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João Ricardo Dornelles

(Professor de Direito da PUC-Rio; Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; membro do Instituto Joaquín Herrera Flores/América Latina; membro do Coletivo Fernando Santa Cruz)

10 artigos

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60 anos do golpe militar. Esquecer jamais. A omissão sobre a barbárie é inadmissível

O que se impõe, como política civilizatória, é o permanente exercício da memória coletiva, lembrando a nossa história, nossas vítimas, nossas dores e sofrimento

(Foto: Arquivo)
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O Anjo da História nunca abandonou o Brasil. São cinco séculos avançando de costas para um futuro incerto, em nome de uma ordem e de um progresso que deixa um rastro de destruição, de mortes, de dor e de sofrimento. (O Anjo da História se refere à pintura de Paul Klee, Angelus Novus, usada metaforicamente por Walter Benjamin na sua nona tese sobre a história. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. São Paulo: Editora Alameda, 2020).

Os antecedentes do golpe de 1964 remetem a nossa análise para os anos finais da Segunda Guerra Mundial e o cenário do pós-guerra.

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Em pleno inverno no hemisfério norte, no dia 2 de fevereiro de 1943, o Exército Vermelho soviético derrotava as tropas nazistas invasoras na longa batalha de Stalingrado. Foi o início da vitória contra o nazifascismo, animando todas as forças democráticas e progressistas do mundo e repercutindo sobre a conjuntura política no Brasil, inclusive com o envio de tropas brasileiras para o terreno da guerra na Europa ao lado dos aliados. Uma das consequências internas foi a dissolução do conteúdo da ditadura do Estado Novo.

No plano externo, o final da Segunda Guerra Mundial significou o surgimento de uma nova ordem internacional fundada em dois blocos geopolíticos em disputa. Por um lado, o bloco capitalista hegemonizado pelos Estados Unidos da América e, por outro, o bloco socialista, liderado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). A disputa hegemônica entre estes blocos vai conviver, a partir da Conferência de Bandung de 1955, com um terceiro bloco que busca manter uma relativa autonomia nas relações internacionais, o chamado bloco Não-Alinhado. Esse cenário mundial inaugurou a chamada Guerra Fria, marcando os conflitos políticos e militares em todos os países do mundo, muitas vezes com guerras civis e golpes de Estado.

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Um dos principais palcos dessa disputa, com a derrubada de governos legítimos e a instauração de ditaduras militares financiadas e apoiadas pelos Estados Unidos, foi a América Latina. A justificativa era sempre a mesma, o combate ao comunismo e a manutenção destes países sob a órbita ocidental. A sua base de fundamentação era a doutrina de segurança nacional.

No ano de 1950, Getúlio Vargas volta a ser eleito presidente da República com um programa de desenvolvimento nacional, ampliação dos direitos sociais e trabalhistas, fixação do salário mínimo, criação da Petrobrás, da Eletrobrás e afirmação da soberania nacional. Os setores mais reacionários da burguesia brasileira, atrelados aos interesses do capital internacional, através dos seus agentes políticos, de parte das forças armadas e da grande mídia conspiravam contra o governo. O governo foi atacado desde o seu início pelo capital internacional e seus agentes internos que propugnavam um alinhamento automático com os Estados Unidos, uma abertura do mercado brasileiro e a priorização na exportação de produtos primários.

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Após três anos e meio sob fogo cerrado e uma intensa campanha golpista da direita e do capitalismo internacional, na madrugada de 24 de agosto de 1954, Vargas, sob forte pressão, comete o suicídio com um tiro no peito. A consequência do desfecho trágico foi a revolta popular e o adiamento, por dez anos, do golpe militar que colocaria no poder as forças políticas e econômicas contrárias ao desenvolvimento nacional soberano e aos interesses do povo brasileiro.

Durante aqueles quase dez anos, que separam a morte de Getúlio da derrubada de Jango, a direita, atrelada aos interesses do capitalismo internacional, jamais deixou de conspirar e preparar o golpe. A vitória de Jânio Quadros, em 1960, deu um certo fôlego para a direita udenista, os conservadores, reacionários, conspiradores, os fascistas travestidos de liberais. É verdade que o alívio das elites conservadoras durou pouco tempo, já que em 25 de agosto de 1961 aquele que “varreria bandalheira” renunciou. Mais uma vez os golpistas de sempre, as elites oligárquicas, os conspiradores reacionários, o capital internacional dominado pelos Estados Unidos da América não se conformaram em seguir as regras democráticas previstas na Constituição, que previa a posse do Vice-Presidente João Goulart (Jango), que se encontrava em viagem oficial na China.

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O susto que abalou os reacionários impulsionou os ânimos golpistas. Mais um golpe foi tentado, o veto militar à posse de Jango. Também significou um momento histórico notável com mais uma demonstração de grandeza, de luta, de destemor e de virtude do nosso povo e dos trabalhadores que resistiram, através da Rede da Legalidade, lançada e liderada pelo Governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que ganhou as ruas de Porto Alegre para ocupar todo o país e garantir a volta e a posse de Jango.

No período do governo Jango, a luta por transformações sociais ganhou maior destaque e o próprio governo chegou a anunciar as Reformas de Base como políticas públicas que garantiriam justiça social para o povo brasileiro. Os programas de governo e as pautas econômicas e sociais que tanto enfureciam o imperialismo estadunidense, a burguesia vassala brasileira e os seus agentes da grande imprensa e das forças armadas nos anos de 1950, se repetiram antes de 1964 com Jango, estiveram presentes nos governos Lula e Dilma e seguem atuais no terceiro mandato do Partido dos Trabalhadores. Como também a composição do bloco histórico reacionário dos conspiradores dos anos 1950 é a mesma de 1964, do golpe de 2016, da “escolha difícil” em 2018 por Bolsonaro, permanecendo mais vivas do que nunca no atual governo Lula.

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Na madrugada de 31 de março para 1 de abril (dia da mentira) do ano de 1964, tropas do exército, comandadas pelo General Olympio Mourão Filho, saíram de Juiz de Fora em direção ao Rio de Janeiro, dando início ao levante militar que rompeu com o Estado Democrático de Direito e tirou violentamente João Goulart (Jango) da Presidência da República. Iniciava-se um longo período de 21 anos de ditadura empresarial-civil-militar. Uma noite de terror e medo cobriu o Brasil.

O golpe foi se completando com a farsa armada no Congresso Nacional quando o presidente do Senado, Auro Moura de Andrade, declarou vaga a presidência da República, pois, segundo ele “o Presidente João Goulart teria abandonado a sede do governo e deixado o país acéfalo”. O presidente Jango estava em Porto Alegre, em território nacional, portanto não havia abandonado o governo. Uma farsa protagonizada pela elite política e econômica composta de canalhas, senadores canalhas, deputados canalhas, militares canalhas, burguesia canalha, imprensa canalha, religiosos canalhas, classes médias canalhas.“Canalhas, Canalhas, Canalhas...”, como gritava Tancredo Neves na sessão-farsa do Congresso que fazia parte do golpe.

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As perseguições, prisões, torturas, mortes começaram no próprio dia 1º. de abril e não eram de mentirinha. O novo regime mostrava a sua credencial de cão de guarda da burguesia internacional e dos interesses imperialistas.

O legado dos longos 21 anos da ditadura empresarial-civil-militar foram as mortes, execuções, desaparecimentos, torturas, exílio, censura, concentração da riqueza nas mãos de poucos, pobreza, ódio e intolerância. O Brasil, mais uma vez, mostrou a sua face cruel e desnudou a sua natureza perversa encoberta por ideologias das elites oligárquicas de uma sociedade fraternal.

Após o período de relativa democratização vivida entre os anos 1980 e 2013, toda a perversidade e crueldade que estavam escondidas nas entranhas da nossa sociedade voltaram a despertar, com a guerra híbrida declarada contra o Brasil através do lawfare, levando à desestabilização do governo Dilma Rousseff, ao golpe de 2016, à prisão do Presidente Lula, à explícita fascistização da sociedade e ao governo Bolsonaro.

Existem sinais semelhantes nos acontecimentos dos anos de 1950, que levaram ao suicídio de Vargas, no golpe de 1964 que deu início à ditadura militar, no golpe de 2016 e no governo Bolsonaro entre 2018-2022.

Há sessenta anos atrás, como hoje, o Brasil vivia um clima de conflito e conspiração, com o delírio dos segmentos mais reacionários das classes médias, altas e muito altas, vendo inimigos comunistas por todos lados.

O governo Jango prometia o desenvolvimento nacional e algumas reformas com distribuição um pouco mais justa da riqueza nacional, enfurecendo as classes ricas, a burguesia urbana, os latifundiários, grande parcela das classes médias e sendo considerada uma afronta pelos Estados Unidos.

Muitas semelhanças com os dias de hoje.

Ainda nos primeiros dias do novo regime iniciou-se a perseguição dos membros do governo Jango, de parlamentares do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), dos militantes do Partido Comunista Brasileiro, dos outros partidos e organizações de centro-esquerda e esquerda, dos sindicatos, das Ligas Camponesas, da União Nacional dos Estudantes (UNE), dos membros de programas sociais do governo, como o Programa Nacional de Alfabetização, orientado por Paulo Freire. As prisões em massa, as torturas, as primeiras mortes, os primeiros exílios, a censura, o fechamento dos partidos políticos, as cassações de mandatos, foram o cartão de visitas do novo regime ditatorial. Apenas nos primeiros meses de 1964 mais de 50 mil foram presos e torturados, além de uma quantidade também significativa de mortos. Não é possível esquecer a imagem do velho militante comunista Gregório Bezerra, preso e arrastado seminu pelas ruas do Recife. Ou da prisão da delegação comercial da República Popular da China.

O golpe de 1064 foi um movimento político que inaugurou uma nova prática que se estendeu para a Argentina, Uruguai e Chile e que tinha como fundamento a Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento (segurança das classes dominantes e desenvolvimento atrelado aos interesses imperialistas). Foi um movimento que, além do contexto da guerra fria, respondia às necessidades do papel que o Brasil deveria desempenhar na divisão internacional do trabalho, como economia subordinada às necessidades do processo de acumulação capitalista transnacional. O regime ditatorial implementou uma política econômica baseada na modernização conservadora, dependente, socialmente excludente, concentradora da riqueza e, por consequência, que exigia a violência generalizada para a sua consecução.

E esta característica modernizadora e empresarial foi fundamental para o financiamento e a construção do aparato repressivo (da indústria da morte e do terrorismo de Estado), da nova institucionalidade ditatorial, do aperfeiçoamento das instituições autoritárias, dos serviços de censura, de vigilância, controle, repressão e do aprimoramento das técnicas de contra insurgência, de informação e de investigação. A tortura, as execuções, os maus-tratos e a violência - práticas sempre presentes na nossa história - passaram a ser matéria disciplinar para a formação dos agentes recrutados pela ditadura. Uma cena do filme “Estado de Sítio”, do cineasta grego Costa-Gavras, mostra uma aula ministrada em um estabelecimento militar no Rio de Janeiro, por um agente da CIA, Dan Mitrione (Daniel Anthony Mitrione), onde um preso serve como material “pedagógico” para que os “alunos” aprendessem as técnicas de tortura. Alguns anos depois, exercendo a mesma missão “pedagógica” no Uruguai, foi sequestrado e executado pelos guerrilheiros tupamaros em Montevidéu.

A grande burguesia garantia o financiamento dos órgãos de repressão, com apoio de ministros e autoridades econômicas do regime. A Operação Bandeirantes (OBAN) foi organizada com a coleta de contribuições promovida por autoridades, ministros, grandes empresários e banqueiros, 110.000,00 dólares por cabeça. Grandes empresas financiavam diretamente a dor, a morte, o sofrimento, a barbárie. Existe uma relação direta entre a sala de tortura, o “pau de arara”, a “geladeira”, a “cadeira do dragão”, a criação do DOI-CODI, os centros clandestinos de tortura e execução, como a “Casa da Morte” de Petrópolis, e as fontes de financiamento empresariais (o grande capital que era o beneficiário direto do modelo de desenvolvimento da ditadura).

A ditadura brasileira apresentou uma característica fundacional como modelo para as outras ditaduras militares no Cone Sul do continente sul-americano, possibilitando a criação da Operação Condor. Também aprimorou técnicas e práticas repressivas e políticas de exceção que continuaram a ser utilizadas pelos órgãos de controle social penal, especialmente nas políticas de segurança pública com o alvo nas populações mais pobres e nas áreas periféricas, como também nos processos de criminalização de trabalhadores rurais, sindicalistas, defensores de direitos humanos, das manifestações públicas e do protesto social. Foi durante o regime militar que se aprofundou a militarização das polícias e foram aprimoradas as “técnicas” de tortura, execução e desaparecimento de pessoas, presentes nas práticas policiais, na repressão de conflitos de natureza social e nas práticas milicianas que se espalharam por todo o país a partir do governo do protofascista Jair Bolsonaro.

É através da desconstrução da narrativa oficial da história dos vencedores e da recuperação da narrativa das vítimas, através do seu testemunho sobre as práticas de terror de Estado, é que teria sido possível concluir o longo processo da transição democrática inconclusa. É perturbador assistirmos o nosso governo democrático do Presidente Lula buscando reproduzir práticas de esquecimento permanentes na história do Brasil. Com certeza um erro político sério que pode custar caro no futuro, principalmente quando as forças sociais e políticas, no Brasil e no exterior, ainda conspiram contra o nosso povo e almejam a eternização da nossa subalternidade enquanto nação. O fascismo está mais vivo do que nunca.

As políticas conciliatórias, tradição nefasta da nossa história de revoluções passivas, através do esquecimento do passado, do “virar a página”, são as grandes ameaças que temos que desmontar, a começar com a exigência de que sejam responsabilizados os golpistas do presente pelos crimes perpetrados contra o nosso povo, contra o país e contra a democracia. Portanto, é impérios que sejam retomados os mecanismos da justiça de transição em relação às vítimas da barbárie do passado, com o não esquecimento dos 350 anos de escravidão, do genocídio indígena e dos 21 anos de ditadura militar.

A reflexão contemporânea sobre as violações sistemáticas de direitos humanos em toda a nossa história nos remete ao campo do direito à verdade, a memória sobre o passado de horror e a luta por justiça, reparação e não repetição. Revela também que tratar o passado de violações e das suas vítimas é constatar que o presente está marcado pela continuidade das violências, pela barbárie e pela produção de novas vítimas. Demonstra que o sucesso das políticas de esquecimento e conciliação levou ao processo da permanente repetição das políticas de exceção e das práticas de terror.

As Comissões da Verdade - como mecanismos da Justiça de Transição -, juntamente com os movimentos de direitos humanos, as organizações de familiares de mortos e desaparecidos, movimentos populares, entidades como a OAB, mesmo com suas limitações, desempenharam um papel importante de ruptura com a lógica da repetição histórica das violações sistemáticas e massivas de direitos humanos. Também foram um instrumento importante para revelar os crimes cometidos durante a ditadura militar, apontando os responsáveis por tais atos, identificando as cadeias de comando e as fontes de financiamento empresarial para as práticas do terror de Estado. Nas suas recomendações apresentaram propostas de políticas públicas de não repetição.

Os retrocessos civilizatórios, com o golpe de 2016 e o revisionismo histórico imposto pelo governo Bolsonaro e pelas forças armadas em relação à ditadura militar e às conquistas democratizantes das décadas anteriores, recolocam a questão da memória, verdade e justiça como um campo de luta política sobre as narrativas da história brasileira.

Para se construir a paz social no presente e no futuro, não se pode perder de vista a vigência das injustiças passadas e a atualidade do sofrimento imposto. Também é necessário articular as injustiças e as violências do passado com as graves violações de direitos humanos que se repetem no presente. E são as políticas de memória em relação às violações do passado que podem contribuir para romper com a lógica das violências que se reproduzem no presente.

Nada temos a comemorar nos dias 31 de março ou 1º de abril, mas não podemos nos calar. As sociedades democráticas não comemoram o terror, não celebram a barbárie, não festejam a morte, a injustiça e a dor, não glorificam os algozes e os tiranos. Por tudo isso, é importante lembrar que há 60 anos o Brasil sofreu um golpe. E que ainda hoje temos a herança presente destes anos de terror. O assassinato de Marielle, a intentona fascista de 8 de janeiro de 2023, o terror do governo Bolsonaro, os 700 mil mortos da Covid-19, as vítimas das práticas genocidas das políticas criminais estão diretamente ligadas aos acontecimentos daquela madrugada de 1º. de abril de 1964, ao aprimoramento da barbárie durante aqueles anos, ao esquecimento e “virar a página” constantes na nossa tradição política. Uma das principais salvaguardas contra o fascismo e os golpistas de hoje é a memória, o não esquecimento e não calar sobre o golpe militar e a ditadura instaurada em 1964.

O que se impõe, como política civilizatória, é o permanente exercício da memória coletiva, lembrando a nossa história, nossas vítimas, nossas dores e sofrimentos, para que NUNCA MAIS SE REPITA.

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