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Oásis

Caça enlatada: Quando leões são criados para serem mortos

Na África do Sul existem mais leões em cativeiro do que em estado selvagem. Muitos desses animais são criados especificamente para serem abatidos por turistas ricos da Europa e da América do Norte nos programas batizados de "indústria da caça enlatada"

Na África do Sul existem mais leões em cativeiro do que em estado selvagem. Muitos desses animais são criados especificamente para serem abatidos por turistas ricos da Europa e da América do Norte nos programas batizados de "indústria da caça enlatada" (Foto: Gisele Federicce)
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Por: Patrick Barkham, da África do Sul
Fonte: Jornal The Guardian

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O jornalista britânico Patrick Barkham visitou uma fazenda de criação de leões no North Eastern Free State, África do Sul, para investigar a relação entre a reprodução de leões em cativeiro e a assim-chamada "indústria da caça enlatada". A reportagem de Barkham é completada por fotos. A ela acrescentamos um vídeo que mostra esses "caçadores" em plena ação. De forma covarde e debochada, apenas para se divertir, eles matam animais habituados à presença humana desde que nasceram: leões que nunca conheceram a vida selvagem, e que foram soltos de seus recintos horas antes da carnificina.

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Criada no cativeiro, esta leoa acaba de ser morta a tiros. Sua cabeça será cortada e congelada, seguindo para a Inglaterra, onde será empalhada e pendurada na parede da sala do caçador.

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Eles são adoravelmente bonitos, com um pelo marrom-dourado tão suave que parece escapar por entre meus dedos, como se fosse farinha. Somente quando um dos filhotes de nove semanas de idade agarra meu braço, usando seus dentes para brincar, é que me lembro de que ele é um leão, um animal selvagem. Estes quatro filhotes, no entanto, não são selvagens. Eles nasceram e são mantidos em um pequeno rancho, no meio de um campo desolado, situado cerca de 200 quilômetros ao sul de Johanesburgo. Muitos turistas param para acariciar os filhotes, mas não se aventuram sobre a colina onde os donos do rancho mantêm quase 50 outros leões, entre jovens e adultos, e dois tigres, todos eles presos no interior de cercados.

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Mais dois caçadores sorriem, contentes, após matarem um leão manso e pendurarem sua carcaça no galho de uma árvore

O Rancho Moreson é apenas uma das mais de 160 fazendas de criação legal de grandes felinos na África do Sul. Há agora mais leões em cativeiro (mais de 5 mil) no país do que leões soltos e selvagens (cerca de 2 mil). Os donos dessas fazendas dizem não caçar nem matar os seus leões. Mas membros de ONGs e de associações protetoras dos animais afirmam que eles costumam vender seu plantel quase inteiro para serem mortos e transformados em troféus por caçadores da Europa e da América do Norte, e também por importadores da Ásia, onde partes dos seus corpos são usadas na medicina tradicional. Esse abate fácil de animais em áreas cercadas é chamado de "caça enlatada", talvez porque caçar assim seja quase tão fácil quanto pegar um doce na bandeja.

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Após a matança, dois caçadores posam para a clássica foto com a vítima a seus pés

As coisas se passam assim: Um leão totalmente crescido, porém nascido e criado em cativeiro, é retirado do seu cercado e colocado numa área fechada onde, indiferente ao que está acontecendo, vagueia durante algumas horas antes de ser morto por um homem que empunha uma espingarda, um revolver ou até mesmo uma besta que atira flechas. Quase sempre, o massacre é feito com toda a segurança para o caçador, que permanece de pé na carroçaria do caminhão. Para sentir o prazer de matar, o cliente paga uma soma que varia entre 5 mil e 25 mil libras esterlinas, e toda a transação é completamente legal.

Esses dois jovens leões domesticados foram treinados para simular agressividade diante de turistas

O passeio do leão

Com outros turistas e excursionistas procedentes de Johanesburgo, pago a soma muito mais modesta de 3,50 libras para simplesmente abraçar alguns leões em Moreson. Esse rancho, dedicado à criação de animais em cativeiro, em seu website convida os turistas a usufruir da caça enlatada de vários animais, não apenas leões, mas também gazelas blesbok – símbolo nacional da África do Sul, búfalos e crocodilos, entre vários outros. Depois de um abraço com os filhotes, participo de um "game drive" através da propriedade de 2 mil hectares. Passamos por rebanhos de gnus, de antílopes azuis, antílopes vermelhos, de elandes. O caminhão para, os animais nos veem, mas não fogem. De acordo com os guias, eles parecem saber quando os visitantes não estão carregando armas para matá-los.

Na outra extremidade da propriedade existe uma casa de fazenda abandonada e, ao redor dela, rondam grandes felinos letárgicos que parecem passar todo o tempo sondando o próprio futuro. Um par deles está bem à frente de nós. São dois tigres que parecem bem contentes destruindo carcaças de frango que apodrecem rapidamente sob o calor do sol africano.

Pela juba, ainda curta, ve-se que esse jovem leão tem pouco mais de um ano de idade. Manso, foi morto antes de chegar à fase adulta, para satisfazer a sanha de um caçador

Os animais parecem bem cuidados. Mas Cathleen Benade, assistente da fazenda que está desenvolvendo um trabalho de fotografia da vida selvagem, dedicada especialmente aos filhotes, revela que eles foram tirados de suas mães apenas uma hora após o nascimento e entregues a seres humanos que os alimentam com mamadeira durante as primeiras oito semanas de vida.

Depois de escurecer, trancafiados em seus cercados localizados logo abaixo do bar do rancho, os leões rugem continuamente. Na varanda do bar, Maryke Van der Merwe, filha do proprietário do rancho, explica que, se os filhotes não fossem separados de sua mãe, eles morreriam de fome, pois a mãe não tinha leite. Informa também que a mãe leoa não fica angustiada pela perda dos filhos. "Ela os fica procurando durante algumas horas, mas depois de um ou dois dias acho que ela nem se lembra mais deles", diz a jovem, que é também gerente do estabelecimento.

Estes dois filhotes, criados com mamadeira, nunca chegarão a se reproduzir e a conhecer a liberdade: serão mortos antes disso acontecer

Mas especialistas do bem-estar animal discordam dessa opinião. Os criadores removem os filhotes para que as leoas paridas entrem de novo no cio e se tornem férteis, produzindo mais uma safra de filhotes. Acontece que para os jovens leões, que na vida normal desmamam aos seis meses de idade, a perda do colostro fundamental – o primeiro leite – pode causar sérios problemas de saúde. "Esses criadores dizem que removem os filhotes porque a mãe não tinha leite, mas eu nunca vi isso acontecer na natureza", diz Pieter Kat, biólogo evolucionista que já trabalhou com leões selvagens no Quênia e em Botswana. "Leões e tigres em cativeiro podem matar os filhotes porque eles estão sob enorme estresse. Mas a principal razão de os criadores separarem os jovens de suas mães é porque eles não querem que as crias dependam delas. A separação reconduz rapidamente a fêmea adulta a uma condição de reprodução. Assim sendo, tudo se passa como se fosse a cadeia de montagem de uma fábrica de automóveis".

Armas e equipamentos modernos são usados por esta caçadora para localizar e matar um animal

A África do Sul desfruta de uma forte tradição de caça, mas algumas pessoas expressam pouco entusiasmo pela forma de "caça enlatada", considerando isso um rebaixamento desse esporte. O fato é que ainda hoje é legal e possível trazer uma carcaça de leão na volta à Grã-Bretanha ou a qualquer outro lugar da Europa ou da América do Norte como um troféu, e grande parte dessa demanda vem do exterior. Grande número de caçadores é atraído pela garantia de sucesso e pelo preço cobrado: um leão selvagem abatido a tiros em um safári na Tanzânia pode custar 50 mil libras esterlinas, muito dinheiro cobrado em comparação com as 5 mil libras gastas para se matar um animal criado em cativeiro na África do Sul. Há cinco anos o governo sul-africano proibiu a caça enlatada, exigindo que o animal criado em cativeiro possa viver livremente na savana durante dois anos antes de ser caçado. Mas os criadores desafiaram essa política nos tribunais da África do Sul e um juiz da Suprema Corte decidiu afinal que "essas restrições não eram racionais". Desde então, o número de animais-troféus caçados e mortos disparou. No período de cinco anos até 2006, 1830 leões-troféus foram exportados da África do Sul. No período seguinte de cinco anos, até 2011, 4062 carcaças de animais foram exportadas, representando um aumento de 122%. A quase totalidade desses números era de animais criados em cativeiro.

Alguns pais, como os deste menino, levam seus filhos para iniciá-los à matança de animais praticamente domesticados

A demanda do Extremo Oriente também incrementa o lucro dos criadores de leões. Em 2001, apenas dois leões foram exportados como "troféus" para a China , Laos e Vietnã. Em 2011, 70 troféus-leão foram exportados para esses países. Como o comércio de partes do corpo de tigres é atualmente ilegal, a demanda de partes do corpo de leões destinadas à medicina tradicional asiática está subindo continuamente. Em 2009, apenas cinco esqueletos de leão foram exportados da África do Sul para o Laos; em 2011 esse número subiu para 496. A exportação legal de ossos de leão e carcaças inteiras também disparou. "É com certeza uma fonte crescente de receita para essas instalações de reprodução em cativeiro de animais destinados à caça enlatada", diz Will Travers, da ONG Charity Born Free.

Este caçador preferiu usar sua besta moderníssima, capaz de atirar várias flechas seguidas, para matar este leão aprisionado

Os criadores argumentam ser melhor que os caçadores atirem num leão criado em cativeiro do que pôr mais ainda em perigo as populações selvagens. Mas ambientalistas e grupos que trabalham para o bem-estar animal desmentem esse raciocínio. Na África, as populações selvagens de leões caíram 80% em 20 anos. Por isso, vê-se que o surgimento de fazendas de leões destinados à caça enlatada não tem protegido os leões selvagens. Na verdade, de acordo com Fiona Miles, diretora da Lionsrock, um santuário de grandes felinos na África do Sul, ela alimenta e estimula a caça ao animal selvagem. A criação de um mercado para a caça enlatada de leões cria uma etiqueta de preço sobre a cabeça de cada leão selvagem, diz Fiona. Criam um incentivo financeiro para a população local, que passa a conspirar em sociedade com os caçadores furtivos ou fazendo vista grossa para a matança ilegal de leões. Existem também muitos caçadores que iniciam matando animais criados em cativeiro, tomam gosto pela matança, e decidem mudar para a caça real ao animal selvagem.

Pai e filho se congratulam: acabam de matar juntos um exemplar de antílope criado em cativeiro

"Essas fazendas são verdadeiras fábricas para a produção de leões. Isso é chocante", continua Fiona Miles. Ela decidiu começar a trabalhar para a proteção dos leões depois de assistir a um documentário sobre a caça enlatada. "O leão é conhecido em todo o mundo como o rei das selvas, um verdadeiro ícone do mundo animal. É assim que ele aparece nos livros de história, nos romances de aventura e na publicidade. A caça enlatada os reduz a uma simples mercadoria, um objetode tiro-ao-alvo, algo que pode ser comercializado e usado como por quem vai a um parque de diversões dar uma volta na roda-gigante".

Por ser quase inteiramente branco, este leão macho será preservado para a reprodução em cativeiro

Um uso alternativo para os leões criados em cativeiro pode ser o turismo. Fomos dar um "passeio do leão", em companhia de Martin Quinn, um educador conservacionista e "leão whisperer" (aquele que sussurra no ouvido do leão). Trata-se de passear pela estepe com três leões brancos adolescentes que foram criados no rancho Moreson e treinados por Quinn e por seu assistente, Thompson. Esses impressionantes leões brancos circulam ao nosso redor, correm, para em seguida deitar-se na relva, como se estivessem prontos para uma emboscada. Armados apenas com pedaços de madeira, Quinn e Thompson conseguem controlá-los, ao mesmo tempo em que nos advertem para não esquecer que eles ainda são animais selvagens. A experiência pode ser enervante para algumas pessoas, mas Quinn espera que empreendimentos como esse possam convencer o Rancho Moreson e outros criadores que um leão vivo vale mais do que um morto. Quinn afirma que desde que começou a trabalhar com os leões no rancho, em janeiro último, os proprietários não venderam mais animais para serem caçados. Ele espera que o rancho acabará permitindo a descendentes de seus animais cativos que cresçam no meio selvagem.

Este antílope, animal símbolo da África do Sul, nasceu e foi criado em cativeiro para se tornar objeto de tiro-ao-alvo

Os criadores muitas vezes se justificam reivindicando que seus leões destinam-se a programas de conservação. Mas exemplos de leões criados em cativeiro que se tornam novamente animais selvagens são incrivelmente raros. Até mesmo os zoológicos mais respeitáveis não conseguiram estabelecer um programa de sucesso para a liberação de leões criados em cativeiro de volta à vida selvagem.

Pieter Kat, fundador da ONG Charity Lion Aid, diz que os passeios-do-leão constituem simplesmente mais uma fonte de renda para os criadores, com lucros muito menos importantes do que as vendas para a caça enlatada. Marike Van Der Merwe, por seu lado, duvida que os passeios-do-leão de Quinn possam substituir a renda que sua fazenda obtém com a venda de seus leões: "Nossa intenção é mantê-los conosco até os seis meses e, em seguida, vendê-los a outros parques de leões", diz ela . Marike insiste que as informações existentes no site do seu rancho estão erradas, que na verdade a intenção deles não é criar leões para a caça enlatada: "Nós os vendemos para outras pessoas e fazendas que têm licença para caçar leões. O que eles fazem com os animais que compram nós não sabemos. Mas nós não fazemos caça enlatada".

Ele sorri, contente, após trucidar o antílope com uma saraivada de flechas atiradas pela sua besta ultra-techno

Distante três horas de carro do Rancho Moreson, fica Lionsrock, uma ex-fazenda de criação de leões transformada em santuário para cerca de 80 grandes felinos que sofreram os abusos da reprodução forçada. Alguns vêm de fazendas de criação locais, mas a ONG Quatro Patas, por exemplo, também já resgatou animais mantidos em condições desumanas em zoológicos na Romênia, na Jordânia e no Congo. Ao contrário do que acontece nas fazendas de criação de leões, os animais de Lionsrock não têm a permissão de se reproduzir. Mas, em vez de viverem dentro de cercados que mais parecem caixas, como em Moreson, eles aqui vivem soltos, em grupos familiares de até dez leões.

Lionsrock pode realojar mais 100 leões, e pretende fazê-lo no tempo. Mas certamente não tem espaço suficiente para abrigar cada leão criado em cativeiro na África do Sul. Várias instituições de caridade e proteção aos animais que trabalham na África do Sul querem uma moratória para o funcionamento das fazendas de criação de leões por temerem que, se a proibição for promulgada de modo abrupto, milhares de leões serão simplesmente mortos ou despejados, soltos na natureza sem nenhum preparo para a sua sobrevivência.

E mais dois caçadores enlatados a comemorar: mais um antílope vermelho foi baleado e morto

Marike Van Der Merwe não tem certeza de que uma proibição rigorosa da criação em cativeiro e da caça enlatada de leões e de outros animais selvagens será uma coisa boa para o país. "Existe um montão de pessoas do exterior que vêm à África do Sul simplesmente para atirar em leões. Para se fazer fotografar junto a um animal abatido, para levar um troféu para seu país e poder dizer aos amigos 'Eu atirei num leão'. Essas pessoas certamente trazem dinheiro para o nosso país". Ela não vê nada de errado em caçar leões ou mantê-los em cativeiro. Na verdade, ela diz ser parte de uma família que ama os animais: "Nós vivemos e crescemos com eles. São como ter bebês em casa. Quando eles ainda são bem pequenos, andam ao redor de nós, ao redor de nossas casas e querem nos seguir para todo lado..."

Vídeo: Este vídeo mostra a chocante e muito lucrativa indústria da caça enlatada. Surpreendentemente, essa prática permanece legal na África do Sul

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