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Vitor Paiva

Escritor, jornalista e músico. Redator e jornalista do site Hypeness, colaborou com publicações como Jornal do Brasil, Revista Bundas, O Pasquim 21 e mais

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17 minutos de quarentena na companhia de Bob Dylan

Dylan é um dramaturgo, mas a narrativa que escreve não é a cantada na canção – que mais serve como rubrica do que como texto: o ator é o ouvinte, somos nós seu espetáculo

Bob Dylan
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Ainda que estivesse em vias de entrar em seu quarto ano, foi no instante em que Lee Harvey Oswald puxou por seis vezes o gatilho de seu rifle para tirar a vida do presidente estadunidense John F. Kennedy, no dia 22 de novembro de 1963, que mitologicamente a década de 1960 realmente começou. Bob Dylan tinha 22 anos e ensaiava assumir a posição que lhe seria cativa por todo esse período como figura central da cultura jovem dos EUA de então. 

No início do ano seguinte os Beatles conquistariam o mundo, Dylan se tornaria o profeta da juventude perdida entre o apocalipse e a renovação, e os anos 60 começariam a se afirmar como período de sombras e revoluções – ou essa é a história oficial, especialmente do ponto de vista estadunidense. No Brasil, no mesmo ano de 1964, o que começou foi a ditadura militar – aquela que Kennedy afirmou, dias antes de ser assassinado, que precisava acontecer para conter os anseios minimamente igualitários do presidente eleito João Goulart. 

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Passadas mais de cinco décadas desse fiapo histórico, Dylan é hoje, aos 78 anos, um respeitável portador do Prêmio Nobel de Literatura, e a humanidade ainda insiste em saltar em seu próprio apocalipse – dessa vez não através de guerras ou sombrios e corruptos regimes militares, mas de um vírus silencioso e invisível. E novamente Dylan oferece sua colaboração, em forma de canção, para pensarmos, compreendermos, inventarmos o que afinal está acontecendo no mundo. 

Não farei piruetas argumentativas para tentar provar que “Murder Most Foul”, nova canção que o bardo judeu de Minnesota lançou no início da quarentena, é na verdade ou no fundo sobre a pandemia – a composição conta literalmente o assassinato de Kennedy, apresentando tal evento como porta de entrada para revisitarmos os anos 60 e a memória e o coração cultural do autor. Já a recepção da canção, essa definitivamente fala sim sobre os tempos que hoje vivemos, e que seguem mudando como Dylan nos canta desde 1963. “Murder Most Foul” é a mais longa canção de toda a lavra de Dylan, e provavelmente a mais extensa a chegar ao primeiro lugar das paradas dos EUA – além de ser a primeira gravação de Dylan a se tornar a mais vendida do país. Espantosamente, somente em pleno 2020 uma gravação de Dylan alcançou o topo da Billboard. 

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Em que outro momento atual que não em um período de isolamento teríamos paciência para escutar quase 20 minutos de uma canção? Dylan mais uma vez reverte qualquer expectativa a seu favor: se até ontem a futurologia banal decretava que a paciência e a reflexão eram animais em extinção, hoje uma grande canção com 17 minutos de duração soa como um generoso presente – um luxuoso preenchimento para o nosso tempo, que parece ter ganhado outro valor em quarentena. 

“Murder Most Foul” é essencialmente composta de dois ou três trechos melódicos que mais servem como simples estrutura, feito a métrica de um soneto, para que o bardo possa cantar o que quer contar. É claro que ouvi-lo chamar Kennedy de “rei” nos remonta ao velho mal estar dos filmes dublados da infância, quando o nome do herói se revelava Jack e não João, e a bandeira que fincavam na face da lua era de outro país. Mesmo Dylan parece também padecer um pouco do velho patriotismo cegueta – que atinge feito um vírus até mesmo a melhor esquerda de seu país. 

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Mas não podemos nos deixar levar pela boba oposição irrestrita, que igualmente nos fecha os olhos e ouvidos: estamos falando de um gigante, um demiurgo da canção popular, poeta capaz de misturar-se com a matéria prima da história para forjar ao mesmo tempo seus poemas e a própria realidade com um gesto de sua pena. E se a pandemia revela mais sobre nós mesmos do que sobre a doença, uma canção de Dylan nesse momento também funciona como um espelho – daqueles que nos deformam, nos encolhem e esticam, que nos transformam em um reflexo irreconhecível e novo. Foi, afinal, um cidadão dos EUA que matou seu presidente. Eu lamento te dizer, senhor, mas só os mortos são livres, canta Dylan. 

E o mal estar patriota do início se dissipa nos últimos 6 minutos de “Murder Most Foul” em um dos mais belos trechos de toda a obra recente do compositor. Toque Stan Getz, toque o reverendo, toque Oscar Peterson, toque Nat King Cole, pede Dylan, em uma grandioso e belo inventário de referências. Nesse momento o épico se torna íntimo, e esse compositor, como um senhor sábio, nos pede um franco e delicado favor – ao qual respondemos atravessando com prazer, desejo, vertigem, náusea e lágrima os 17 minutos de sua nova canção. Dylan é um dramaturgo, mas a narrativa que escreve não é a cantada na canção – que mais serve como rubrica do que como texto: o ator é o ouvinte, somos nós seu espetáculo. Os tempos estavam mesmo mudando, e assim, mudando, eles seguirão. 

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