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Mario Vitor Santos

Mario Vitor Santos é jornalista. É colunista do 247 e apresentador da TV 247. Foi ombudsman da Folha e do portal iG, secretário de Redação e diretor da Sucursal de Brasilia da Folha.

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Zé Celso buscava revolucionar o Brasil pela força do teatro

Contra os limites da fictícia individualidade pequeno-burguesa, a vontade do encenador submetia selvagemente o público arrebatando-o com espetáculos fascinantes

Zé Celso Martinez (Foto: Paulo Pinto/Agência PT)

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Zé Celso Martinez Corrêa trabalhava na criação do espetáculo baseado no livro A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albers, para transcriar a mitologia yanomami no espaço do teatro Oficina.

Aos 86 anos, o diretor estava absorvido pelo trabalho no apartamento no bairro do Paraíso, onde morava, quando tudo pegou fogo.

O mais universal dos artistas brasileiros montou seu terreiro teatral como um foco guerrilheiro amoroso entranhado no bairro do  Bixiga, de cujo solo árido e devastado pela floresta de concreto o artista teimava em haurir sua fé cênica. 

Ali onde o massacre  urbano desfigurava toda referência humana, Zé Celso implantou a mais visceral usina de teatro. Um experimento de mais de seis décadas cuja forma e sentido foram  mudando sempre até assumir uma feição política particular.

Como Oswald de Andrade, uma de suas referências, morador do Bixiga no final da vida, Zé Celso abriu-se para  devorar todas as influências, consolidando a sua maior convicção, a de que o teatro era a maior de todas as coisas que existem, a origem e o fim de tudo, capaz de vencer as barreiras do medo, da moral, da religião, da identidade individual e do conservadorismo. 

A demolição da ilusão teatral da quarta parede, a da separação entre palco e plateia, que foi o caminho do Oficina nos anos 60, virou a orientação seguida primeiro por Flavio Império e depois por Lina Bo Bardi para conceber o revolucionário teatro-passarela da rua Jaceguai.

O fim da quarta parede era apenas a expressão de uma ambição muito estética e ética maior.

Segundo esse princípio fundador, Zé Celso queria que o teatro fosse quebrando todos os limites para encarnar uma força real capaz de se fundir com tudo e se tornar ele mesmo o fundamento da própria vida como ela é.

Queria que suas peças se transfornassem em movimento, passeata, manifesto para mover uma força em que arte e vida fossem uma coisa só, para exterminar a ordem burguesa, a mentalidade passiva e conservadora. 

Esse teatro ousaria sair às ruas para tomar  concretamente o poder político e comandar o próprio Estado segundo novos valores, que ele denominou a tragicomédiaorgia, associando significados carnavalizados bem brasileiros à selvageria do teatro grego ancestral.

Ele invocava o poder do sacrifício presente também num cristianismo primitivo que trouxe de Araraquara  onde nasceu.

Assim, Zé Celso viveu para satisfazer a ânsia de levar o coro deste seu teatro, gestado no "sertão" do Bixiga, nutrido pelo espírito do vizinho Teatro Brasileiro de Comédia e por Cacilda Becker, ao poder político real, em São Paulo, Brasília, Moscou ou Berlim. 

Sua convicção era de, num transe teatral tão poderoso e idêntico aos transes e reviravoltas políticas e dramáticas que presenciamos todos os dias na história, quebrar todas as barreiras artisticas e físicas. Nesse mundo, em que tudo se funde,  talvez o próprio céu em queda se fundiria à terra. 

Haveria uma ciclópica recriação do universo, como a descrita pelo próprio Hesíodo na Teogonia grega. Zé Celso habitava essas dimensões e as encenava lindamente, na  expressão de uma infinita vontade de poder, para a qual encontrou abrigo na obra do filósofo Friedrich Nietzsche.

Deste extraiu a ambição de destruir e fundir tudo, teatro, coro, filosofía, música, tragédia ancestral, ritual de  estraçalhamento purificador convertendo fiéis e infiéis para um local além do bem e do mal, onde o poder e o capitalismo são a ascensão dos bandidos ao comando do estado.

Contra os limites da fictícia individualidade pequeno-burguesa, a vontade do encenador  submetia selvagemente o público arrebatando-o com espetáculos fascinantes, excessivos, pungentes, evocativos onde tudo podia aparecer com crueza e poesia: o sacrifício, o falo, a masturbação, a tortura, a malandragem e o renascer desdobrando-se em peças que de, uma intenção inicial, se transformam em trilogias, tetralogias e sagas sempre muito brasileiras, mesmo quando baseadas em clássicos de outros tempos e culturas. Uma cornucópia.

Houve quem detestasse por julgá-las anárquicas demais, excessivas, escrachadas e irreverentes aos clássicos. Gerações, porém, se renderam à força avassaladora do xamanismo ao mesmo tempo sublime e baixo do Oficina e seu diretor. Alguns simplesmente assistiram pela primeira vez e jamais conseguiram se recuperar, arrebatados pelo gozo e mistérios tão racionais que envolvia tudo em música, consciência cênica, política e beleza.

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