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Slavoj Žižek

Professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana (Eslovênia). Autor, entre outros livros, de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo).

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O paradoxo da pandemia

Temos que aceitar ser uma espécie dentre as outras na Terra e, ao mesmo tempo, pensar e agir como seres universais

(Foto: ABr)
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Por Slavoj Žižek

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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O cansaço gerado pela pandemia agora se estende à teoria: no começo deste ano, eu me cansei de escrever sobre o assunto – a mesma situação não cessava de se eternizar e, no final, não aguentávamos mais estabelecer pela enésima vez as mesmas constatações. Existe um paradoxo aqui: no momento em que a submissão a hábitos e costumes repetitivos é acusada de tornar a vida entediante, o que nos afunda no cansaço típico destes tempos é justamente a ausência de tais hábitos e costumes. Estamos cansados de viver em um estado de exceção permanente, de esperar por novas diretivas estatais – incapazes, como somos, de encontrar momentos de descanso em nossas vidas cotidianas.

Em setembro de 2020, o sociólogo alemão Rainer Paris publicou um breve ensaio, intitulado “A destruição do cotidiano” no qual lamenta – e não é o único a fazê-lo – a destruição, em curso, da vida cotidiana. Para ele, a pandemia ameaçava os hábitos e costumes que contribuíam para garantir a coesão de toda a sociedade. Isso me fez lembrar de uma excelente piada sobre Samuel Goldwyn (existem muitas): ao ser informado de que a crítica deplorava o excesso de velhos clichês nos filmes que produzia, Sam Goldwyn teria redigido a seguinte nota para seus roteiristas: “Precisamos de mais novos clichês”. Ele tinha razão, e essa é a nossa muito delicada tarefa atual: criar “novos clichês” para a vida cotidiana normal. A forma com a qual este cansaço se manifesta no cotidiano difere, obviamente, de acordo com cada cultura.

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O filósofo Byung-Chul Han tem razão lembrar que o cansaço suscitado pela pandemia é sentido mais intensamente em sociedades ocidentais desenvolvidas, posto que os sujeitos que nelas vivem estão mais submissos à pressão da obrigação de performance do que em outras: “A compulsão pelo desempenho à qual nos sujeitamos se estende para além disso. Ela nos acompanha durante o tempo de lazer, nos atormenta até mesmo enquanto dormimos, e frequentemente leva a noites insones. Não é possível se recuperar da compulsão por desempenho. É especificamente essa pressão interna que nos deixa cansados. (…) O avanço do egoísmo, da atomização e do narcisismo na sociedade é fenômeno global. As mídias sociais nos transformam em produtores, empreendedores, que são, em si mesmos, empresas. Elas globalizam a cultura do ego que destrói comunidades, destrói tudo que houver de social. Nós nos produzimos e nos colocamos em exposição permanente. Essa autoprodução, esse “estar exposto” do ego, nos deixa cansados e deprimidos. (…) O cansaço fundamental é, ultimamente, um tipo de cansaço do ego. As outras pessoas, que poderiam nos distrair de nosso ego, estão ausentes. (…) Uma ausência de ritual é outra razão para o cansaço induzido pelo home office. Em nome da flexibilidade, estamos perdendo as estruturas temporais fixas e as arquiteturas que estabilizam e revigoram a vida” (“O vírus do cansaço”, em A Terra é Redonda).

O paradoxo de nossa exposição no Zoom

Como o cansaço depressivo é causado por nossa autoexposição permanente, exigida pelo capitalismo tardio, nós poderíamos ter imaginado que confinar-se rimaria com aliviar-se, que o isolamento social permitiria um escape para a pressão causada pela demanda por resultados. Ora, o efeito do confinamento foi praticamente o contrário: nossas relações profissionais e sociais foram, em grande medida, transferidas para o Zoom e para outras redes sociais, onde continuamos a brincar de autoexposição com um zelo ainda maior, prestando muita atenção à figura que apresentamos – enquanto o espaço reservado para a socialização, este espaço que permitia algum repouso, uma saída para o imperativo da exibição, foi, em grande parte, eliminado. De uma maneira paradoxal, a lógica da contínua encenação de si mesmo foi reforçada pelo confinamento e pelo home office: nos esforçamos para “brilhar” no Zoom, e acabamos esgotados, sozinhos, em casa…

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Podemos, então, notar claramente como inclusive uma sensação elementar, como o cansaço, é, no fim das contas, causada pela ideologia, pelo jogo da autoexposição – que passou a ser parte integrante da ideologia que acompanha nosso cotidiano. O filósofo esloveno Mladen Dolar – em uma conversa pessoal – designou nossa muito delicada situação atual recorrendo a uma noção de Walter Benjamin: Dialektik im Stillstand, “dialética paralisada” – que também é, no caso, uma dialética em suspense, na ansiosa espera de que a situação comece a evoluir, de que o novo finalmente surja. Entretanto, o sentimento de paralisia, o entorpecimento e a insensibilidade crescentes, que forçam cada vez mais as pessoas a ignorar as informações e a parar de se preocupar com o futuro, são extremamente enganadores: eles impedem que se veja que vivemos atualmente uma mudança social sem precedentes. Desde que a crise sanitária se instaurou, a ordem capitalista mundial mudou imensamente; a grande e angustiadamente esperada ruptura já está em curso.

O imperativo de reinvenção pessoal

A reação habitual a tal ruptura, a forma dominante de pensar a situação presente, combina ideias completamente esperadas: a pandemia não apenas teria libertado as tensões sociais e econômicas em operação em nossas sociedades, mas ela também nos lembraria de que somos parte integrante da natureza, e não o seu centro, e que seria necessária uma mudança em nossas formas de vida – acabar com nosso individualismo, desenvolver novas solidariedades e aceitar o lugar modesto que ocupamos neste planeta.

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Citando Judith Butler: “um mundo habitável para os humanos depende de um planeta florescente onde os humanos não estão no centro. A oposição às toxinas ambientais não acontece apenas para que possamos viver e respirar sem ter medo de nos envenenar mas, também, porque a água e o ar devem ter vidas que não estejam centradas na nossa. Conforme desmontamos as formas rígidas de individualidade nestes tempos interconectados, podemos imaginar o papel menor que os mundos humanos devem desempenhar neste planeta Terra de cuja regeneração tanto dependemos – e que, por sua vez, depende de nosso menor e mais consciente papel” (“O futuro da pandemia”, em A Terra é Redonda).

Ao menos dois pontos me parecem problemáticos nessas linhas. Primeiramente, por que desmontar as “formas rígidas de individualidade”? O problema de hoje não seria o contrário? Ele não consistiria na predominância de formas hiperflexíveis de individualidade, permitindo uma adaptação imediata a situações sempre novas, a uma época em que se vive sob a pressão permanente do imperativo da reinvenção pessoal, uma época em que toda forma estável é considerada como “opressora”? Além disso, a pandemia não seria vivida de forma tão traumática justamente porque ela nos priva de rituais cotidianos fixos sobre os quais podíamos nos apoiar com toda confiança? Butler não estaria simplesmente seguindo sua inclinação habitual? Ela não estaria apegada, aqui à sua ideia de um sujeito dedicado a minar qualquer identidade fixa e opressora por meio de um jogo de reconstrução permanente?

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A falsa modéstia humana conduz à catástrofe

Segundo ponto: não seria simples demais afirmar que “a água e o ar devem ter vidas que não estejam centradas na nossa”, que devemos aceitar um papel mais modesto neste planeta Terra? O aquecimento global e as outras ameaças ecológicas que nos afligem não exigiriam, de nossa parte, o contrário: intervenções coletivas e mais do que massivas no meio ambiente – intervenções que, justamente por sua escala, certamente teriam impacto no frágil equilíbrio das formas de vida? Quando dizemos que é absolutamente necessário manter o aquecimento global sob o limite de dois graus Celsuis suplementares, nos expressamos (e tentamos agir) como diretores-gerais da vida sobre a terra e não como representantes de uma espécie procurando modéstia.

Ao que tudo indica, a recuperação do planeta Terra não depende de “nosso menor e mais consciente papel”: ela depende, ao contrário, de iniciativas que requerem uma amplitude propriamente gigantesca. Eis a verdade que se dissimula sob os discursos que se consagram à nossa finitude e mortalidade. Encontramos, aqui, a lacuna que já opera na ciência moderna e na subjetividade: é preciso que exista uma relação dialética entre a ciência moderna e a subjetividade – ambas visando um domínio da natureza e completamente codependentes – e uma visão da humanidade como uma simples espécie dentre as outras.

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Se devemos estar tão preocupados com a vida da água e do ar, é justamente porque somos, como escreveu Marx, “seres universais”. Seres, por assim dizer, capazes de “dar um passo para além” de si mesmos, de medir precisamente suas próprias forças e de apostar nelas. Seres capazes, enfim, de se perceber como um elemento menor da totalidade natural. Nos tempos pré-modernos, a humanidade se via como o ápice da criação, o seu coroamento, e tal visão de si implicava, de forma paradoxal, uma postura muito mais modesta.

Eis o paradoxo que devemos sustentar nestes dias difíceis: aceitar ser uma espécie dentre as outras na Terra e, ao mesmo tempo, pensar e agir como seres universais. Escapar, através da modéstia confortável de nossa finitude e de nossa mortalidade, não é uma opção, é uma rota para a catástrofe.

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