência frente às mudanças climáticas; exercitem a honestidade, o civismo e os valores indispensáveis à transformação da vida pública do país.

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Os projetos de educação dos países citados, como se pode ver, ao contrário de reduzirem a formação plena do educando para a cidadania e sua qualificação para o trabalho, ampliam-na. Cristalinamente se vê que não estão subsumidos aos interesses avarentos e imediatistas do mercado, mas aos interesses das suas sociedades.   

Se ainda interrogamos a LDB acerca da qualificação para o trabalho dos estudantes brasileiros querendo saber se ela a orienta para o trabalho produtivo e/ou improdutivo, assoma aos olhos a prevalência dos interesses mercadológicos e o desprezo à formação para o trabalho improdutivo. Para demarcar as distinções entre trabalho produtivo e improdutivo, com base nos escritos de Marx, o trabalho produtivo é aquele que valoriza diretamente o capital, produz mais-valia, o trabalhador produz para o capitalista. O conceito de trabalho produtivo também compreende uma relação social de produção específica que marca “o trabalhador como meio direto de valorização do capital”. O trabalho improdutivo, por sua vez, muito embora não esteja diretamente voltado à produção de mais-valia para o capitalista, dada a sua exterioridade ao circuito de produção de valor, não é exógeno ao modo de produção capitalista e está longe de lhe ser dispensável. O modo de produção capitalista em sua totalidade tem necessidade do trabalho improdutivo para a sua reprodução. Um médico que somente atenda em seu consultório ou uma cantora pop são imprescindíveis a ele. É o médico que cuida dos debilitados e os recoloca em condições de continuarem a ser explorados; é a cantora pop que enche as burras dos empresários em megashows em que se apresenta.

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A mesma opção pelo trabalho produtivo também salta aos olhos nas Bases Nacionais Curriculares Comuns (BNCC) e na Reforma do Ensino Médio. A LDB orienta o ensino brasileiro para a qualificação do estudante para o trabalho produtivo, sendo salientes as vezes em que se refere a competências e habilidades a serem adquiridas conforme as demandas do mercado; ela faz isto tendo em mente demonstrações práticas, experiências de trabalho supervisionado em ambiente extraescolar, atividades de educação técnica, e cursos em centros ou programas ocupacionais (BRASIL, LDB, Art. 36. 1996). As Bases Nacionais Curriculares Comuns (BNCC) objetivam dar sentido às aprendizagens e explicitá-las nos contextos de produção e circulação de conhecimentos, garantir o protagonismo dos estudantes nas suas aprendizagens, desenvolvimento das capacidades essenciais às suas autonomias pessoal, profissional, intelectual e política; promover e estimular aprendizagens e atitudes colaborativas e propositivas indispensáveis ao trabalho em equipe e ao enfretamento dos desafios da comunidade, do mundo do trabalho e da sociedade em geral, alicerçadas no conhecimento e na inovação (BRASIL, BNCC). Na Reforma do Ensino Médio (Lei 13.415/2017) a ênfase na qualificação para o trabalho produtivo é ainda mais acentuada a começar pela organização do ensino por áreas, que estimula o trabalho docente por meio de projetos, oficinas e atividades multidisciplinares, em um grande esforço para aproximar as escolas do ambiente produtivo empresarial com menos aulas expositivas e mais participação ativa dos estudantes (MEC, Novo Ensino Médio). Os cinco itinerários formativos que estabelece acabam por configurar, na visão do ANDES – Sindicado Nacional, “uma espécie de especialização dentro de uma das áreas do conhecimento ou ensino técnico profissionalizante”. 

A diminuição de ofertas das disciplinas Sociologia, Filosofia, Geografia e História é parte das intenções de um empresariado com grande voracidade para extrair mais valia e oferecer com menos educação. Ou em outras palavras, de encaminhar o ensino para a qualificação do trabalho produtivo e obliterar o quanto puder a qualificação para o trabalho improdutivo, como se este fosse um luxo dispendioso e exterior ao circuito de produção de valor. Quer ignorar que os trabalhadores improdutivos também são necessários à reprodução da totalidade do modo de produção capitalista. Os trabalhos dos sociólogos, filósofos, historiadores e geógrafos são incapazes de enriquecer as editoras? Não são eles os assalariados em instituições privadas de ensino e pesquisa que enriquecem os seus donos? Quantos empresários ficam mais ricos com os shows de popstars? É como disse Marx, o trabalho produtivo ou improdutivo “não deriva de seu conteúdo ou resultado, mas de sua forma social específica” (MARX, 1980 apud Duarte, 2017). Todo trabalho é produtivo desde que seja capaz de gerar mais-valia, de valorizar o capital. 

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A restrição do oferecimento de Sociologia, Filosofia, Geografia e História somente àqueles que optarem pelo itinerário formativo “Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da natureza e suas tecnologias” é o estreitamento da formação dos demais estudantes e futuros trabalhadores. O não oferecimento de Artes e Educação Física é o corte mais profundo nos “acessórios” de luxo. Porém, não se pense, que o oferecimento de Sociologia, Filosofia, Geografia e História, no itinerário destacado acima, ocorra em favor da desalienação destes estudantes. A ideia é favorecer o protagonismo deles nos futuros ambientes de trabalho da economia flexível, nos quais possam “mobilizar diferentes linguagens,   os trabalhos de campo, recorrer a diferentes registros e engajar-se em práticas cooperativas, para a formulação e resolução de problemas” contanto que sejam demandados pela empresa capitalista (MEC. Itinerários Formativos do Novo Ensino Médio). A Reforma do Ensino Médio, numa visão de totalidade, visa a formação de trabalhadores com subjetividades flexíveis, a partir de uma base de educação geral complementada por itinerários formativos por áreas de conhecimento. Kuenzer, 2020, afirma que a intenção é “levar os que vivem do trabalho a exercer, e aceitar, de forma natural, as múltiplas tarefas no mercado flexibilizado (...) e os trabalhos temporários simplificados, repetitivos e fragmentados”. Com mais ênfase ainda assegura que ao invés de uma formação qualificada para o trabalho produtivo, oferece certificados ou reconhecimentos de competências pobres de conteúdos e apreensões superficiais.

Diferentemente da formação que outros países oferecem aos seus jovens e futuros trabalhadores, a Reforma do Ensino Médio, sem levar em consideração os debates com os setores mais progressistas da sociedade, disponibilizará trabalhadores desqualificados para trabalhos precarizados. Nestes trabalhos a rigor a qualificação para o trabalho produtivo pode ser superficial e dispensada a formação para o trabalho improdutivo. Cada trabalhador que se vire como puder, se puder. 

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