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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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Sobre Matrix e Red pill: trogloditas não entendem Matrix

Pílula vermelha (red pill) e pílula azul (blue pill) (Foto: Reprodução/Filme Matrix)
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 Não sou daqueles que entrou numa onda de que Matrix seria um novo Manifesto comunista, mas obviamente, ver um movimento de trogloditas e neandertais vangloriando-se de ter tomado a pílula vermelha, e de serem outsiders e que, agora, apenas eles veriam a realidade, acabou por mover-me a escrever algumas linhas. Tem horas que ficamos em dúvida se eles conseguem ser idiotas assim mesmo, sozinhos, ou se eles buscam “ajuda aos universitários”. Porque, efetivamente, é de uma burrice e uma estupidez cavalar chamar um movimento machista misógino patriarcal de red pill (pílula vermelha); só demonstra a indigência intelectual de uma direita que, em parte, pretende-se outsider.

 Matrix padece de um problema de interpretação, em geral. Ou é superestimado e visto como um filme único, cheio de mensagens cifradas, e que seria um novo tipo de Manifesto Comunista (e sim, tanto gente da direita conservadora, em 1999, ficou muito assustada com o filme, como teve gente da esquerda chorando e cantando a Internacional ao vê-lo), ou é subestimado. Sim, Matrix padece do problema de todas as superproduções hollywoodianas, o exagero de efeitos especiais (necessários no caso para o tipo de filme) e de sequências de ações alucinantes, faz com que a atuação dos atores e os diálogos se tornem coisas menores e desinteressantes, para quem está conectado a uma outra recepção estética de cinema mais artística e de conteúdo.  

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 Mas, farei uma defesa de Matrix, ao contrário do que os imbecis do Red Pill pensam, Matrix está longe de ser um filme de ação sem conteúdo, um tipo de DC ou Marvel, não é um filme de heróis, ou um metaverso, é (em que pese ser, antes de tudo, um filme da indústria cultural e que tem como objetivo arrecadar centenas de milhões de dólares), apesar disto, um filme extremamente crítico e que só pode ser entendido se a pessoa tiver um mínimo de letramento político e filosófico (coisa que os neandertais do tal movimento red pill) não tem.

 Para quem nunca assistiu, vou tentar fazer uma pequena e não longa resenha sinóptica. Tomas Anderson é um hacker que se vê atormentados por sonhos que põem em dúvida a própria realidade. Convidado por um casal de amigos (a mulher no casal tem uma tatuagem de coelho branco) ele conhece Trinity e acaba conhecendo Morpheus. Tentando resumir o máximo possível, para quem não viu o filme, Morpheus diz a Neo que ele não vive na realidade, mas num mundo de ilusão projetado por máquinas, e dá a ele a opção de escolher, se tomar a pílula azul, continuará a viver naquela realidade projetada feliz e sem preocupações, se tomar a pílula vermelha, começará a entender a realidade como ela é. Tomas Anderson prefere a pílula vermelha, aí ele desperta conectado por cabos a uma cidade de máquinas. Ele é desconectado e resgatado pelos humanos da resistência. A Matrix é uma realidade virtual, no qual as máquinas são alimentadas pelo calor que vem dos humanos, que são conectados a ela e vivem, cada um, sobre uma realidade virtual feliz projetada pelo programa chamado Matrix.

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 O objetivo do texto não é fazer uma sinopse ou o resumo do filme, mas discutir alguns engajamentos filosóficos dele, que, obviamente, não seriam visíveis aos neandertais, metidos a outsiders, do tal movimento red pill. Tanto eles não entenderam a metáfora, que eles seriam, no caso da referência à Matrix, os guardiões do programa, defendendo coisas como o patriarcado, a hegemonia dos homens, a castidade e outras ideologias projetadas pelo próprio sistema.

 Matrix é bem mais que um filme de ação, a partir dele se pode projetar uma série de hipertextos e interpretações, talvez mais interessantes que o próprio filme, mas que sim, só são possíveis, porque o filme tem esta pegada filosófica. A primeira referência é ao próprio Lewis Carrol, e Alice no país das Maravilhas. Ainda que na vida privada, Carrol fosse um conservador, o livro dele não é revolucionário somente na forma, mas também no conteúdo, as críticas ao absolutismo, escancaradas na loucura da rainha de copas, levaram a centenas de obras sobre o conteúdo subjacente de Alice. Mas não é a única e nem a principal referência de Matrix. Impossível não pensar em 1984, do revolucionário comunista George Orwell. Aliás, saiamos em defesa de Orwell, muitos restringem-se ao Orwell de A revolução dos bichos (crítica sagaz e destrutiva ao stalinismo) e reduzem seu livro, 1984, a uma obra da Guerra Fria, que estaria destinada a ser uma crítica da URSS. A pobreza desta interpretação é cavalar, talvez o péssimo filme 1984, que não faz jus ao livro do camarada Orwell, tenha levado muita gente a esta recepção equivocada do livro. 1984 é uma profecia, uma sociedade alienada e controlada por uma superestrutura de informações sistemática chamada “Grande Irmão”, Big Brother, em que as sensações, os sentimentos, a personalidade, os objetivos, o sucesso, o fracasso, são controlados exatamente por esta estrutura.

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 1984 não, não é uma crítica ao socialismo, é outra coisa. Ele se antecipa à destruidora crítica à indústria cultural feita por Adorno e por Guy Debord (A sociedade do espetáculo) e dialoga com a visão desconsolada do anjo da história, de Walter Benjamin, e sua nostalgia revolucionária desalentada, diante de uma sociedade industrial desumanizada. Aliás, toda vez que vejo uma esquerda amestrada, sentada em frente à TV e assistindo o BBB da Rede Globo, eu fico imaginando se esta esquerda, que inclusive tece uma “crítica de esquerda ao BBB”, alguma vez leu ou entendeu Orwell. Matrix é muito mais Orwell que Lewis Carrol.  

 E as referências filosóficas e literárias não se extinguem aí. O questionamento de se a realidade é aquilo que parece pode parecer algo típico de uma mente esquizofrênica, para aqueles que se acostumaram a ter a “crença da realidade”, como diria sorrateiramente Júlio Cortázar. Na verdade, a ideia de que não devamos duvidar da existência do mundo é uma crença cristã, situada no segundo cristianismo aristotélico da Contrarreforma. O mundo existe, porque ele é uma criação de Deus, não acreditar no mundo é não acreditar na obra divina. O segundo cristianismo do flogos, que vai conectar o Deus cristão mais ao moto-perpétuo aristotélico, e tentar reconectá-lo com o progresso renascentista, não pode desconfiar da obra divina, do qual somos parte integrante, como flogos. Irmão vento, irmão sol, irmã lua. Os movimentos medicantes e igualitários, a reabilitação da natureza, não mais como obra do diabo, estão neste segundo cristianismo, que, na verdade, ainda é a versão cosmológica atual da Igreja Católica, que aí pode dialogar com o Big Bang.  

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 As concepções adâmicas de mundo não duvidam, apenas creem. Mas a concepção de mundo que temos tem uma história muito mais longa e muito mais conflitiva do que esta simplificação, que carregamos como filosofia do mundo, sem nunca a questionarmos. O filme dialoga diretamente com o sensualismo ou o sensorialismo inglês, pós cartesiano, que é fundamental no processo imanentista de conhecimento. Na sua versão mais radical, com Berkeley e Hume, o sensualismo chega a desconfiar da realidade, na verdade, Berkeley, um conservador radical, chega ao solipsismo, a ideia de que a realidade e a matéria nada são mais que o sonho que sonhamos inspirados por Deus, e que a matéria é reflexo dele, numa inversão idealista do mundo (qualquer correlação com o mundo virtual da Matrix, sonho projetado por máquinas) não é mera coincidência. Hume não chega a estes extremos, mas não é ideia deste pequeno ensaio discutir a relação intricada entre sensações e realidade e importância mesmo de Hume para a modernidade.

 O que temos que reter, é a importância destes críticos da realidade para o progresso do entendimento humano. Não é possível fazer ciência sem o mínimo de ceticismo. Locke, caminha no rumo contrário, e prega que o ser humano é uma tábula rasa, um quadro branco, cujo conhecimento todo é ligado ao empirismo, a uma relação com o mundo. Podem parecer antagônicas as posições de Locke versus Hume e Berkeley, sob um determinado ponto de vista são, de outra feita, são todas considerações sobre o método da verdade, das relações entre o conhecimento e a materialidade da vida, que se estabelecem todas sob o cogito ergo sum cartesiano.  

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 Descartes não descobriu ou inventou o “Penso, logo existo”, na verdade, o pensador católico trabalha em cima de uma proposição de Santo Agostinho, “Duvido, logo existo”. Estas proposições são essenciais. Santo Agostinho afasta qualquer forma de ceticismo sectário, que duvide, inclusive, da existência. Se duvido, existo, é uma proposição incontestável. Aliás, é uma proposição materialista, porque, para duvidar, necessito existir, ou seja, a existência precede a essência. Um postulado materialista do patriarca do cristianismo.  

 Descartes trabalha numa outra direção, católico honesto, mas intelectual honesto, Descartes vê os furacões do Renascimento, do Protestantismo, e busca um espaço sólido para a fé. O “Creio porque é absurdo”, de Tertualiano, não tinha mais espaço, num mundo em convulsão e no qual a Igreja tinha perdido o monopólio do saber para universidades laicas. O Cogito é uma busca da prova da existência de Deus. Senão, vejamos. O que eu posso afirmar da existência? A única coisa que possa afirmar é que eu existo. Penso, logo existo, para pensar, tenho que existir. Se existo, alguma razão existe, mesmo que seja a minha. Se a minha razão existe, a Razão existe, não pode existir a minha razão senão existe a Razão. Se existe uma razão, posso pensar num ser racional perfeito. Este ser racional perfeito só pode ser Deus.

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 Sucesso! Descartes provou a existência de Deus! Então porque não há uma estátua de Descartes em cada igreja e ele não foi canonizado, com o dia de São Descartes sendo o dia mais importante do calendário católico? Vamos devagar com o andor que o santo é de barro, e nem é santo. Por mais que Descartes fosse um católico honesto, e que morreu fazendo confissão e pedindo a extrema unção, o cogito ergo sum abala e muito o credo católico e cristão, mas, por que? Primeiro porque a prova da existência de Deus ou de qualquer deus é meramente conceitual. Posso pensar num círculo perfeito? Posso. Mas círculos perfeitos existem? Só na matemática conceitual, não no mundo real. Posso pensar na existência do saci? O saci existe? Assim, a prova da existência de Deus vira na contraprova da sua inexistência.

 Em segundo lugar, a exigência da Razão como prova da existência de Deus, o cogito ergo sum no lugar do 'Creio porque é absurdo' ('Credo quia absurdum est'), abre uma fenda na crença. Se Deus é a razão, em que lugar se colocam os milagres? E, se Deus é racional, tudo que á racional é de Deus, incluindo a Ciência, é tudo que é irracional, superstição, milagres, indulgências, é do diabo. A Igreja Católica sinalizou o perigo e proibiu Descartes de falar e colocou seu pensamento no index proibitorum da Inquisição. Com Descartes o Saber e a Ciência foram divinizados, a dúvida e o Logos retomaram seu lugar, e o argumento de autoridade passa a não ser aceito. O pensamento |ocidental sofre uma fratura definitiva e o campo do saber separa-se definitivamente da fé. Não é possível entender nem os sensualistas ingleses, nem Kant e nem Spinoza sem esta fratura. A ideia kantiana da separação entre a Razão Pura e a Razão Prática segue esta linha cartesiana, e não é possível pensar a Ética de Spinoza, de um Deus ateu, aristotélico, sem este movimento prévio. A estrada para o imanentismo está aberta, o caminho pedregoso e tortuoso e sinuoso, cheio de abalos sísmicos, que vai até Hegel e Marx, passa por ele.

 Mas voltando à Matrix e a Orwell, este ceticismo filosófico que chega a colocar em dúvida a existência do mundo, não é um caminho solipcista berkeyliano em Matriz. 1984 é uma referência bem melhor. A Matrix é uma estrutura de dominação totalitária. É possível inclusive fazer uma outra referenciação e pensar o mal estrutural absoluto de Hannah Arendt. O mal como estrutura introjetada que se torna um bem (pílula azul). O filme pode ser interpretado melhor numa linha imanentista que abre uma perspectiva inclusive marxista, na questão das superestruturas de pensamento, que também são estruturas. A verdade, em que pese a tese 2 de Marx –  “A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica” – é também uma estrutura de dizer a verdade (Foucault).

 Aliás, vamos abrindo mais parênteses neste ensaio que parece ter vida própria e se alonga mais do que deveria. A ideia de Foucault de que a verdade é uma estrutura coercitiva de dizer a verdade é válida e tem indubitavelmente uma gênese marxista imanentista na ideia de superestrutura. A verdade é sempre um sistema em disputa. Aliás, Marx inaugura este dizer, ao expor que toda ideologia é sempre uma visão invertida do mundo (nunca o próprio mundo), incluído aí o próprio marxismo. A tese 2 não padece de um empirismo mecanicista, a práxis é esta relação aproximativa entre o dizer e o mundo, no qual o mundo é o espaço da sua terrenalidade. Na dialética marxista nenhuma ideia é eterna ou tem vida própria fora de um sistema. Nisto, na verdade, Marx e Foucault concordam. A falha da antropologia da verdade de Foucault é retirar a terrenalidade da verdade. A prova do pudim é comê-lo. Por mais frugal que pareça, ao tirar a verdade da terrenalidade e da práxis, Foucault reduz sistemas reais a estruturas que giram em falso, e como os jovens hegelianos, acaba retomando a crítica da crítica crítica.

 A Matrix é uma estrutura coercitiva de poder. Você pode situar o domínio absoluto das máquinas tranquilamente no atual capitalismo monopolista do século XXI e seu sistema intricado de verdade monopolizada pelos sistemas de comunicação, ampliado pela própria internet (até as fissuras no sistema estão no filme, já que Neo é um hacker). Assim, não, nossos idiotas red pills não entenderam o filme. O filme, por mais que seja um produto vendável da indústria cultural, tem uma intertextualidade que está longe de ser propaganda de machos instáveis feridos com medo, que eles tem, das mulheres.  

 Eles, os red pills (na verdade blue pill) se relacionam facilmente com a teoria da “Cabeça de Medusa” de Freud e a sexualidade masculina frágil. Freud, outro gigante falsamente assassinado pela modernidade, usa da alegoria da cabeça de Medusa não na forma literal do feminicídio, mas o relaciona com o terror da puberdade que os meninos sentem da figura da vagina: a cabeça decepada da medusa, o corte, sendo a vulva, com os cabelos sendo os pelos pubianos, e o sangue a menstruação. O terror e o medo e o encantos das primeiras experiências sexuais e o trauma que provoca em alguns, o medo de castração, o pavor da vagina dentada. O pavor que estes homens frustrados de meia idade sentem pelo sexo feminino os encaixaria facilmente no índice deste texto de Freud, e o relacionamento do texto com o pavor ao sexo, a misoginia e, inclusive, a ejaculação precoce e impotência sexual não mecânica, mas relacionada a este medo.

 Em resumo, o movimento red pill não consegue nenhuma analogia real com o filme Matrix. Além da impotência sexual latente, do medo que eles sentem das mulheres, de serem seres homens pequenos e frustrados diante da potência feminina, são apedeutas. São ignorantes. Usam um filme que não entenderam, como falsa analogia para atacar mulheres.

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