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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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Um momento Saigon no Hindu Kush

O Talibã vem avançando aceleradamente no Vardak Ocidental, capturando com facilidade as bases do ENA. Esse é o prelúdio para o ataque a Maidan Shar, a capital da província

(Foto: Reprodução)
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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And it’s all over
For the unknown soldier
It’s all over
For the unknown soldier

The Doors, The Unknown Soldier

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Comecemos com alguns fatos estarrecedores diretos da linha de frente. 

O Talibã está de vento em popa. No início desta semana, seu setor de Relações Públicas afirmou que eles controlam 218 dos 421 distritos afegãos – e que capturam outros mais a cada dia que passa. Dezenas de distritos são contestados. Províncias inteiras do Afeganistão estão basicamente perdidas para o governo de Cabul - que se vê de fato reduzido à administração de algumas cidades esparsas e sitiadas. 

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Já em 1º de julho, o Talibã anunciou que controlava 80% do território afegão. Isso é muito próxima à situação de 20 anos atrás, apenas algumas semanas antes do 11 de setembro, quando o Comandante Masoud disse a mim, no vale de Panjshir, enquanto preparava uma contra-ofensiva, que o Talibã dominava 85% do território.

Seu novo enfoque tático funciona à perfeição. Em primeiro lugar, eles apelam diretamente aos soldados do Exército Nacional Afegão (ENA), convidando-os a se renderem. As negociações correm sem problemas – e conseguem chegar a acordos. Alguns milhares de soldados já se juntaram ao Talibã sem que um único tiro fosse disparado. 

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Os cartógrafos não estão conseguindo subir atualizações depressa o bastante. Os acontecimentos vêm rapidamente se configurando como um caso exemplar de colapso de um governo central no século XXI. 

O Talibã vem avançando aceleradamente no Vardak Ocidental, capturando com facilidade as bases do ENA. Esse é o prelúdio para o ataque a Maidan Shar, a capital da província. Se eles conseguirem controlar o Vardak, estarão literalmente nos portões de Cabul. 

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Após capturar o distrito de Panjwaj, o Talibã estará a pouca distância de Kandahar, fundada por Alexandre o Grande em 330 A.C., a cidade onde um certo mulá Omar – com alguma ajuda de seus amigos do ISI, a agência de inteligência militar do Paquistão - deram início à aventura do Talibã em 1994, que acabou por levar à tomada do poder em Cabul, em 1996.  

Grande parte da província de Badakhshan – de maioria tajique, não pashtun - caiu após apenas quatro dias de negociações, com umas poucas escaramuças de entremeio. O Talibã chegou mesmo a capturar um posto avançado no alto das montanhas, muito próximo a Faizabad, a capital do Badakhshan.  

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Vi de perto a fronteira tajique-afegã quando viajei pela rodovia Pamir, em fins de 2019. É bem possível que o Talibã, seguindo trilhas de montanha do lado afegão, logo venha a alcançar a lendária e desolada fronteira com Xinjiang, no corredor Wakhan.

O Talibã, além disso, está prestes a avançar sobre Hairaton, na província de Balkh. Hairaton fica na fronteira afegã-uzbeque, o local da historicamente importante Ponte da Amizade, sobre o Amu Darya, pela qual o Exército Vermelho saiu do Afeganistão, em 1989. 

Os comandantes do ENA juram que a cidade está agora protegida de todos os lados por uma zona de segurança de cinco quilômetros. Hairaton já atraiu dezenas de milhares de refugiados. Tashkent, a capital uzbeque, não quer que eles cruzem a fronteira. 

E não se trata apenas da Ásia Central: o Talibã já avançou até os limites urbanos de Islam Qilla, que faz fronteira com o Irã, na província de Herat, e que é o principal ponto de checagem do movimentado corredor de Mashhad.  

O quebra-cabeça tajique

As extremamente porosas e geologicamente surpreendentes fronteiras montanhosas entre o Tajiquistão e o Afeganistão continuam sendo o ponto mais sensível. O presidente tajique, Emomali Rahmon, após um sério telefonema a Vladimir Putin, ordenou a mobilização de 20 mil reservistas, que foram enviados para a fronteira. Rahmon também prometeu apoio humanitário e financeiro ao governo de Cabul.   

O Talibã, por seu lado, declarou oficialmente que a fronteira é segura e que ele não tem a menor intenção de invadir o território tajique. No início desta semana, até mesmo o Kremlin anunciou, em termos  bastante crípticos, que não planeja enviar tropas ao Afeganistão.

Há forte suspense quanto ao que irá ocorrer no final de julho, uma vez que o Talibã anunciou que irá apresentar uma proposta de paz por escrito a Cabul. Há a forte possibilidade de essa proposta representar uma intimação à rendição de Cabul - e à total transferência do controle sobre o país. 

O Talibã parece estar sendo movido por um ímpeto irresistível - em especial porque os próprios afegãos ficaram estarrecidos ao ver o "protetor" imperial, após quase duas décadas de ocupação de fato, deixarem a base aérea de Bagram no meio da noite, fugindo às pressas como ratos.

Compare-se isso à avaliação de analistas sérios como Lester Grau  explicando a partida dos soviéticos três décadas atrás:
Quando os soviéticos deixaram o Afeganistão em 1989, eles o fizeram de forma coordenada, deliberada e profissional, deixando para trás um governo em pleno funcionamento, forças armadas mais organizadas e medidas econômicas e de consultoria que garantiam a viabilidade continuada do governo. A retirada pautou-se em um plano coordenado nas frentes diplomática, econômica e militar que permitiu a retirada ordeira das forças soviéticas e a sobrevivência do governo afegão. A República Democrática do Afeganistão (RDA) conseguiu se manter apesar do colapso da União Soviética, em 1991. Só então, com a perda do apoio soviético e o aumento do ativismo mujahideen (guerreiros sagrados) e do Paquistão, a RDA resvalou para a derrota, em abril de 1992. O esforço soviético de bater em retirada ordeira foi bem executado e pode servir de modelo a outros desengajamentos por parte de países em situações semelhantes.

Quando se trata do Império Americano, Tácito volta a se aplicar: "eles saquearam o mundo, desnudando a terra em sua fome... eles são movidos a ganância se o inimigo é rico; a ambição, se ele é pobre. Eles devastam, eles massacram, eles se apoderam usando de falsos pretextos, e a tudo isso exaltam como sendo a construção de um império. E quando em sua esteira nada resta que não um deserto, eles chamam a isso de paz".  

Na esteira do Hegêmona, os desertos chamados de paz, em graus variados, incluem Iraque, Líbia, Síria - que, por acaso, abrigam desertos geológicos - e também os desertos e as montanhas do Afeganistão. 

O caminho de rato da heroína no Afeganistão 

Parece que a Rua dos Think Tanks, no D.C., localizada entre os Circles Dupont e Thomas, ao longo da Massachussets Avenue, não  fez direito o dever de casa sobre o pashtunwali – o código de honra  pashtun – nem sobre a vergonhosa retirada do Império Britânico de Cabul.

Mesmo assim, ainda é cedo para saber se o que vem sendo descrito como a "retirada" norte-americana do Afeganistão significa o fim definitivo da presença do Império do Caos. Em especial porque não se trata, de modo algum, de uma "retirada", e sim de um reposicionamento - com o acréscimo de elementos de privatização.

"Tropas norte-americanas" de pelo menos 650 homens darão proteção à vasta embaixada em Cabul. Some-se a isso talvez 500 homens do exército turco - o que significa a OTAN - para proteger o aeroporto, além de um número não declarado de "terceirizados", ou seja, mercenários, mais um número não especificado de Forças Especiais. 

O chefe do Pentágono Lloyd Austin apresentou o novo acordo. A embaixada militarizada recebeu o nome de Forças Afeganistão-Avante. Essas forças terão o "apoio" de uma nova representação  afegã em Qatar.

A principal cláusula é que continua intacto o privilégio especial de o Hegêmona bombardear o Afeganistão sempre que sentir vontade. A diferença está na cadeia de comando.  Em vez do General Scott Miller, até agora o mais alto comandante norte-americano no Afeganistão, o Bombardeador-em-Chefe será o General Frank McKenzie, chefe da CENTCOM. 

Os bombardeios futuros, portanto, partirão principalmente do Golfo Pérsico - o que o Pentágono amorosamente descreve como "capacidade além do horizonte". É da maior importância que o Paquistão tenha oficialmente se recusado a participar, embora, no caso de ataques com drones, terá que haver sobrevoo de território paquistanês no Baloquistão. O Tajiquistão e o Quirgistão também se recusaram a abrigar bases dos Estados Unidos. 

O Talibã, por seu lado, continua  imperturbável. O porta-voz Suhail Shaheen foi categórico ao afirmar que tropas estrangeiras que não tiverem se retirado até o prazo final de 11 de setembro serão vistas como - o que mais seria? - invasoras. 

Que o Talibã será capaz de firmar seu domínio não resta a menor dúvida, trata-se apenas de saber quando. O que nos leva a duas perguntas da maior importância:  

1.  Terá a CIA a capacidade de manter o que primeiramente Seymour Hersh e em seguida eu mesmo descrevemos como o caminho de rato da heroína no Afeganistão  que financia suas operações clandestinas?

2.  E se a CIA não conseguir supervisionar a produção dos campos de papoula de ópio no Afeganistão, e também coordenar os estágios seguintes do tráfico de heroína, para onde eles irão se mudar?

Todas as mentes pensantes de todo o Centro e Sul da Ásia sabem que o Império do Caos, por duas longas décadas, jamais se interessou em derrotar o Talibã ou em lutar pela "liberdade do povo afegão".

Seus principais motivos eram manter uma base avançada de importância estratégica em áreas vulneráveis das "ameaças existenciais" China e Rússia, e também do intratável Irã - tudo isso parte do Novo Grande Jogo; estar convenientemente posicionado para mais tarde explorar as enormes riquezas minerais do Afeganistão; e processar a heroína a partir do ópio para financiar as operações da CIA. O ópio foi um dos principais fatores da ascensão do império britânico, e até hoje a heroína continua sendo um dos maiores negócios sujos do mundo usados para financiar operações de inteligência suspeitas.

O que querem a China e a OCX 

Compare-se o que foi dito acima com o enfoque chinês. 

Ao contrário da Rua dos Think Tanks do D.C., os analistas chineses parecem ter feito seu dever de casa. Eles entenderam que a URSS não invadiu o Afeganistão, em 1979, para impor a "democracia popular" - o jargão da época - mas que havia de fato sido convidada pelo bastante progressista e reconhecido pela ONU governo de Cabul que, essencialmente, queria estradas, eletricidade, serviços de saúde, telecomunicações e educação.

Como esses elementos essenciais da modernidade não seriam oferecidos pelas instituições ocidentais, a solução teria que vir do socialismo soviético. Isso implicaria uma revolução social - uma questão complicada em uma nação islâmica profundamente religiosa - e, principalmente, o fim do feudalismo.

O contragolpe imperial do "Grande Tabuleiro de Xadrez" de Brzezinski funcionou porque conseguiu manipular os senhores feudais afegãos e sua capacidade de arregimentação - reforçada por verbas gigantescas (CIA, sauditas, serviços de inteligência paquistaneses) – para dar à URSS seu próprio Vietnã. Nenhum desses senhores fedais estava interessado na abolição da pobreza nem no desenvolvimento econômico do Afeganistão.

A China agora está partindo de onde a URSS parou. Pequim, que mantém contatos próximos com o Talibã desde inícios de 2020, deseja, essencialmente, estender o Corredor Econômico China-Paquistão (CECP) no valor de 62 bilhões de dólares, e um dos carros-chefes da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR), ao Afeganistão.  

O primeiro e importantíssimo passo será a construção da rodovia Cabul-Peshawar – que atravessa o passo de Khyber e a atual fronteira em Torkham. Isso significa que o Afeganistão irá se converter em membro de fato do CECP. 

O que temos aqui é integração regional em ação. Cabul-Peshawar será mais um nó do CECP, que já inclui a construção do ultra-estratégico aeroporto de Tashkurgan, na rodovia Karakoram, em Xinjiang, a apenas 50 quilômetros da fronteira paquistanesa e também próximo ao Afeganistão e ao porto de Gwadar, no Baloquistão.    
Em inícios de junho, uma reunião trilateral China-Afeganistão-Paquistão levou o Ministro das Relações Exteriores chinês a apostar incondicionalmente na "recuperação pacífica do Afeganistão". A declaração conjunta saudou o "proximo retorno do Talibã à vida política do Afeganistão" assumindo o compromisso de "ampliar os laços econômicos e comerciais".

Não há a menor possibilidade, portanto, de o Talibã, uma vez no poder, vir a recusar a iniciativa chinesa de construção de projetos de infraestrutura e energia voltados para a integração econômica regional, com a condição de eles manterem o país pacificado e não sujeito à turbulência jihadi do tipo ISIS-Khorasan –  capaz de se alastrar para Xinjiang.     

O jogo chinês é claro: os norte-americanos não devem exercer influência sobre o novo acerto de Cabul. Trata-se da importância estratégica do Afeganistão para a ICR – que se entrelaça com as discussões internas à Organização de Cooperação de Xangai (OCX) que, por sinal, foi fundada há duas décadas, e que há anos vem defendendo uma "solução asiática" para o drama afegão. 

As discussões no âmbito da OCX veem a imagem projetada pela OTAN, de um novo Afeganistão como um paraíso jihadi controlado por Islamabad, como nada além de tolices e pensamento desejante.    

Será fascinante assistir a como China, Paquistão, Irã e Rússia, e até mesmo a Índia, irão preencher o vácuo deixado pelo fim da era das Guerras Eternas no Afeganistão. É importante lembrar que todos esses atores, mais os centro-asiáticos, são membros plenos da OCX (e membro-observador, no caso do Irã). 

É plausível que Teerã venha a interferir nos possíveis planos imperiais de atacar o Afeganistão a partir de fora – seja por que motivo for. Em uma outra frente, ainda não está claro se Islamabad ou Moscou, por exemplo, ajudariam o Talibã a tomar a base aérea de Bagram. O que é certo é que a Rússia irá retirar o Talibã de sua lista de aparelhos terroristas.  

Levando-se em conta que o império e a OTAN - por intermédio da Turquia - não irão realmente se retirar, uma clara possibilidade futura seria uma pressão da OCX, aliada ao Talibã (o Afeganistão  também é membro-observador naquela organização) no sentido de proteger a nação em seus próprios termos e se concentrar nos projetos de desenvolvimento do CECP. Mas os primeiros passos parecem ser os mais difíceis: como formar um governo de coalizão nacional verdadeiramente sólido em Cabul.     

A história pode contar que Washington queria que o Afeganistão se tornasse o Vietnã da URSS. Décadas mais tarde, os Estados Unidos acabaram por conseguir seu próprio segundo Vietnã, repetido, desta vez, como uma farsa. A remixagem de um momento Saigon se aproxima a passos largos. Mais um estágio do Novo Grande Jogo na Eurásia está prestes a começar.

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