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Slavoj Žižek

Professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana (Eslovênia). Autor, entre outros livros, de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo).

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Uma “corrupção” necessária

"A mais perigosa ausência de liberdade é aquela que vivenciamos como liberdade", escreve o filósofo Slavoj Zizek

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Por SLAVOJ ŽIŽEK 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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A história de um trabalhador chinês migrante que traduziu um livro sobre Martin Heidegger, um filósofo alemão do século XX, do inglês para o mandarim, viralizou no mês passado. As pessoas comuns que estudam filosofia poderiam salvar o mundo?

Chen Zi nasceu no ano de 1990 em Jiangxi, no sul da China. Em 2008, depois de ser reprovado em suas avaliações, ele abandonou a universidade, onde estudava matemática, e passou a perambular pelo país por mais de uma década, trabalhando em fábricas para sobreviver.

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Apesar de ter que enfrentar exaustivas jornadas de 12 horas de trabalhos repetitivos e debilitantes, Chen, cuja verdadeira paixão sempre fora a filosofia, conseguiu aprender inglês e começou a ler Heidegger. Este ano, enquanto trabalhava em uma fábrica em Xiamen, ele concluiu, ao longo de quatro meses, a tradução para o chinês de Heidegger: uma introdução, livro escrito por um professor de filosofia norte-americano, Richard Polt. Tendo também concluído algumas outras traduções, ele perguntou na internet se alguém poderia ajudá-lo a publicá-las, pois lhe haviam dito que suas chances de encontrar um editor eram mínimas. Quando a mídia descobriu sua postagem, ele se transformou em um tema quente na internet.

Haveria algo de libertador em sua dedicação a Heidegger, ou trata-se apenas de uma falsa alternativa? É fácil imaginar a resposta marxista ortodoxa: trabalhadores na linha de produção não precisam de Heidegger como um antídoto; o que eles precisam é mudar as suas condições miseráveis de trabalho.

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Heidegger parece ter sido uma escolha muito ruim para Chen, e por razões óbvias. Após a publicação póstuma, em 2017, de suas anotações particulares nos Cadernos negros, não faltaram tentativas de excluí-lo da lista de filósofos a serem levados a sério, devido a seus laços nazistas e antissemitas.

No entanto, por este mesmo motivo, devemos insistir que Heidegger continua pertinente: mesmo quando o encontramos em seus piores momentos, associações inesperadas se abrem. Em meados dos anos 1930, ele disse: “Existem seres humanos e grupos humanos (negros, por exemplo, como os Cafres) que não têm história… não obstante, a vida animal e vegetal possui uma história milenar e plena de acontecimentos … no interior da região humana, a história pode estar ausente, como é o caso dos negros.” (“Cafre” era, no período do apartheid, um insulto étnico utilizado para se referir aos africanos negros na África do Sul).

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São frases estranhas, até mesmo para os padrões de Heidegger: quer dizer que animais e plantas possuem uma história, mas os “negros” não? “A vida animal e vegetal possui uma história milenar e plena de acontecimentos” – mas, certamente, não no sentido heideggeriano estrito de revelação histórica do ente. Além do mais, qual é, então, a situação de países como a China e a Índia, já que eles também não são históricos no sentido específico de Heidegger?

É isso, então? Devemos dispensar o caso de Grant Farred, um notório filósofo negro contemporâneo, nascido na África do Sul e que leciona na Universidade de Cornell, em Ithaca, Nova York, como um simples caso de mal entendimento?

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Seu pequeno livro, Martin Heidegger salvou a minha vida, foi escrito em resposta a um encontro racista. No outono de 2013, enquanto Farred varria folhas secas na parte externa de sua casa, uma mulher branca parou e lhe perguntou: “Você gostaria de ter outro emprego?”, obviamente o confundindo com algum jardineiro pago pela família que ela assumira residir naquela casa. Farred respondeu sarcasticamente: “Apenas se você puder equiparar o pagamento com o meu salário de professor na universidade de Cornell.” Para compreender o que ocorreu, Farred se voltou a Heidegger: “Heidegger me salvou porque me deu a linguagem necessária para escrever sobre raça de uma maneira que eu nunca havia escrito antes. Heidegger me permitiu escrever desta forma porque me fez pensar sobre como se pensa.”

O que ele encontrou tão útil em Heidegger foi a noção de linguagem enquanto “casa do ser” – não a linguagem abstrata e universal da ciência e da administração estatal, mas a linguagem enraizada em uma forma de vida particular, linguagem como o meio de uma experiência de vida sempre-única que nos revela a realidade de uma maneira historicamente específica. É fácil imaginar como tal posicionamento permite que um sujeito resista a ser engolido por um universo global de dominação tecnológica. No entanto, é esta a forma de lutar contra o que é frequentemente chamado de “americanização” das nossas vidas? Para responder a essa pergunta, precisamos pensar – e, como Farred aponta repetidamente, foi isso que ele aprendeu com Heidegger – mas não apenas pensar, pensar sobre como se pensa.

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Que fique claro, não sou um heideggeriano. O que eu sei, porém, é que vivemos em um momento único que abre caminho para a urgência de se pensar. Não se trata de um tempo de paz que oferece a oportunidade de abster-se confortavelmente em reflexões sobre o mundo, mas de um tempo em que nossa sobrevivência enquanto humanos é ameaçada por diferentes lados: o prospecto de total controle digital que planeja invadir nossas mentes (“cérebro conectado”), infecções virais fora de controle, os efeitos do aquecimento global. Somos todos afetados por essas ameaças – e as ditas “pessoas comuns” o são ainda mais do que as outras.

Portanto, devemos celebrar milagres como aquele envolvendo Chen Zi. Eles demonstram que a filosofia é muito mais do que uma disciplina acadêmica – ela é algo que pode, subitamente, interromper o andamento de nossa vida cotidiana e nos deixar perplexos.

O filósofo francês Alain Badiou abre seu livro A vida verdadeira com a afirmação provocativa de que, de Sócrates em diante, a função da filosofia é “corromper a juventude”, aliená-la da ordem político-ideológica predominante. Hoje, tal “corrupção” é necessária, especialmente no Ocidente liberal e permissivo, onde a maioria das pessoas não tem sequer consciência da maneira como o establishment as controla precisamente nos momentos em que elas parecem ser livres. Afinal, a mais perigosa ausência de liberdade é aquela que vivenciamos como liberdade.

Um populista “livre” que destrói a densa rede social de costumes é realmente livre? Existe uma famosa frase dita por Mao Tsé-Tung nos anos 1950: “Que flores de todos os tipos desabrochem, que diversas escolas de pensamento se enfrentem!” Hoje, devemos dizer: Que Chen Zis de todos os tipos estudem filosofia – pois apenas assim encontraremos uma saída para nossa difícil situação.

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