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Tereza Cruvinel

Colunista/comentarista do Brasil247, fundadora e ex-presidente da EBC/TV Brasil, ex-colunista de O Globo, JB, Correio Braziliense, RedeTV e outros veículos.

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O hebraico e outros sotaques na cobertura do atrito Brasil-Israel

O Holocausto é incomparável em sua monstruosidade, mas algumas coisas que nele aconteceram já se repetiram e estão se repetindo em Gaza. Foi isso que Lula disse

Lula e Benjamin Netanyahu (Foto: Ricardo Stuckert/PR | Reuters/Ronen Zvulun/Pool)
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Parece ter havido nesta quarta-feira alguma moderação na cobertura da mídia nacional ao atrito diplomático entre os governos de Israel e do Brasil, talvez por conta da quase indiferença do resto do mundo em relação a essa crispação bilateral, do nível elevado e amistoso do encontro entre o presidente Lula e o secretário de Estado norte-americano Antony Blinken, e do início promissor do encontro dos chanceleres do G-20 no Rio. Mas continuo impressionada com o padrão colonizado de uma cobertura que pode servir a interesses domésticos, não ao bom jornalismo.

Dá para entender os objetivos do governo extremista de Israel com sua reação desproporcional, embora não tenhamos visto nada sequer parecido quando o presidente da Turquia, Tayyip Erdogan, comparou literalmente Netanyahu a Hitler.

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Óbvio que o governo israelense buscou criar “cortina de fumaça”, como disse o chanceler Mauro Vieira, sobre o que tem feito e o que planeja fazer em Rafah, buscando reduzir o isolamento internacional do país e a impopularidade interna do premiê. Para isso valeu humilhar o embaixador brasileiro e mentir, chamando Lula de negacionista do Holocausto.  Óbvio que o governo brasileiro não poderia ter reagido de outra forma. Lula não se retratou, não admitindo ter dito o que não disse. As respostas do chanceler foram polidas mas pontiagudas.

Óbvio também que, elegendo bater em Lula (e não em Erdogan), o governo de Netanyahu tocou de ouvido com seus aliados da extrema-direita brasileira, gerando discurso para o bolsonarismo em seu momento mais adverso. Não foi Lula, como vejo escrito, que “deu munição” aos bolsonaristas. Foi presente de Netanyahu. Se conseguisse o passaporte de volta, Bolsonaro até iria lá para agradecer.    Mas a mídia hegemônica, que razões teve, se não as da velha intolerância com Lula, para embarcar de cabeça na histeria verborrágica, numa cobertura em que faltaram análises e questionamentos e sobraram adjetivos pesados contra o presidente. Irresponsável, ignorante e descuidado foram os mais suaves. O jornal O Estado de S. Paulo inventou até uma categoria nova, com seu editorial sobre o que seria o “vandalismo diplomático”.  ´

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Terá sido com vandalismo diplomático que Lula e a diplomacia brasileira tiraram o Brasil da posição de pária em que foi colocado por Bolsonaro, recolocando o país no lugar que lhe é devido, restabelecendo relações bilaterais importantes e resgatando seu lugar nos organismos multilaterais (de que fala a reunião do G-20 que acontece hoje e amanhã)? Acho que a diplomacia de Israel, sim, merece o adjetivo: atacou inconsequentemente o presidente de um país amigo, faltou para com a etiqueta diplomática ao constranger o embaixador Frederico Meyer e jogou vulgarmente com as palavras.

Nos últimos anos vi o jornalismo político trilhar caminhos que levaram a desvãos. A servidão à Lava Jato,  por exemplo, jamais será  esquecida. Por algum tempo achei que os cânones dos melhores tempos – que vão do fim da ditadura, em 1985, à posse de Lula, em 2003 – estavam sendo restabelecidos.  Mas não.

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Mal o governo israelense estrilou dizendo que Lula comparou o que ocorre em Gaza com o Holocausto, a acusação  foi acolhida incondicionalmente. Não vi, nos grandes jornais e canais de televisão, o questionamento jornalístico básico: isso aconteceu mesmo? Lula fez de fato uma comparação entre dois eventos históricos realmente incomparáveis?

Durante todo o tempo, repórteres, colunistas,  comentaristas e apresentadores, com raríssimas exceções na mídia hegemônica, afirmaram que Lula o fez, reproduzindo a hermenêutica de Netanyahu. Poucas vezes li ou ouvi a reprodução completa de sua fala em Addis Abeba: “O que está acontecendo hoje com os palestinos em Gaza não houve em nenhum outro momento histórico. Aliás, houve quando Hitler decidiu matar os judeus”.  Não vi um debate sobre algo essencial. Houve ou não houve comparação?  Permito-me um exercício de gramática. Comparações são feitas, em nossa língua, através de orações subordinadas adverbiais comparativas. Afirma-se algo na oração principal, e na segunda oração (a subordinada), busca-se estabelecer a relação de um segundo elemento com o primeiro. Relação que pode ser de igualdade, inferioridade ou superioridade. Estas duas orações, valei-me Domingos Paschoal Cegalla, são ligadas por conjunções ou locuções conjuntivas tais como “tanto quanto”, “mais que”, “menos que”, “tão quanto”  e similares.  Na frase de Lula não há conjunções estabelecendo ordens de grandeza. Com o “aliás, ele se corrige em relação à afirmação de que as coisas horríveis que “estão acontecendo em Gaza” não tem precedente histórico: tiveram sim, “quando Hitler decidiu matar os judeus”.

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Nas duas frases não há relação comparativa, dizendo que os fatos de agora são iguais, mais graves ou menos graves que os produzidos pelo nazismo.  As palavras Holocausto e genocídio não aparecem na fala de Lula.  O que ele disse, posto em ordem direta, seria o seguinte: “desde quando Hitler decidiu matar os judeus não ocorrem coisas como as que estão acontecendo em Gaza”. 

E quem há de negar que acontecem em Gaza coisas que aconteceram no Holocausto? Entre elas punição coletiva, assassinato de crianças e mulheres, fome, desabrigo e negação de condições humanitárias mínimas.  Estas coisas acontecem em Gaza, mas não todas aquelas que aconteceram no Holocausto. Não as câmaras de gás e os campos de concentração, por exemplo.

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O Holocausto é incomparável em sua monstruosidade, mas algumas coisas que nele aconteceram já se repetiram e estão se repetindo em Gaza. Foi isso que Lula disse.

Ao jornalismo brasileiro (e a outros tantos intelectuais que se manifestaram sobre o assunto com o mesmo vício colonialista de concordar com o estrangeiro), competia fazer uma exegese da fala de Lula.

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Poderão dizer-me que na diplomacia as palavras pesam mais que as regras da sintaxe e da gramática, carregando significados que estão no intangível das intenções políticas. Mas, de algum modo, por algum método, a mídia nacional deveria ter discutido o real sentido da fala do presidente do país.  Não aconteceu porque, se o negócio era aproveitar a oportunidade para desgastar e até humilhar Lula, apontando-o como despreparado e irresponsável, conveniente era embarcar no discurso de Israel. Algo muito diferente daquela prática do The New York Times, relatada por Gay Talese em seu livro O Reino e  Poder, que recomendava a avaliação editorial criteriosa de fatos que poderiam, diferentemente de outros,  ser de interesse nacional.  Aqui, porém, todos os fatos são de interesse da disputa doméstica.  É claro que Blinken e Lula falaram do atrito, embora não o tenham mencionado nas declarações posteriores. Deviam ter conversado 45 minutos, conversaram quase duas horas. Destacaram as convergências entre os dois países, inclusive sobre a criação do Estado Palestino, ao lado do de Isreal. Na fotografia do encontro, estavam sorridentes num aperto de mãos.  Ela, bem como as imagens do encontro de chanceleres do G20, falavam que o mundo está olhando com muita atenção e interesse para o Brasil. Não por causa da rixa diplomática com Israel, que talvez se torne uma nota de rodapé no futuro, mas por conta da presidência brasileira do G20 e tudo o mais que o país voltou a representar.  Por acaso, depois da visita de Blinken foi que notei uma inflexão mais moderada na cobertura midiática da “crise” com Israel. Outros assuntos voltaram também a disputar a narrativa do dia.

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