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Sergio Ferrari

Jornalista latino-americano radicado na Suíça. Autor e coautor de vários livros, entre eles: Semeando utopia; A aventura internacionalista; Nem loucos, nem mortos; esquecimentos e memórias dos ex-presos políticos de Coronda, Argentina; Leonardo Boff, advogado dos pobres etc.

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800 milhões de pobres, a principal dívida social

30 anos depois, a segunda Cúpula para o Desenvolvimento Social

800 milhões de pobres, a pricipal dívida social (Foto: Luis Tato/FAO)

Por Sergio Ferrari - Em menos de duas semanas, terá início a Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social, em Doha, no Catar. Uma convocatória marcada pela crise do multilateralismo, bem como por um inevitável cansaço após tantos eventos das Nações Unidas com, relativamente, poucos resultados. Apesar de alguns avanços sociais, os esforços da organização parecem frágeis devido à devastação causada pela persistente pobreza global.Essa será a segunda cúpula, trinta anos após a cúpula de 1995, em Copenhague, e entre 4 e 6 de novembro reunirá milhares de representantes de governos e instituições internacionais e da sociedade civil. O programa inclui uma sessão oficial e uma sessão paralela. Essa última, com um dia para o Fórum da Sociedade Civil e outro para o Fórum do Setor Privado (https://social.desa.un.org/es/world-summit-2025/programme).

Até a terceira semana de outubro, a mídia tinha pouco interesse na dinâmica preparatória da Cúpula do Catar, já ofuscada por uma situação global em que os conflitos na Palestina e na Ucrânia, bem como a imposição unilateral de tarifas por Washington, parecem definir outras prioridades.

Desde a América Latina, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) destaca que, três décadas depois de Copenhague, essa nova convocatória busca avaliar os avanços alcançados e definir novas estratégias para os desafios atuais. Segundo a CEPAL, "problemas como a pobreza, a desigualdade e a exclusão social persistem em um contexto de crises globais e mudanças aceleradas", daí a esperança de que essa cúpula ofereça uma oportunidade chave para fortalecer compromissos e promover políticas que garantam maior coesão social e mobilidade econômica. "A América Latina e o Caribe, com uma longa história no debate sobre desenvolvimento social", antecipa a CEPAL, "apresentarão propostas para reduzir a desigualdade e melhorar a inclusão social". Como expressão de desejos, essa organização latino-americana espera que a cúpula sirva como uma plataforma para consolidar uma perspectiva comum que fortaleça a governança, a cooperação internacional e o papel da sociedade civil na implementação de políticas eficazes para o desenvolvimento sustentável (https://www.cepal.org/es/segunda-cumbre-mundial-desarrollo-social).

Progressos lentos, enormes dívidas civilizatórias

De olho no Catar, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) lançou, na segunda quinzena de outubro, a campanha "Isto é Justiça Social" por meio de uma série de vídeos com histórias humanas que mostram o impacto da justiça social na vida de trabalhadores, empregadores e comunidades (https://www.ilo.org/es/temas-y-sectores/justicia-social).

Algumas semanas antes, no final de setembro, em seu Relatório sobre o Estado da Justiça Social em 2025, a OIT reconheceu várias conquistas desde Copenhague 1995 até o presente. Por exemplo, a diminuição do trabalho infantil de 20,6%, em 1995 para 7,8%, em 2024; e o aumento da taxa de conclusão do ensino médio em 22 pontos percentuais, de 2000 até à data. Além disso, o fato de que a pobreza extrema passou de 4 em cada 10 pessoas em 1995 para 1 em cada 10, em 2023; e que a proporção de trabalhadores pobres caiu de 27,9%, em 2000 para 6,9%, em 2024.

No entanto, a própria OIT reconhece enormes tarefas pendentes e dívidas sociais não resolvidas. Fundamentalmente, a pobreza não foi erradicada, como evidenciam esses dados preocupantes: 800 milhões de pessoas ainda vivem com menos de 3 dólares por dia e uma em cada quatro não tem acesso à água potável. O desequilíbrio resultante permanece uma constante planetária: o 1% mais rico da população mundial possui 20% da renda e 38% da riqueza. Também preocupa que a diferença entre a força de trabalho masculina e feminina melhorou muito pouco desde 1995 e que o índice de informalidade do trabalho foi reduzido em apenas dois pontos percentuais desde 2005, com 58% dos trabalhadores ainda em empregos informais. No que diz respeito aos direitos humanos fundamentais, a OIT constata uma deterioração do direito de associação e de negociação coletiva, para referir apenas dois.

Cansaço de Cúpulas

No final de maio passado, a agência de notícias IPS publicou um comentário analítico intitulado "A Cúpula Social Mundial de 2025 não deve ser uma oportunidade perdida". Escrito por Isabel Ortiz, Odile Frank e Gabriele Koehler, três líderes femininas de prestígio em instituições internacionais e membros da organização Justiça Social Global, a análise observa que "circulam rumores na sede da ONU de que há pouca ambição na Segunda Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social ... [e que] diplomatas e especialistas falam de 'fadiga de cúpulas' após um calendário lotado de reuniões globais: a Cúpula dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável de 2023, a Cúpula do Futuro de 2024 e a Quarta Conferência Internacional sobre Financiamento do Desenvolvimento de 2025" (https://www.un.org/pga/wp-content/uploads/sites/109/2025/04/Zero-Draft-clean-as-of-24-April-2025-12pm.pdf).Além disso, deixam escapar que o Projeto de Declaração Política da Cúpula Social "carece da ambição necessária para enfrentar as múltiplas crises sociais que nosso mundo está atravessando" (https://ipsnoticias.net/2025/05/la-cumbre-social-mundial-de-2025-no-debe-ser-una-oportunidad-perdida/).

Para essas três coautoras, a realidade é contundente: "Há muito em jogo. O mundo mudou drasticamente desde a histórica primeira Cúpula Social, em 1995, em Copenhague. Naquela época, os líderes mundiais reconheceram a necessidade de um desenvolvimento centrado no ser humano. Hoje, a urgência cresceu exponencialmente em um mundo fraturado e volátil".

O ponto chave do comentário é a análise da atual situação mundial, com uma população que deve enfrentar múltiplas crises sobrepostas: uma policrise pós-pandemia, uma crise do custo de vida que empurrou milhões para a pobreza, a priorização do bem-estar corporativo sobre o dos indivíduos, uma rápida deterioração democrática que exacerba as desigualdades, uma crescente emergência climática e uma crise prolongada de empregos que, provavelmente, se deteriorará drasticamente devido ao uso de inteligência artificial (IA). Por outro lado, a confiança nos governos e nas instituições multilaterais está se desgastando, o descontentamento social e os protestos estão se multiplicando e as desigualdades, tanto domésticas quanto internacionais, atingiram níveis grotescos. Por todas essas razões, concordam que "Uma declaração tímida [na Cúpula do Catar, em novembro] ... seria uma traição àqueles que continuam a ver nas Nações Unidas um modelo de justiça e dignidade humana".

Como evitar tudo isso? Segundo essa análise, a Declaração deve definir ações vinculantes e compromissos explícitos para construir sociedades que funcionem para todos e gerem prosperidade para todos. Isso envolve, entre outras iniciativas, "reduzir as desigualdades de renda e riqueza que prejudicam profundamente a coesão social, a governança democrática e o desenvolvimento sustentável". Além disso, reconhecer a justiça de gênero como um pilar fundamental, sem o qual metade da humanidade seria traída e fracassando em sua missão de promover os direitos humanos, a dignidade e o desenvolvimento sustentável

Por outro lado, Ortiz, Frank e Koehler insistem que os serviços públicos universais e de qualidade devem ser garantidos por meio de sistemas financiados e gerenciados com fundos públicos para proteger os trabalhadores, remover barreiras a serviços de qualidade por meio de investimentos públicos sólidos baseados em financiamento mais justo e proteger o desenvolvimento social dos cortes orçamentários e de privatizações.

No que diz respeito à crescente precariedade da renda, propõem enfrentá-la investindo em trabalho decente com direitos/padrões trabalhistas e na extensão de sistemas e níveis universais de proteção social. E promover uma economia do cuidado que apoie as mulheres e priorize o bem-estar em detrimento do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Conceitualmente, argumentam, as limitações dos paradigmas focados no crescimento devem ser reconhecidas e, em vez disso, políticas voltadas para a sustentabilidade ecológica e o desenvolvimento equitativo devem ser adotadas. Não menos essencial nesse panorama de demandas é a luta contra os movimentos antidireitos e antigênero e a reafirmação dos compromissos globais com os direitos humanos e a democracia.

O avanço em direção à justiça social global confronta o planeta com suas próprias contradições sistêmicas, entre um ideal de maior redistribuição –com Estados sociais mais fortes– e um sistema hegemônico que centraliza no econômico e é excludente e discriminatório no social.

Tradução: Rose Lima.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.