3.0: A nova TV lançada por Lula
Nova geração da televisão aberta promete 4K e interatividade, mas expõe a dependência tecnológica do país
Hoje (27) o governo brasileiro assinou o decreto que inaugura oficialmente a era da TV 3.0 no país. Anunciada como a maior transformação da televisão aberta desde a digitalização em 2007, a novidade chega carregada de promessas: transmissões em 4K com áudio imersivo, integração entre sinal aberto e internet, interatividade em tempo real, publicidade segmentada e um suposto salto de qualidade que colocaria o Brasil na vanguarda mundial da radiodifusão. A ideia da TV 3.0 é misturar esses dois mundos: manter o sinal aberto e universal, mas acrescentar funções típicas da internet, como catálogos sob demanda, enquetes, propaganda direcionada e aplicativos dentro da própria TV. É como se a televisão aberta ganhasse “superpoderes digitais”, mas sem deixar de ser gratuita para quem só usa antena. No site <código aberto>, eu detalhei cada uma dessas funções, explicando como elas podem impactar o cotidiano dos espectadores e a organização do setor. Quem tiver interesse pode acessar o material completo para se aprofundar.
Por trás da narrativa triunfal de modernização, no entanto, esconde-se um projeto muito mais complexo e delicado. A TV 3.0 não é apenas um avanço tecnológico neutro; é uma infraestrutura crítica que redefine as correlações de força no ecossistema da comunicação. Sua implantação envolve não apenas aspectos técnicos, mas também questões de soberania informacional, dependência de patentes estrangeiras, concentração de mercado e reconfiguração das disputas entre emissoras tradicionais, Big Techs e mídias independentes. O que está em jogo é o futuro da comunicação de massas no Brasil e, com ele, a própria capacidade do país de controlar as bases técnicas e econômicas de sua vida informacional.
Se, por um lado, a TV 3.0 promete democratizar o acesso a conteúdos de altíssima qualidade sem custo adicional para o espectador, por outro abre espaço para novas formas de vigilância, monetização de dados e controle centralizado das plataformas de distribuição. O decreto portanto não deve ser lido apenas como um marco tecnológico, mas como um ato político que precisa ser analisado em sua totalidade: quem controla as engrenagens desse sistema? Quais são os interesses em disputa? Quais grupos sociais serão beneficiados e quais correm o risco de serem silenciados? Como fica a mídia progressista independente do Youtube? E como ficam as nossas crianças? Em suma, a TV 3.0 é menos uma revolução técnica e mais um campo de batalha onde se decide o destino da soberania comunicacional brasileira.
Em tese, trata-se de um recurso de interesse público. Mas, em mãos corporativas, pode se transformar em novo espaço de negócio privado por exemplo, alugando capacidade de transmissão para grandes empresas de tecnologia ou de telecomunicações.
A televisão aberta, que historicamente se vendia como universal e gratuita, passa a carregar em seu núcleo um mecanismo de captura de atenção e de dados semelhante ao das Big Techs. Em outras palavras, a TV 3.0 não é apenas uma melhoria de qualidade de imagem e som, é a transformação da televisão em um grande smartphone, com todos os benefícios e prejuízos sociais e políticos.
Essa contradição entre discurso de soberania e realidade de subordinação abre caminho para outro terreno de disputa, agora entre emissoras tradicionais e Big Techs: de um lado, Globo, Record, SBT e Band enxergam na nova tecnologia a chance de recuperar relevância e protagonismo, criando seus próprios ecossistemas digitais; de outro, plataformas como Google, Amazon e Netflix continuam controlando os dispositivos, sistemas operacionais e fluxos de dados, mantendo-se como intermediárias privilegiadas da experiência do usuário. Nesse embate, a TV 3.0 pode significar tanto o renascimento da televisão aberta quanto a consolidação da hegemonia das plataformas globais, a depender de quem definirá as regras de governança, o acesso aos aplicativos e o controle dos dados dos telespectadores.
Assim, a mesma tecnologia que pode democratizar o acesso à informação também pode ampliar desigualdades, sufocar vozes independentes e corroer silenciosamente a soberania nacional. Tudo dependerá da existência de uma regulação democrática capaz de orientar a TV 3.0 para o interesse público e não para uma lógica corporativa.
A TV 3.0 inaugura uma nova fase da comunicação no Brasil, mas seu destino dependerá das disputas entre Estado, mercado, sociedade civil, emissoras e Big Techs. Três cenários se desenham para os próximos dez anos:
1. no otimista, o país regula o uso de dados, garante interatividade aberta, fomenta mídia independente, nacionaliza a governança e transforma a TV aberta em instrumento de democratização;
2. no pessimista, prevalece a captura corporativa, com concentração de poder nas grandes emissoras e nas plataformas digitais, exportação de dados e royalties e corrosão acelerada da soberania;
3. no intermediário, o mais provável se nada mudar, a TV 3.0 entrega qualidade técnica, mas mantém desigualdades, exclusão da mídia alternativa e subordinação estrutural. Esses cenários não são inevitáveis, mas escolhas políticas e sociais: o decreto de agosto de 2025 abriu a porta para o futuro, e cabe ao Brasil decidir se atravessá-la significará emancipação informacional ou dependência renovada.
No fundo, o que está em jogo é muito mais do que a qualidade da imagem em 4K ou o som imersivo. A TV 3.0 é um projeto político e estratégico que define quem controla a infraestrutura da comunicação, os softwares de interatividade e, sobretudo, os dados dos cidadãos. Sem regulação soberana, será lembrada como um cavalo de Troia tecnológico, fachada nacional sobre máquina estrangeira; com regulação democrática, pode se tornar um marco de inclusão digital, pluralidade cultural e fortalecimento da democracia. O decreto de 27 de agosto será, inevitavelmente, lembrado como divisor de águas: resta saber se como o início de uma era de soberania informacional ou como a certificação de mais um ciclo de submissão ao capital internacional.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




