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América Latina

"Corrupção tem sido usada como arma política para perseguir progressistas", diz ex-chefe da Unasul

Ex-presidente da Colômbia e ex-secretário-geral da Unasul, Ernesto Samper, em curso promovido pela Escola de estudos latino-americanos e globais (Elag), defendeu que a América Latina precisa de “uma política de segurança regional” própria, não a imposta pelos EUA, que é a “justiça neoliberal”

(Foto: REUTERS/Carlos Garcia Rawlins)
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O texto a seguir é uma adaptação da 10ª aula do Curso internacional “Estado, política e democracia na América Latina”, da Escola de estudos latino-americanos e globais (Elag), ministrada pelo ex-presidente da Colômbia e ex-secretário-geral da UNASUL, Ernesto Samper.

Paz e segurança na América Latina

A América Latina é uma das regiões mais inseguras do mundo.

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25 em cada 100 homicídios que ocorrem no mundo são realizados na América Latina. A taxa média global de homicídios chega a 7 por habitante. Na América Latina, atingimos mais de 30 homicídios por 100.000 habitantes. Qual é a causa desta grave insegurança pública? Algumas pessoas dirão que a causa é fundamentalmente a pobreza, uma forma simplista e injusta de reduzir a questão da segurança a uma espécie de “vitimização social”. Nessa perspectiva, todos os pobres da América Latina seriam criminosos em potencial. Não podemos aceitar essa hipótese simplificadora e de direita.

Existem fatores objetivos de insegurança e também outros que devem ser considerados, como os culturais. Na América Latina, infelizmente, falhamos em nos reconhecer uns com os outros. A paz nasce do direito de que uma pessoa com ideias diferentes das nossas seja reconhecida e respeitada, assim como nós somos reconhecidos e respeitados por ela. Infelizmente, na Colômbia, o outro não foi incorporado à nossa cultura. Isso explica porque a nossa diversidade, que deveria ser um fator enriquecedor, ainda nos leva a enfrentar e desenvolver conflitos que nos colocam nas maiores taxas de homicídios do mundo.

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A insegurança também se deve a fatores de natureza militar. 52% das armas pequenas do mundo estão aqui na América Latina. Somos a região mais armada por habitante, até mais que os Estados Unidos, porque, infelizmente, todo o estoque de armas que ficou disponível depois da Guerra Fria, por conta do contrabando e da troca de drogas por armas, acabou chegando à América Latina.

Da mesma forma, a insegurança está relacionada à forma como entendemos a justiça.

Existem duas concepções opostas de justiça. O que poderíamos chamar de “justiça punitiva”, que enfatiza a necessidade de mais penas, mais prisões, mais punições, mais castigos; e a chamada “justiça restaurativa”, ressocialização como resgate de penas, descongestionamento prisional, não considerando os criminosos como pessoas descartáveis, mas dando-lhes a oportunidade de reconquistar a cidadania. Nesse contexto, temos dois sistemas diferentes de justiça criminal. Por um lado, a justiça penal que parte da presunção de inocência e que cerca os cidadãos de garantias para que tenham direito à sua defesa. 

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De outro, a justiça neoliberal, que é a que está em voga na América Latina, imposta pelos promotores dos Estados Unidos: a justiça do anônimo, das falsas testemunhas, das denúncias e confissões no escuro. Essa concepção de justiça contribui seriamente para a insegurança em que vivemos.
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Sergio Moro, juiz da Lava Jato - "justiça neoliberal" no Brasil(Photo: REUTERS/Ueslei Marcelino)REUTERS/Ueslei Marcelino

Patologias globais

A segurança do cidadão é afetada pelo que poderíamos chamar de “patologias globais”.

A primeira decorre do fato da América Latina ser uma região exportadora de concentrados de drogas vegetais. 

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E não é porque com nossa oferta induzimos a demanda nos Estados Unidos e na Europa, mas porque era essa demanda que estava criando nossa oferta crescente.

Na década de 1970, o sr. Nixon resolveu que o narcotráfico era um problema de segurança nacional para os Estados Unidos e o combate às drogas abriu as portas para formas de intervenção que ainda vivemos. Além disso, tornou-se um fator eleitoral, com o qual transferiram a responsabilidade pelas drogas aos países produtores, renunciando a assumir suas próprias responsabilidades como país consumidor. Em suma, na América Latina estamos perseguindo os elos fracos da cadeia da droga (cocaleiros, microtráfico, pequenos portadores de drogas), ao mesmo tempo em que abandonamos a luta contra os elos fortes da cadeia, que são representados pelos traficantes de drogas, lavadores de dólares; isto é, pelos grandes cartéis.

A solução não seria necessariamente sair do proibicionismo que tivemos por 100 anos para cair na legalização que permitiria um mercado de consumo livre de drogas, mas sim uma descriminalização progressiva. Em vez de colocar os camponeses e cocaleiros bolivianos na prisão, vamos dar-lhes a possibilidade de substituir suas safras e dar aos consumidores a possibilidade de distinguir entre usos aditivos e recreativos, estabelecendo uma dose mínima. Vamos implementar medidas que não busquem colocar na prisão todos aqueles que estão ligados às drogas, mas sim aqueles que estão ligados ao narcotráfico. Esta é a proposta que, como Secretário-Geral da União das Nações Sul-Americanas, UNASUL, levei à Assembleia das Nações Unidas, que tratava de políticas alternativas em matéria de gestão de drogas.

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A segunda patologia global é o terrorismo. É preciso trabalhar nas portarias antiterroristas, mas estabelecendo uma clara diferença entre o direito legítimo de protestar e de expressar suas demandas nas ruas, que os movimentos e organizações sociais possuem, e o que são estruturas que buscam fins de desestabilização política, econômica ou institucional. A confusão entre ambos pode ser muito perigosa numa democracia, pode terminar, como aconteceu na Colômbia, na perseguição de cidadãos e cidadãs que se expressam num protesto legítimo, submetendo-os ao controle, perseguição e até assassinato pelo Estado.

A terceira patologia é o aquecimento global. Esta é uma das principais ameaças que temos no futuro próximo. A América Latina tem o maior número de furacões e tempestades tropicais no Caribe e o maior número de terremotos e sismos na zona andina. Somos vítimas do aquecimento global. Por isso, embora assinemos todas as regras da Convenção de Paris, temos que rejeitar abertamente que países como os Estados Unidos tenham renunciado à contribuição que devem dar para reduzir esse aquecimento, através da redução dos gases. O aquecimento global e os desastres naturais que ele gera constituem uma das patologias que comprometem a segurança do cidadão.

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A quarta patologia é o armamentismo, que teve expressão maior no fortalecimento dos orçamentos militares da região, não só na época das ditaduras, mas também recentemente. Países como Colômbia ou Brasil, por exemplo, têm orçamentos militares que já ultrapassam os níveis históricos.

As autoridades norte-americanas têm muito a ver com isso e conseguiram nos envolver e nos vender as mais diversas e malucas hipóteses de conflito.
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Após a Segunda Guerra Mundial, foram assinados diversos instrumentos interamericanos de defesa que buscavam nos defender contra supostas agressões externas. Mas o que não sabíamos é que esses instrumentos, como o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, TIAR, iriam se tornar instrumentos de intervenção sobre nossas forças armadas e nossas estratégias de defesa. Por isso, o papel que organizações como a Escola das Américas, o Conselho Interamericano de Defesa ou a OEA têm cumprido, em sua expressão militar, tem sido o de nos convencer de uma série de falsas hipóteses de conflito, de nos vender as armas e munições que nos permitem enfrentá-los. Assim, quando os altos comandantes militares compareciam a Washington, participavam de exercícios ou jogos de guerra relacionados ao que aconteceria se o Chile enfrentasse a Argentina; ou se houvesse uma guerra entre a Colômbia e a Venezuela.

Rejeitar essa perspectiva, que estava associada à possibilidade de nos vender equipamentos militares, foi uma das grandes conquistas da UNASUL. Por iniciativa do presidente Lula, foi criado o Conselho de Defesa Sul-americano, no qual começamos a trabalhar, não em hipóteses de conflito entre nós, mas em ameaças regionais à segurança, como o narcotráfico, terrorismo ou corrupção, que também têm mais do que enfocar de um ponto de vista progressista, uma vez que os casos de corrupção têm sido usados ​​de forma quase diabólica pela mídia.

Ernesto Samper, ex-presidente da Colômbia, comemora elegibilidade de Lula: “encerra um vergonhoso ciclo de lawfare”
Com o apoio dos poderes econômicos, a “corrupção” tem sido usada como forma de perseguição aos líderes progressistas. O caso mais significativo é o do próprio Lula no Brasil, mas também o de Correa no Equador, Evo na Bolívia e Cristina na Argentina. É o uso da corrupção como arma política para perseguir especialmente figuras progressistas.

Rumo a um sistema de defesa sul-americano

Entender a segurança cidadã em uma perspectiva democrática e com base nos direitos humanos tem sido um dos alicerces centrais e articuladores do que foi o nascimento da UNASUL.

Desde o seu tratado de fundação, a UNASUL estabeleceu seus alicerces. Em primeiro lugar, a necessidade de garantir a continuidade democrática, em uma região que viu emergir as ditaduras dos anos 70 e que deve manter como prioridade submeter seus projetos políticos ao escrutínio institucional democrático, não apenas em termos de uma democracia eleitoral, que é o direito de escolher e ser eleito, mas também em termos de uma democracia funcional, social e substantiva. Ou seja, definir governos democráticos em termos de participação cidadã e também de legitimidade democrática construída com base em critérios de justiça social e igualdade. É essencial que o eixo articulador da integração latino-americana seja a continuidade da democracia na região.

A segunda prioridade da UNASUL tem sido o respeito aos direitos humanos, não apenas em seu reconhecimento como direitos políticos, que é o costume do Sistema Interamericano, mas também e fundamentalmente como direitos humanos, sociais e econômicos, e novamente como direitos humanos de nova geração: direitos genéticos, ambientais ou relacionados ao novo problema da inteligência artificial. Uma nova geração de direitos que tentam nos proteger dos danos que podemos causar a nós mesmos com a poluição ambiental, degeneração genética ou mudanças violentas na inteligência artificial. Todo esse conjunto de direitos é o marco ético de referência para um projeto político que garanta uma efetiva integração latino-americana.

Por fim, o terceiro articulador é a questão da paz. A América Latina pode ser considerada um oásis de paz em um mundo afetado por conflitos étnicos, lutas religiosas e até conflitos típicos da Guerra Fria. Isso não significa, é claro, que já tenhamos resolvido todos os desafios relacionados à construção da paz na região, como indicamos, mas, sim, que existem alguns tratados em que esta vontade de ser uma zona de paz no mundo é endossada:

  • O Tratado de Galápagos, no qual o tema da paz está relacionado com a paz ambiental e a paz social, que são critérios constitutivos de um conceito mais amplo de segurança;
  • O Tratado de Tlatelolco, no qual a região se declarou livre de armas nucleares. Não há experimentos com armas nucleares na América Latina. O conceito de armas nucleares é proibido na região, assim como a rejeição de bases militares estrangeiras no continente. Claro, em algumas partes ainda existem bases militares, mas essas bases militares são apontadas como estigmas na região. 
Ainda temos dois grandes enclaves colonialistas na América Latina: as Malvinas e a base de Guantánamo em Cuba.

Mas essas áreas são justamente rejeitadas como enclaves que não queremos na região, assim como não queremos a presença de bases militares. Justamente a região, por meio da UNASUL, rejeitou a reivindicação de colocar na Colômbia, durante o governo do presidente Álvaro Uribe, seis bases militares na fronteira com a Venezuela que teriam representado praticamente o início de um confronto armado que a maioria de nós colombianos não desejamos com nenhum país vizinho.

Nessa condição de região de paz, não poderia ignorar, como colombiano, a assinatura dos Acordos de Havana de 2016, nos quais se acertou o fim de um conflito armado que a Colômbia havia travado por mais de 50 anos, e que nos custou cerca de 280.000 mortes e mais de 9 milhões de vítimas devido a deslocamentos, sequestros e combates. Foi uma guerra e um conflito muito duro, violento e sangrento, que foi salvo com a assinatura desses acordos que giravam em torno de uma simples agenda de 5 pontos: a distribuição de terras, que tem sido um dos grandes fatores de confronto na Colômbia desde a época da independência; a substituição social de cultivos ilícitos de forma voluntária e progressiva; a questão das vítimas, uma vez que, pela primeira vez desde a assinatura dos acordos ou compromissos de paz, se teve em consideração que os destinatários dos acordos deveriam ser as vítimas, o que conferiu a este processo uma grande força ética; desmobilização e desarmamento; e, por fim, justiça de transição para julgar as pessoas que se submeteram voluntariamente aos princípios desses acordos. Assim, esse processo levou à desmobilização de mais de 12.000 combatentes das FARC que entregaram mais de 12.000 armas e se concentraram em locais de integração selecionados dos quais buscam e obtêm anistias para poder construir e reconstruir sua vida civil. 

Este é um fato significativo e histórico nos processos de paz no mundo. 

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Rebeldes das FARC patrulham uma rodovia perto de San Vicente del Caguan, janeiro de 1999.(Photo: REUTERS/Jose Gomez)

Mas, além disso, a partir deste momento vem um processo de transição através da aplicação da justiça para a paz que combina adequadamente três elementos: verdade, justiça e reparação, para permitir que o resultado final na transição do conflito ao pós-conflito seja a reconciliação de todos os colombianos e colombianas. Neste momento, infelizmente, na Colômbia, ainda existem algumas regiões nas quais uma metástase do antigo conflito nacional tende a se reproduzir. Mas acreditamos que a aplicação destes mecanismos de pacificação, verdade e justiça nos permitirá avançar ao longo dos próximos 5 ou 6 anos. Esta é uma conquista significativa que a região pode se apropriar, uma solução política para um conflito armado. Neste momento estamos lutando para que a paz acabe de ser semeada na Colômbia e possamos finalmente viver reconciliados.

É importante destacar que o Sistema de Defesa Sul-americano era composto por três unidades. Em primeiro lugar, o Conselho de Defesa Sul-americano, do qual participaram os ministros da Defesa e altos comandantes militares, o que estabeleceu entre eles hipóteses de confiança para enfrentar os desafios comuns de segurança regional. Em segundo lugar, o Centro de Estudos Estratégicos, que funcionava em Buenos Aires e era como o cérebro dos programas de segurança. Terceiro, o Instituto de Estudos Militares que foi inaugurado em Quito, cujo objetivo era unificar os planos de estudos das academias militares da região, com base em princípios básicos como o respeito aos direitos humanos, a aplicação do direito internacional, humanitário e, algo muito importante que realmente não alcançamos, que foi a criação de uma Escola de Facilitadores e Negociadores da Paz na região.

Essa escola teve a aprovação das Nações Unidas e teve como objetivo preparar facilitadores e mediadores da paz para conflitos sociais e situações críticas de confronto, ao invés de enviar as forças armadas, a polícia ou a polícia militar.

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Precisamos de uma política de segurança regional na América Latina. Não queremos a política de segurança hemisférica que nos venderam como a única política de segurança nacional possível, porque tem servido aos interesses da política externa norte-americana. 

Uma nova política de segurança regional teria, em minha opinião, cinco ingredientes:

  1. O marco indispensável dos direitos humanos. A região deve se mover com base no respeito inabalável pelos direitos humanos.
  2. Inclusão social. Não podemos ignorar que a insegurança, de alguma forma, é alimentada e retroalimentada pelas condições objetivas de desigualdade social existentes na região. Essas condições devem ser compatibilizadas com novos sistemas de convivência, começando agora, por exemplo, com maiores esforços para reduzir as assimetrias sociais neste momento de pandemia.
  3. Cooperação entre países. Trata-se de criar mecanismos como redes de inteligência ou a existência de um Tribunal Penal Regional que nos permita resolver conflitos relacionados a patologias globais, sem a necessidade de passar por etapas internacionais.
  4. Afirmação de princípios fundamentais comuns. Os princípios que devemos assimilar para dar um conteúdo de segurança e um referencial ético devem ser: a solução pacífica de controvérsias, a não intervenção nos assuntos dos Estados e o respeito pela lei.
  5. Democracia. Que tudo isso se faça dentro dos esquemas e regras do jogo democrático, na ideia de que não entendemos o progressismo se não for democrático, o progressismo sem democracia não é progressismo e a democracia sem progresso social também não é democracia.

Thomas Piketty, um dos grandes pensadores do nosso tempo, diz que esta pandemia pode criar a oportunidade para grandes retificações. Uma dessas retificações teria que ser a América Latina enquadrar seu conceito de segurança para além de um conceito punitivo e regressivo, estabelecendo-o em uma perspectiva democrática, igualitária e socialmente justa. Convido você a refletir sobre essa possibilidade.

*O Curso Internacional "Estado, política e democracia na América Latina" é uma iniciativa destinada a militantes e ativistas sociais, funcionários públicos, docentes e estudantes universitários, pesquisadores, sindicalistas, dirigentes de organizações políticas e não governamentais, trabalhadores da imprensa e toda pessoa interessada nos desafios da democracia na América Latina e no Caribe. Foi promovido pelo Grupo de Puebla, o Observatório Latino-Americano da New School University, o Programa Latino-Americano de Extensão e Cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a UMET.

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