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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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Por que as Novas Rotas da Seda são uma "ameaça" ao bloco dos Estados Unidos

O Oriente Médio é a chave para uma integração econômica ampla e interconectada e para a paz

Mercadores modernos em uma trilha da antiga Rota da Seda na Ásia Central (Foto: Facebook)
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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A enxurrada ensurdecedora e ininterrupta do ciclo de notícias, somada às erupções do Twitter, fazem com que a grande maioria dos ocidentais, especialmente nos Estados Unidos, se esqueça dos fundamentos da interação da Eurásia com sua península ocidental, a Europa. 

A Ásia e a Europa comercializam mercadorias e ideias desde pelo menos 3.500 A.C. Em termos históricos, esse fluxo talvez tenha sofrido alguns percalços ocasionais - por exemplo, a invasão das planícies eurasianas por cavaleiros nômades no século V, mas ele foi essencialmente constante até finais do século XV. É possível descrevê-lo basicamente como um eixo milenar - da Grécia à Pérsia, do Império Romano à China. 

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Um caminho terrestre com incontáveis ramificações, cruzando a Ásia Central, o Afeganistão, o Irã e a Turquia, ligando a Índia e a China ao Leste do Mediterrâneo e ao Mar Negro, acabou por se fundir naquilo que conhecemos como as Antigas Rotas da Seda. 

Por volta do século VII, os caminhos terrestres e os caminhos comerciais marítimos entraram em competição direta. E o planalto iraniano sempre desempenhou um papel central nesse processo.

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O planalto iraniano, historicamente, inclui o Afeganistão e partes da Ásia Central, conectando-o a Xinjiang a leste e chegando até a Anatólia a oeste. O Império Persa baseava-se principalmente no comércio por via  terrestre, sendo o principal nó entre a Índia e a China e o Leste do Mediterrâneo.

Os persas associaram-se aos fenícios da costa síria para gerir o comércio marítimo no Mediterrâneo. Empreendedores de Tiro fundaram Cartago como um nó entre o Mediterrâneo do Leste e do Oeste. Em razão de sua parceria com os fenícios, os persas, como não poderia deixar de ser, eram hostilizados pelos gregos, então uma potência comercial marítima.   

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Quando os chineses, ao promover as Novas Rotas da Seda, ressaltam o "intercâmbio de povo a povo" como sendo uma de suas principais características, eles estão falando do milenar diálogo Euro-Asiático. É possível que a história tenha abortado dois grandes encontros diretos. 

O primeiro ocorreu depois de Alexandre o Grande ter  derrotado Dario III da Pérsia. Mas então, os sucessores selêucidas de Alexandre tiveram que lutar contra a potência que então surgia na Ásia Central - os partas, que acabaram por conquistar a Pérsia e a Mesopotâmia, e usaram o Eufrates como a fronteira entre eles próprios e os selêucidas.  

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O segundo encontro deu-se em 116 A.D., quando o Imperador Trajano, depois de derrotar os partas, chegou ao Golfo Pérsico. Mas Adriano recuou, de modo que a história não pôde registrar o que teria sido um encontro direto entre Roma, via Pérsia, e a Índia e a China, ou o encontro do Mediterrâneo com o Pacífico.  

A globalização mongol 

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O último trecho a oeste das Antigas Rotas da Seda era, de fato, uma Rota da Seda Marítima. Do Mar Negro ao delta do Nilo, havia uma fieira de pérolas na forma de cidades/empórios italianos, uma mistura de parada final das caravanas e bases navais, que então transportavam os produtos asiáticos aos portos italianos. 

Centros comerciais localizados entre Constantinopla e a Crimeia formavam um outro ramal da Rota da Seda, que cruzava a Rússia até Novgorod, culturalmente muito próxima ao mundo bizantino. A partir de Novgorod, os mercadores de  Hamburgo e de outras cidades da Liga Hanseática distribuíam os produtos asiáticos para os mercados bálticos e norte-europeus, chegando até a Inglaterra. Correndo paralelamente, as rotas do sul eram usadas pelas repúblicas marítimas italianas. 

Entre o Mediterrâneo e a China, as Antigas Rotas da Seda, é claro, eram principalmente terrestres. Mas havia também algumas rotas marítimas. Os principais polos  civilizacionais em questão  eram agrícolas e manufatureiros. Até o século XV, na verdade, não se pensava em uma navegação oceânica contínua e turbulenta.

Os principais atores eram a China e a Índia, na Ásia, e a Itália e a Alemanha, na Europa. A Alemanha era o principal mercado consumidor das mercadorias importadas pelos italianos. Isso explica, em poucas palavras, o casamento estrutural do Santo Império Romano. 

No coração geográfico das Antigas Rotas da Seda havia desertos e vastas estepes cruzadas por tribos esparsas de pastores ou caçadores nômades. Por todas essas vastas terras ao norte do Himalaia, a rede das rotas da seda servia principalmente aos quatro principais atores. Pode-se imaginar que uma imensa potência política que viesse a surgir, e que conseguisse unir todas essas tribos nômades, seria a grande beneficiária do comércio das Rotas da Seda. 

Bem, foi exatamente isso que aconteceu. As coisas começaram a mudar quando as tribos de pastores nômades da Ásia Centro-Sul começaram a ser arregimentadas como cavaleiros-arqueiros por líderes político-militares como Genghis Khan.

Bem-vindos à globalização mongol que, na verdade, foi a quarta globalização da história, seguindo-se à síria, à persa e à árabe. Sob o icanato mongol, o planalto iraniano - mais uma vez desempenhando um papel de destaque -    ligava a China ao reino armênio da Cilícia, no Mediterrâneo.

Os mongóis não tentaram monopolizar a Rota da Seda. Ao contrário: no tempo de Kublai Khan - e das viagens de Marco Polo - a Rota da Seda era livre e aberta. Os mongóis só exigiam que as caravanas pagassem um pedágio. 

Já com os turcos, a história foi bem outra. Eles consolidaram o Turquestão, da Ásia Central ao noroeste da China. Tamerlan só não anexou a Índia porque morreu antes. Mas os turcos também não pretendiam fechar a Rota da Seda: eles queriam apenas controlá-la. 

Veneza perdeu seu último acesso direito à Rota da Seda em 1461, com a queda de Trebizond, que continuava ligada ao  Império Bizantino. Com o fechamento da Rota da Seda  aos europeus, os turcos - que agora dominavam um império que ia do Centro-Sul da Ásia até o Mediterrâneo - estavam seguros quanto a deter o controle sobre  o comércio entre a Europa e a Ásia.  

Mas não foi bem assim. Porque foi então que os reinos europeus da costa atlântica produziram o Plano B máximo: um novo caminho marítimo para as Índias.

E o resto - a hegemonia do Atlântico Norte – é história.

Arrogância esclarecida 

O Iluminismo seria incapaz de conter a Ásia dentro dos limites de suas rígidas geometrias. A Europa deixou de entender a Ásia, proclamou que ela não passava de uma espécie de detrito histórico proteiforme e voltou sua atenção exclusiva para terras "virgens" ou "prometidas" de outros cantos do planeta. 

Todos nós sabemos que a Inglaterra, a partir do século XVIII, assumiu o controle da totalidade das rotas transoceânicas e transformou a supremacia norte-atlântica em um jogo de uma superpotência única - até que o manto foi usurpado pelos Estados Unidos.

No entanto, durante todo esse tempo, houve uma contrapressão  por parte das potências centro-asiáticas. Essa é a matéria das relações internacionais dos últimos dois séculos - que culminou nos primeiros anos do século XXI naquilo que, simplificadamente, poderia ser chamado de a Vingança do Interior contra a Potência Marítima. Mas isso ainda não é a história toda. 

A hegemonia racionalista europeia foi progressivamente levando a uma incapacidade de entender a  diversidade - ou o Outro, como no caso da Ásia. Um real diálogo euro-asiático - o verdadeiro motor da história - vem definhando pela maior parte dos últimos dois séculos. 

A Europa deve seu DNA não apenas às tão incensadas Atenas e Roma - mas também a Bizâncio. Mas, por tempo demasiado, não apenas o Oriente, mas também o Leste Europeu, herdeiro de Bizâncio, tornaram-se incompreensíveis à Europa Ocidental, quase incomunicáveis ou submersos em patéticos clichês. 

A Iniciativa do Cinturão e Rota, ou seja, as Novas Rotas da Seda lideradas pela China, são um marco histórico que vira o jogo em uma infinidade de maneiras. De modo lento e seguro, estamos evoluindo para uma configuração formada pelas principais potências terrestres eurasianas economicamente interconectadas, de Xangai ao Vale do Ruhr, lucrando de forma coordenada com o imenso know-how tecnológico da Alemanha e da China, somado aos enormes  recursos energéticos da Rússia. 

Os frenéticos anos 2020 talvez venham a representar a conjuntura histórica na qual esse bloco consiga ultrapassar o bloco atlanticista atualmente hegemônico. 

Compare-se isso ao principal e perene objetivo estratégico dos Estados Unidos, vigente há décadas: estabelecer, por intermédio de uma infinidade de formas de dividir para governar, que as relações entre  a Alemanha, a Rússia e a China devam ser as piores possíveis.

Não é de admirar que na cúpula da OTAN realizada no mês passado em Londres, o medo estratégico tenha ficado gritantemente evidente nas conclamações à intensificação das pressões sobre a Rússia e a China. Esse foi o pior dos pesadelos recorrentes do falecido  Zbigniew "Grande Tabuleiro" Brzezinski. 

A Alemanha logo terá uma decisão sobre-humana a tomar. É como se  tivéssemos aqui a retomada - em termos muito mais exacerbados -  do debate Atlanticismo versus Ostpolitik. Os empresários alemães sabem que a única maneira de uma Alemanha soberana vir a consolidar seu papel como uma potência global exportadora é tornar-se uma parceira próxima da Eurásia. 

Paralelamente, Moscou e Pequim chegaram à conclusão de que o círculo estratégico transoceânico dos Estados Unidos só poderá ser rompido por meio das ações de um bloco coordenado: o BRI, a União  Econômica Eurasiana, a Organização de Cooperação de Xangai, o BRICS+, o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS e o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura.

O Pacificador do Oriente Médio

A Antiga Rota da Seda não era uma única rota de caravana de camelos, mas sim um labirinto de caminhos interligados. Desde meados da década de 1990, tive o privilégio de conhecer pessoalmente cada trecho importante - e então, um dia, você percebe a totalidade do quebra-cabeça. As Novas Rotas da Seda, caso venham a atingir  seu potencial, prometem fazer o mesmo. 

O comércio marítimo pode chegar a ser imposto - ou controlado - por uma superpotência naval global. Mas o comércio terrestre só pode prosperar na paz. Assim, as Novas Rotas da Seda  têm o potencial de virem a se tornar o Grande Pacificador do Sudoeste Asiático - aquilo que a visão ocidental chama de Oriente Médio. 

O Oriente Médio - lembrem-se de Palmira - foi sempre o nó principal das Antigas Rotas da Seda, o grande eixo terrestre do comércio euro-asiático chegando até o Mediterrâneo.

Durante séculos, um quarteto de potências regionais - Egito, Síria, Mesopotâmia (hoje Iraque) e Pérsia (hoje Irã) – lutaram pela hegemonia sobre a totalidade da região que vai do delta do Nilo até  o Golfo Pérsico. Mais recentemente, a hegemonia passou a ser externa: otomana turca, britânica e americana. 

Tão delicada, tão frágil, tão imensamente rica em cultura, a região, desde os primórdios da história e ininterruptamente, sempre foi uma zona de importância absolutamente chave. É claro que o Oriente Médio já era uma zona de crise mesmo antes de o petróleo ser descoberto (os babilônios, por sinal, já sabiam disso).

O Oriente Médio é uma escala importante nas rotas das cadeias logísticas transoceânicas do século XXI, daí sua importância geopolítica para a atual superpotência, dentre outras razões geoeconômicas relacionadas à energia. Mas os melhores e mais brilhantes sabem que não há por que o Oriente Médio continuar sendo um centro de guerra ou de ameaças de guerra que, por sinal, afetam três países do quarteto das potências regionais históricas (Síria, Iraque e Irã).

O que as Novas Rotas da Seda propõem é uma integração econômica ampla e interconectada, abrangendo um território que vai desde o Leste Asiático até o Leste do Mediterrâneo, passando pela Ásia Central, Irã, Iraque e Síria. Da mesma exata maneira que as Antigas Rotas da Seda. Não é de admirar que os interesses do Partido da Guerra sintam-se tão perturbados com essa real "ameaça" de paz. 

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