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João Scarpanti

Jornalista independente, fotógrafo e graduando em História pela UNESP Franca

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A África Ocidental contemporânea entre revoltas, golpes e revoluções

Agora o Sahel vê surgir seus insurgentes

A África Ocidental contemporânea entre revoltas, golpes e revoluções (Foto: Reuters)

Assim como outrora o Sul da América pariu seus caudilhos, Rosas em Buenos Aires, López no

Paraguai, Sandino nas montanhas da Nicarágua, homens de farda e verbo que se ergueram entre

a poeira dos quartéis com o fervor do povo, para depois tombarem sob o peso das repúblicas

burguesas dependentes do imperialismo e suas burguesias incapazes de se desenvolver que delas

se alimentavam, também agora a África Ocidental vê surgir seus generais românticos, no

encontro daqueles que limpam suas Kalashnikovs com a calma ritual de quem aprendeu a

esperar a inevitável inquietação popular advinda da crise do imperialismo. Ibrahim Traoré em

Uagadugu, Assimi Goïta em Bamako, Mamady Doumbouya em Conacri, nomes que se

pronunciam pela imprensa burguesa com o mesmo assombro com que um ou dois séculos antes

se dizia Bolívar, Zapata, Artigas.

Entre as sombras de palácios coloniais e os ecos das rádios estrangeiras, eles proclamam sua

própria independência tardia, erguendo-se contra o que chamam de neocolonialismo, como

outrora os libertadores se insurgiram contra a corte de Madri e os banqueiros de Londres. Onde

antes desfilavam os uniformes de Perón, Torrijos ou Velasco Alvarado, agora marcham os

soldados do Sahel, sob bandeiras novas, mas guiados por antigas promessas: a terra, o pão, a

dignidade.

Tal como no 18 de Brumário, a história parece repetir-se, não como farsa, mas como eco

insurgente de povos que ainda não se reconciliaram com o próprio passado. No entanto, não há

apenas golpes de Estado: há uma tentativa de refundação, um brado contra as metrópoles

invisíveis que, de Paris a Washington, ainda submetem o destino dos homens ao jugo do

decadente e fétido capital.

Agora o Sahel vê surgir seus generais insurgentes, seus nuevos caudilhos, se é que podemos

chamá-los assim, com toda a licença poética que essa caracterização exige. Não são generais de

casaca nem burocratas de gabinete; são filhos do Sahel, que falam ao povo em tom de irmão e

comandante, compañeros de miseria y de esperanza. Quando sobem num jipe e levantam a

bandeira, o gesto tem algo de Bolívar e de Zapata, mas também de Lumumba, no Centro,

Gaddafi, no Norte, e Sankara, o “Chê Guevara africano”, na região em que exploraremos

brevemente, a África Ocidental, uma linhagem de revoltas e sonhos.

Unidos pela tríade circunstancial que engendra até mesmo nosso tenentismo nacional, el polvo,

la sed, la rabia contra el imperialismo, assim foram moldados. Nas praças, o povo grita seus

nomes como quem invoca a herança dos milhões oprimidos pelo centro do capitalismo, e eles

respondem com promessas de justiça. No rosto queimado pelo sol africano há o reflexo das

serras de Ayacucho e do altiplano de Potosí, o mesmo brilho antigo de quando os condenados da

terra se puseram de pé para fazer história.

Desde as planícies do Prata: la misma historia, la misma herida colonial, el mismo deseo de

romper las cadenas.

Porque quando o Sahel se levanta, é também a América que desperta, unida não pelo mapa, mas

pela cicatriz.Ibrahim Traoré em Uagadugu, Assimi Goïta em Bamako, Mamady Doumbouya em Conacri, e

os oficiais de Níger e Gabão: são nomes que ressoam com a mesma força simbólica. encarnando

o velho sonho de libertar a pátria do jugo estrangeiro.

Os golpes que incendiaram a África Ocidental não são apenas movimentos militares, são

capítulos de um crepúsculo colonial. Desde o Mali, em 2021, passando pela Guiné, Burquina

Fasso e Níger, até chegar ao Gabão, o povo saiu às ruas clamando pela “morte à França”, como

outrora as multidões clamaram pela queda dos vice-reis. Empunharam bandeiras da Rússia, não

por amor ao Oriente, mas por ódio à velha metrópole, a mesma Paris que, desde o século XVII,

pilha a África com a arrogância de um ladrão que se diz civilizador.

Durante séculos, o império francês fez da África um laboratório de suplício. Massacrou povos

inteiros, transformou o trabalho forçado em lei, chicoteou, mutilou e pendurou seus rebeldes em

praças públicas, tudo em nome da razão iluminada e da ordem republicana. A França, que tanto

se orgulha de ter decapitado seus reis, manteve na África uma coroa invisível: o franco CFA, os

“acordos de cooperação”, o depósito compulsório de ouro e reservas no tesouro francês. A

independência de 1960 foi uma farsa administrativa; o império apenas trocou o chicote pelo

memorando, a guilhotina pelo banco central.

Quando o deserto se tornou palco da guerra, após o desmonte da Líbia em 2011 e o avanço das

milícias jihadistas, Paris voltou, vestida de libertadora. Chamou-se “Operação Barkhane”, mas

era o velho colonialismo com nome de código. Prometia combater o terror, mas alimentava

ditaduras dóceis, multiplicando as bases e os contratos de mineração. A bandeira tricolor

tremulava sobre o Sahel como outrora sobre o Senegal: em nome da segurança, o saque; em

nome da civilização, a tortura.

E então, de súbito, vieram os golpes. Não comandados por tecnocratas de gravata, mas por

jovens de boina e fuzil, filhos de uma terra cansada de mendigar dignidade. Marcharam contra

os quartéis franceses, contra os generais educados em Paris, contra o status quo colonial que

jamais se retirou. São eles: Traoré, Goïta, Doumbouya. Os novos rostos da velha tragédia da

libertação. Como no 18 de Brumário, a história repete-se, mas agora os uniformes são africanos

e o inimigo, o mesmo grande Nêmesis da classe dos despossuídos em nossa era: o imperialismo

e suas burguesias dependentes, que apresentam sinais de um esperneio final buscando o controle

da situação política internacional. Como um animal acuado, o imperialismo rosna e late, mas o

velho cão já não mais pode morder como antes. Ou, quem sabe, isso é só a fé romântica do

narrador, que ainda acredita na fúria dos povos.

O Mali que foi, outrora, o coração de um império dourado, aquele que, entre os séculos XIII e

XVI, dominou as rotas de ouro e sal, fazendo de Tombuctu o nome que soava como feitiço nos

ouvidos europeus. Era o tempo de Mansa Musa, o monarca que, em sua peregrinação a Meca,

fez o preço do ouro despencar em todo o Mediterrâneo. O Império do Mali se dissolveu, mas,

como brasas sob a areia, dele nasceu o Império Songai, ainda mais vasto, mais erudito, com

suas universidades corânicas e caravanas infindáveis.

Séculos depois, quando o sol do colonialismo europeu lançou sua sombra sobre a África

Ocidental, os franceses avançaram a partir do Senegal e fincaram a bandeira tricolor no Sahel,

batizando o país de Sudão Francês. E assim foi até 1960, quando a chama da independência

reacendeu o nome antigo, Mali, e um novo homem tomou as rédeas: Modibo Keïta, pan-

africanista, sonhador, herdeiro espiritual de Nkrumah e Nasser. Mas, como tantos heróis de

nossa América e de nossa África, Keïta foi traído pelo frio realismo do império, deposto eassassinado em 1968 por um golpe liderado por Moussa Traoré, o primeiro de muitos militares

a se vestir com o fardão do “realismo político” e a servir Paris sob o disfarce da ordem.

Traoré governou até 1991, quando outro golpe, o de Amadou Toumani Touré, prometeu

romper o ciclo. Mas as promessas da democracia liberal, importadas como quinquilharias

coloniais, continuaram sob vigilância francesa. Alpha Oumar Konaré, eleito em 1992 e

novamente em 1997, e o próprio Touré, eleito em 2002, mantiveram o Mali dentro da órbitaAssim como outrora o Sul da América pariu seus caudilhos, Rosas em Buenos Aires, López no Paraguai, Sandino nas montanhas da Nicarágua, homens de farda e verbo que se ergueram entre a poeira dos quartéis com o fervor do povo, para depois tombarem sob o peso das repúblicas burguesas dependentes do imperialismo e suas burguesias incapazes de se desenvolver que delas se alimentavam, também agora a África Ocidental vê surgir seus generais românticos, no encontro daqueles que limpam suas Kalashnikovs com a calma ritual de quem aprendeu a esperar a inevitável inquietação popular advinda da crise do imperialismo. Ibrahim Traoré em Uagadugu, Assimi Goïta em Bamako, Mamady Doumbouya em Conacri, nomes que se pronunciam pela imprensa burguesa com o mesmo assombro com que um ou dois séculos antes se dizia Bolívar, Zapata, Artigas.

Entre as sombras de palácios coloniais e os ecos das rádios estrangeiras, eles proclamam sua própria independência tardia, erguendo-se contra o que chamam de neocolonialismo, como outrora os libertadores se insurgiram contra a corte de Madri e os banqueiros de Londres. Onde antes desfilavam os uniformes de Perón, Torrijos ou Velasco Alvarado, agora marcham os soldados do Sahel, sob bandeiras novas, mas guiados por antigas promessas: a terra, o pão, a dignidade.

Tal como no 18 de Brumário, a história parece repetir-se, não como farsa, mas como eco insurgente de povos que ainda não se reconciliaram com o próprio passado. No entanto, não há apenas golpes de Estado: há uma tentativa de refundação, um brado contra as metrópoles invisíveis que, de Paris a Washington, ainda submetem o destino dos homens ao jugo do decadente e fétido capital.

Agora o Sahel vê surgir seus generais insurgentes, seus nuevos caudilhos, se é que podemos chamá-los assim, com toda a licença poética que essa caracterização exige. Não são generais de casaca nem burocratas de gabinete; são filhos do Sahel, que falam ao povo em tom de irmão e comandante, compañeros de miseria y de esperanza. Quando sobem num jipe e levantam a bandeira, o gesto tem algo de Bolívar e de Zapata, mas também de Lumumba, no Centro, Gaddafi, no Norte, e Sankara, o “Chê Guevara africano”, na região em que exploraremos brevemente, a África Ocidental, uma linhagem de revoltas e sonhos.

Unidos pela tríade circunstancial que engendra até mesmo nosso tenentismo nacional, el polvo, la sed, la rabia contra el imperialismo, assim foram moldados. Nas praças, o povo grita seus nomes como quem invoca a herança dos milhões oprimidos pelo centro do capitalismo, e eles respondem com promessas de justiça. No rosto queimado pelo sol africano há o reflexo das serras de Ayacucho e do altiplano de Potosí, o mesmo brilho antigo de quando os condenados da terra se puseram de pé para fazer história.

Desde as planícies do Prata: la misma historia, la misma herida colonial, el mismo deseo de romper las cadenas.

Porque quando o Sahel se levanta, é também a América que desperta, unida não pelo mapa, mas pela cicatriz.

Ibrahim Traoré em Uagadugu, Assimi Goïta em Bamako, Mamady Doumbouya em Conacri, e os oficiais de Níger e Gabão: são nomes que ressoam com a mesma força simbólica. encarnando o velho sonho de libertar a pátria do jugo estrangeiro.

Os golpes que incendiaram a África Ocidental não são apenas movimentos militares, são capítulos de um crepúsculo colonial. Desde o Mali, em 2021, passando pela Guiné, Burquina Fasso e Níger, até chegar ao Gabão, o povo saiu às ruas clamando pela “morte à França”, como outrora as multidões clamaram pela queda dos vice-reis. Empunharam bandeiras da Rússia, não por amor ao Oriente, mas por ódio à velha metrópole, a mesma Paris que, desde o século XVII, pilha a África com a arrogância de um ladrão que se diz civilizador.

Durante séculos, o império francês fez da África um laboratório de suplício. Massacrou povos inteiros, transformou o trabalho forçado em lei, chicoteou, mutilou e pendurou seus rebeldes em praças públicas, tudo em nome da razão iluminada e da ordem republicana. A França, que tanto se orgulha de ter decapitado seus reis, manteve na África uma coroa invisível: o franco CFA, os “acordos de cooperação”, o depósito compulsório de ouro e reservas no tesouro francês. A independência de 1960 foi uma farsa administrativa; o império apenas trocou o chicote pelo memorando, a guilhotina pelo banco central.

Quando o deserto se tornou palco da guerra, após o desmonte da Líbia em 2011 e o avanço das milícias jihadistas, Paris voltou, vestida de libertadora. Chamou-se “Operação Barkhane”, mas era o velho colonialismo com nome de código. Prometia combater o terror, mas alimentava ditaduras dóceis, multiplicando as bases e os contratos de mineração. A bandeira tricolor tremulava sobre o Sahel como outrora sobre o Senegal: em nome da segurança, o saque; em nome da civilização, a tortura.

E então, de súbito, vieram os golpes. Não comandados por tecnocratas de gravata, mas por jovens de boina e fuzil, filhos de uma terra cansada de mendigar dignidade. Marcharam contra os quartéis franceses, contra os generais educados em Paris, contra o status quo colonial que jamais se retirou. São eles: Traoré, Goïta, Doumbouya. Os novos rostos da velha tragédia da libertação. Como no 18 de Brumário, a história repete-se, mas agora os uniformes são africanos e o inimigo, o mesmo grande Nêmesis da classe dos despossuídos em nossa era: o imperialismo e suas burguesias dependentes, que apresentam sinais de um esperneio final buscando o controle da situação política internacional. Como um animal acuado, o imperialismo rosna e late, mas o velho cão já não mais pode morder como antes. Ou, quem sabe, isso é só a fé romântica do narrador, que ainda acredita na fúria dos povos.

O Mali que foi, outrora, o coração de um império dourado, aquele que, entre os séculos XIII e XVI, dominou as rotas de ouro e sal, fazendo de Tombuctu o nome que soava como feitiço nos ouvidos europeus. Era o tempo de Mansa Musa, o monarca que, em sua peregrinação a Meca, fez o preço do ouro despencar em todo o Mediterrâneo. O Império do Mali se dissolveu, mas, como brasas sob a areia, dele nasceu o Império Songai, ainda mais vasto, mais erudito, com suas universidades corânicas e caravanas infindáveis.

Séculos depois, quando o sol do colonialismo europeu lançou sua sombra sobre a África Ocidental, os franceses avançaram a partir do Senegal e fincaram a bandeira tricolor no Sahel, batizando o país de Sudão Francês. E assim foi até 1960, quando a chama da independência reacendeu o nome antigo, Mali, e um novo homem tomou as rédeas: Modibo Keïta, pan-africanista, sonhador, herdeiro espiritual de Nkrumah e Nasser. Mas, como tantos heróis de nossa América e de nossa África, Keïta foi traído pelo frio realismo do império, deposto e assassinado em 1968 por um golpe liderado por Moussa Traoré, o primeiro de muitos militares a se vestir com o fardão do “realismo político” e a servir Paris sob o disfarce da ordem.

Traoré governou até 1991, quando outro golpe, o de Amadou Toumani Touré, prometeu romper o ciclo. Mas as promessas da democracia liberal, importadas como quinquilharias coloniais, continuaram sob vigilância francesa. Alpha Oumar Konaré, eleito em 1992 e novamente em 1997, e o próprio Touré, eleito em 2002, mantiveram o Mali dentro da órbita parisiense, vigiado por ONGs, conselheiros militares e mineradoras disfarçadas de empresas de saneamento.

Em 2012, os ventos do deserto trouxeram o caos líbio: jihadistas armados pelas ruínas de Trípoli atravessaram o Saara e incendiaram o norte do país. O golpe voltou, como se fosse o verdadeiro idioma político da região, e o poder se fragmentou em nome da estabilidade. Ibrahim Boubacar Keïta, eleito em 2013, seria o rosto civil do neocolonialismo: garantiu os contratos franceses, aceitou a invasão militar disfarçada de “missão de paz” e revalidou a servidão.

Mas o ouro, sete minas resplandecendo perto da fronteira com o Senegal, nunca foi neutro. O ouro puxa o gatilho. Em 2020, um novo golpe: desta vez, liderado pelo Comitê Nacional para a Salvação do Povo (CNSP), sob o comando do coronel Assimi Goïta. Um governo interino foi montado, como vitrine de transição, com Bah N’Daw na presidência. Mas o real poder continuava no quartel, onde os homens de Goïta traçavam o destino do Mali sob a luz mortiça das lâmpadas a diesel.

Em maio de 2021, Goïta dispensou as máscaras. Prendeu o presidente, dissolveu o governo e assumiu o poder. As sanções da CEDEAO, instrumento econômico do imperialismo, caíram sobre o país. As fronteiras fecharam-se. E então, o gesto simbólico: expulsar as forças francesas. Romper, ao menos no gesto, o jugo de Paris. Goïta voltou-se à Rússia, e dela recebeu o auxílio do Grupo Wagner, mercenários ou aliados, sendo a primeira opção a visão pejorativa do leitor incauto envenenado pelo cálice de cicuta da imprensa burguesa, para enfrentar os jihadistas que ainda percorrem o norte.

O velho império não partiu, apenas mudou de forma. Suas empresas, de água, energia, telecomunicações, mineração, permanecem sob disfarces corporativos. O Mali continua sendo o ouro da França, a mesma febre que um dia moveu colonos, agora movendo executivos. Esse é o caráter do imperialismo, o controle financeiro e político. (African Domino; Tehran Times, 26/9/2023)

Depois do Mali, o eco dos quartéis correu pelo Sahel como trovão seco. A chama que Assimi Goïta acendera em Bamako saltou as fronteiras e acendeu em Conacri uma fagulha que o império não conseguiu conter. Era 5 de setembro de 2021, e os tanques marcharam, não pela glória, mas pela ruptura.

A terra que hoje chamamos Guiné fora, séculos atrás, parte do mesmo Império Mali, esse velho coração da África de ouro, caravanas e saberes. Mais tarde, fragmentou-se em reinos menores, até que, no século XIX, os franceses, sempre eles, vindos do Atlântico, fincaram bandeira e chicote. Mas em 1958, quando Ahmed Sékou Touré disse “não” ao domínio francês, Paris estremeceu. Era o primeiro a romper as amarras da Comunidade Francesa, o primeiro a dizer que preferia “a liberdade na pobreza à riqueza na escravidão”.

Touré governou como um dos grandes nomes do pan-africanismo nascente, irmão espiritual de Nkrumah e Nyerere, mas o peso da história é mais cruel que a fé dos homens. Ao fim dos anos 1970, cedeu ao canto neoliberal, e o sonho revolucionário começou a dissolver-se em tecnocracia e austeridade. Morreu em 1984, e com ele morreu a primeira aurora da Guiné livre.

Em seu lugar ergueu-se Lansana Conté, general e herdeiro das doutrinas do FMI, que governou como feitor moderno, vigiando minas e portos em nome das corporações estrangeiras. Durante um quarto de século, a Guiné foi o laboratório de uma ditadura de mercado: privatizações, repressão e a humilhação cotidiana das massas.

Mas, em dezembro de 2008, quando Conté morreu, o poder foi tomado de assalto por outro capitão, Moussa Dadis Camara, que dissolveu o governo e a constituição em nome de uma nova ordem militar. Por um instante, o povo acreditou ver o retorno da dignidade. Mas a esperança, mais uma vez, foi sitiada: bloqueios da CEDEAO, sanções da União Africana, condenações da União Europeia, congelamento de contas pelos bancos de Londres e Paris. Camara sofreu um atentado e foi obrigado ao exílio, ironia das ironias, no Burkina Faso, berço de Sankara.

O poder, então, retornou à normalidade dos vencidos. Em 2010, Alpha Condé ascendeu à presidência, com o selo das mineradoras e o aplauso dos observadores internacionais. “Democracia”, chamaram. Mas era a velha democracia colonial, a que governa em francês, pensa em dólar e vende em libra. Condé, “civil”, foi mais útil ao império do que todos os generais antes dele. Privatizou, reverteu direitos e garantiu o fluxo das riquezas: bauxita, diamantes, ouro, o sangue mineral da África. (Reuters, 20/5/2016)

Quando alterou a constituição para se perpetuar no poder, em 2020, o país explodiu em protestos. E, como se a história andasse em círculos de pólvora, o quartel voltou a falar. Dez anos após a primeira tentativa, em setembro de 2021, o coronel Mamady Doumbouya, rosto jovem, olhar de aço, uniforme bordado com a bandeira nacional, derrubou o regime e instaurou o Comitê Nacional de Reconciliação e Desenvolvimento (CNRD). Suspendeu a constituição, dissolveu o parlamento e anunciou o que soava, em tom de Brumário africano, como “a refundação da nação”.

A França protestou, a CEDEAO ameaçou, e as embaixadas fecharam suas portas, mas a Guiné, cansada de obedecer, uniu-se ao Mali e expulsou, em 2022, as forças francesas de seu território.

A Guiné é chamada, com justiça, de “torre d’água da África”, seus rios nascem como veias da própria terra. Sob o solo, guarda um terço das reservas mundiais de bauxita, além de ouro, diamantes, cobalto, manganês e urânio. “A França continua sendo o maior explorador dos recursos da Guiné, e embora extraia dela alumínio, arroz e frutos processados, ainda considera o país uma riqueza ‘amplamente subexplorada’ da qual Paris deve estar ciente”, observa o Tehran Times. E assim, como o ouro do Mali e o alumínio da Guiné, o sonho africano continua sendo escavado, às vezes com picaretas, às vezes com baionetas modernas. (African Domino, 27/9/2023).

Como em quase toda a África, as fronteiras do Níger não nasceram da terra, mas da pena dos colonizadores. Linhas traçadas sobre mapas por mãos europeias dividiram povos, rios e desertos segundo a força política e econômica das potências do velho continente, não segundo a geografia ou a história dos homens que ali viviam. Inglaterra e França repartiram o curso do grande rio Níger: aos franceses coube o deserto e suas caravanas tuaregues; aos ingleses, as savanas férteis da futura Nigéria.

A conquista francesa foi longa e sangrenta. A revolta tuaregue de 1916–1917 tentou, em vão, deter o avanço de Paris sobre o Saara. Em 1922, o Níger foi enfim reduzido a colônia, e a bandeira tricolor tremulou sobre Niamey. A independência viria em 1960, mas, como em tantos outros lugares, o grilhão apenas mudou de forma. Hamani Diori, o primeiro presidente, era um servo fiel do imperialismo francês, guardião do status quo neocolonial.

Em 1974, uma crise econômica sacudiu o país e o tenente Seyni Kountché tomou o poder em um golpe de Estado. Seu governo, autoritário e paternalista, manteve o Níger dependente das potências estrangeiras, ainda que tentasse equilibrar-se entre Paris e o mundo árabe. Após sua morte, em 1987, o general Ali Saibou herdou um país em ebulição: estudantes nas ruas, levantes tuaregues no norte, o deserto em chamas. Para conter a pressão, Saibou abriu o regime e convocou eleições multipartidárias.

A década de 1990 inaugurou o ciclo dos golpes e contragolpes. Mahamane Ousmane foi eleito em 1993 e deposto três anos depois. Ibrahim Baré Maïnassara tomou seu lugar, apenas para ser ele mesmo derrubado em 1999. Seguiram-se novas eleições, vencidas por Mamadou Tandja, que, embriagado pelo poder, prorrogou o próprio mandato até cair, em 2010, sob novo golpe militar. Em 2011, Mahamadou Issoufou foi eleito, e reeleito em 2016, abrindo as portas para a presença militar francesa sob o pretexto de combater o “terrorismo”.

Em 2021, Mohamed Bazoum assumiu a presidência, celebrando a primeira transição “democrática” da história do país, ou, talvez, apenas o que o Ocidente gostaria de acreditar que fosse. Dois anos depois, em julho de 2023, o Níger rebelou-se contra o jugo imperial. Um golpe de caráter nacionalista depôs Bazoum, com o apoio de Mali e Burquina Fasso. Abdourahamane Tchiani, chefe da guarda presidencial, tornou-se o rosto da nova junta: o Conselho Nacional para a Salvação da Pátria.

Mais uma estrela insurgente se acendeu no Sahel. Em resposta, Paris e seus satélites da CEDEAO ameaçaram invadir o país, não por amor à democracia, mas pelo urânio. Um terço da produção da estatal francesa Orano (antiga Areva) vem das minas nigerinas, e quase metade de suas ações pertencem ao próprio Estado francês. O destino de Níger, como o ouro de Burquina e o sangue do Mali, segue sendo disputado entre os homens que trabalham a terra e os que desenham fronteiras sobre ela.

Ao sul do Sahel, onde o calor dobra o horizonte e o petróleo escurece os rios, ergue-se a Nigéria, o gigante africano cujas fronteiras, como tantas outras no continente, foram traçadas não pela geografia nem pelos povos, mas pelo compasso das potências coloniais. O império britânico a moldou à sua imagem: uma colônia feita de linhas retas e divisões artificiais, separando povos antigos e unindo na força do mercado o que jamais se unira pela história.

Quando, em 1960, a bandeira da Union Jack foi finalmente baixada e o verde da independência subiu aos mastros, a Nigéria acreditou que o futuro lhe pertencia. Mas o presente ainda era de Londres. A república federal nascente foi um frágil mosaico de etnias e religiões, iorubás no sudoeste, hauçás e fulanis no norte muçulmano, ibos no sudeste cristão. Sob a presidência de Nnamdi Azikiwe, o país tentou se erguer como uma federação moderna, mas a herança colonial, de privilégios regionais, desigualdade e dependência, corroía suas fundações.

Em 1966, o exército, que desde cedo se tornara o verdadeiro árbitro da política nacional, irrompeu na cena. Jovens oficiais do sudoeste tomaram o poder; meses depois, outro golpe, desta vez, vindo do norte, pôs fim ao governo. A desconfiança entre as regiões transformou-se em guerra. No sudeste, a Região Oriental declarou independência, formando a República de Biafra, em 1967. A França, movida por seus próprios interesses petrolíferos através da Elf Aquitaine, apoiou os secessionistas. Do outro lado, Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética apoiaram o governo central, um raro consenso entre inimigos, selado sobre o sangue africano.

A guerra civil nigeriana (1967–1970) foi uma das mais brutais do século XX. Milhões morreram, muitos, lentamente, de fome, enquanto aviões estrangeiros despejavam armas sobre um território reduzido a cinzas. Ao fim, o governo federal triunfou. A unidade nacional foi mantida, mas o preço foi terrível: a militarização do Estado e a subordinação total da política aos quartéis. A ditadura do general Yakubu Gowon consolidou o poder central e alinhou o país aos interesses norte-americanos.

Em 1975, um golpe liderado por jovens oficiais, entre eles Olusegun Obasanjo, Ibrahim Babangida e Muhammadu Buhari, derrubou Gowon. O poder passou às mãos do general Murtala Mohammed, que tentou resgatar uma via africana ao desenvolvimento. Murtala aproximou a Nigéria de Angola e de outras nações recém-libertadas, falava em soberania e em independência econômica. Morreu em 1976, fuzilado num golpe fracassado. Obasanjo, seu vice, assumiu e deu sequência ao projeto de modernização, investindo em empresas estatais e infraestrutura. Mas a repressão aos sindicatos e as concessões ao capital estrangeiro mostraram os limites do nacionalismo nigeriano.

O petróleo, descoberto em larga escala, tornou-se ao mesmo tempo bênção e maldição. Durante a crise de 1973, quando os países árabes fecharam as torneiras, foi o petróleo nigeriano que abasteceu os tanques e as fábricas do Ocidente. O país se tornou peça-chave da estratégia energética dos Estados Unidos. O destino da Nigéria, desde então, passou a ser escrito pelas bolsas de valores de Londres e Nova York.

Em 1979, Obasanjo realizou uma transição civil e entregou o poder a Shehu Shagari, eleito presidente. Mas a república não duraria. Em 1983, Buhari tomou o poder num golpe e impôs uma ditadura de austeridade, reprimindo greves e impondo medidas ditadas pelo FMI. Dois anos depois, Babangida o depôs, prometendo reformas, e entregou o país ao neoliberalismo. Privatizações em massa, destruição de direitos sociais e entrega do patrimônio público marcaram sua era. A Nigéria foi empurrada de volta à dependência, agora não pela coroa britânica, mas pelos bancos internacionais.

Em 1993, o empresário iorubá Moshood “MKO” Abiola venceu as eleições presidenciais. Mas o Exército, fiel aos interesses imperialistas, anulou o resultado. O país mergulhou em protestos e repressão. Babangida renunciou, instaurando um governo interino chefiado por Ernest Shonekan, que durou poucos meses: em novembro, Sani Abacha assumiu o poder num novo golpe.

A ditadura de Abacha foi um longo pesadelo. Ele dissolveu instituições, censurou a imprensa, destruiu sindicatos e governou pela força e pelo medo. Abiola, que se autoproclamara presidente, foi preso e morreu em 1998, no dia em que seria libertado. Nesse mesmo ano, Abacha também morreu, encerrando uma década de chumbo que deixou a Nigéria endividada, empobrecida e desindustrializada.

O general Abdulsalami Abubakar conduziu um breve governo de transição e convocou eleições. Em 1999, Obasanjo voltou ao poder, agora pelas urnas, apresentado como símbolo de reconciliação nacional. Mas o velho general já não falava em soberania africana, falava a língua do capital. Durante a campanha, viajou aos Estados Unidos em avião da Chevron, símbolo vivo do novo colonialismo. No poder, promoveu privatizações em massa, abriu o setor petrolífero ao capital estrangeiro e multiplicou os bancos privados. Os Estados Unidos e o FMI voltaram a ditar as regras.

Reeleito em 2003, Obasanjo consolidou a submissão econômica. Seu Partido Democrático Popular (PDP) governou até 2015, elegendo Umaru Yar’Adua, morto em 2010, e depois Goodluck Jonathan, que aprofundou a abertura ao capital estrangeiro e o alinhamento político ao Ocidente. Sob Jonathan, a Nigéria tornou-se um bastião das empresas de petróleo e gás norte-americanas, mas também um caldeirão de desigualdade, violência e corrupção.

Em 2015, o ex-ditador Buhari retornou, desta vez pelas urnas, e com apoio explícito de Washington e da revista The Economist, que o descreveu como “o menos pior”. No poder, Buhari reprimiu greves e protestos, enquanto consolidava o controle imperialista sobre o petróleo. Seu governo também foi incapaz de conter o avanço dos grupos jihadistas no norte e as crises sociais no delta do Níger.

Em 2023, Bola Tinubu, do mesmo partido de Buhari, o Congresso de Todos os Progressistas (APC), venceu as eleições. Tinubu é a face perfeita do novo tipo de colônia: educado nos Estados Unidos, ex-funcionário da Mobil (hoje ExxonMobil, segunda maior produtora de petróleo do país), ascendeu ao poder com a benção das corporações. Sob ele, a Nigéria parece caminhar para o abismo neoliberal. Suas primeiras medidas foram as que o FMI e o capital esperavam: eliminação dos subsídios aos combustíveis, aumento da gasolina, inflação disparada e protestos nas ruas.

A Nigéria, com 224 milhões de habitantes e PIB de US$ 390 bilhões, é o coração econômico da África Ocidental e a peça central da CEDEAO. Controlá-la é controlar o Golfo da Guiné, o Atlântico e os recursos estratégicos da região. Por isso, quando os golpes nacionalistas varreram o Níger, o Burquina Fasso e a Guiné, Paris e Washington correram a pressionar Tinubu. O presidente nigeriano seguiu as ordens: impôs sanções ao Níger, falou em intervenção militar e colocou o exército em alerta. Mas o próprio país está dividido. O Senado barrou a intervenção, e dentro da CEDEAO os parlamentares nigerianos se fragmentaram.

Enquanto isso, o norte continua em guerra, dominado por milícias jihadistas, e o sul fervilha com greves e manifestações contra a carestia. A cada novo decreto, cresce a revolta. A Nigéria parece à beira de uma ruptura: entre a obediência ao império e a necessidade de sobrevivência popular.

O gigante africano cambaleia, com os pés de petróleo e o corpo de miséria. Mas se ele despertar, se os ventos nacionalistas que sopram do Sahel chegarem até o delta do Níger, o imperialismo ouvirá o estampido e o estrondo, e sentirá o gelado em seus dedos dos pés e mãos, como um homem baleado que sequer tem tempo para processar o ocorrido.

Se as potências coloniais decidirem lançar uma ofensiva contra o Níger, o Senegal será o braço direito da Nigéria na CEDEAO. Foi o que anunciou, com firmeza diplomática, a ministra das Relações Exteriores Aïssata Tall Sall: as tropas senegalesas estão prontas para intervir. Uma frase breve, dita em nome da legalidade africana, mas que, sob o sol de Dakar, soa como um eco distante das ordens vindas de Paris.

A história do Senegal é, desde o início, um espelho do destino africano sob o jugo europeu. Muito antes dos franceses, portugueses, holandeses e britânicos já singravam suas costas, atraídos pela posição estratégica da península de Cabo Verde, onde o Atlântico se curva em direção ao Novo Mundo. Ali nasceu um dos portos mais infames da história: a ilha de Gorée, a “porta sem retorno”, de onde milhões de africanos foram embarcados em navios negreiros. No auge do tráfico, diz-se que um terço da população senegalesa vivia sob a escravidão, não como trabalhadores, mas como mercadorias.

A França aboliu oficialmente o tráfico em 1815, mas logo tratou de substituí-lo por outra forma de pilhagem. Expandiu-se para o interior, conquistando território e impondo o modelo de “colonização civilizatória”, que em Paris era proclamado como missão moral, mas na África significava chicote, imposto e extração. No fim do século XIX, o Senegal tornou-se o coração da África Ocidental Francesa, centro administrativo e militar do império. Dakar, a capital, foi moldada à imagem de Marselha: largas avenidas, porto moderno, e bairros onde apenas os europeus podiam viver.

Em 1959, a França, tentando controlar o ímpeto das independências, permitiu a criação de uma Federação do Mali, unindo Senegal e Sudão Francês. O sonho durou pouco: divergências políticas e interesses coloniais enterraram a união em menos de um ano. Em 1960, o Senegal proclamou sua independência.

Seu primeiro presidente foi Léopold Sédar Senghor, poeta, intelectual e fundador do conceito de “negritude”, uma filosofia que reivindicava o orgulho e a dignidade da identidade africana diante do colonialismo europeu. Senghor acreditava na força cultural do continente, mas também na reconciliação com a metrópole: defendia uma independência “com a França, não contra ela”. Era um socialismo de gabinete, moldado mais pela Sorbonne que pelas ruas de Dakar. Ainda assim, foi ele quem deu forma à nação, escreveu seu hino e fez da poesia um ato de Estado.

O governo de Senghor, nacionalista e paternal, sobreviveu a tentativas de assassinato e a pequenas conspirações, mas nunca rompeu com o eixo franco-africano. A moeda senegalesa continuou atrelada ao franco CFA, criado em 1945 e controlado pelo Banco Central francês, instrumento sutil, porém eficaz, de dominação. Em 1980, Senghor renunciou e entregou o poder a seu sucessor, Abdou Diouf, também do Partido Socialista.

Diouf governou por vinte anos. Foi sob ele que o Senegal abraçou, gradualmente, o neoliberalismo: privatizações, reformas ditadas pelo FMI, desmonte dos serviços públicos e da agricultura familiar. A antiga república de intelectuais tornou-se um laboratório econômico. Nos anos 1980, o país mergulhou em greves e levantes estudantis, enquanto, no sul, o Movimento das Forças Democráticas da Casamansa iniciava uma guerra separatista que ainda hoje ecoa entre as florestas e os arrozais da região.

Apesar de tudo, o Senegal manteve um raro título na África Ocidental: o de país sem golpes de Estado. Um feito notável, mas que tem seu preço. A estabilidade política foi garantida pela aliança entre as elites locais e o capital estrangeiro, e por um exército que sempre soube de qual lado deveria estar.

Em 2000, o ciclo socialista se encerrou. Abdoulaye Wade, advogado formado em Paris e líder do Partido Democrático Senegalês, venceu as eleições. Era a primeira alternância de poder da história do país. O novo governo, porém, não rompeu com o passado, apenas mudou o tom do discurso. Wade aprofundou a abertura econômica, ampliou a dependência externa e se aproximou ainda mais do Ocidente. Em 2012, tentou um terceiro mandato, em afronta à Constituição. As ruas se ergueram: jovens, trabalhadores e estudantes tomaram Dakar. Sob pressão popular e internacional, Wade caiu.

No poder entrou Macky Sall, engenheiro e aliado de Wade convertido em rival, à frente da Aliança pela República. Sall prometeu democracia e renovação, mas governou como um tecnocrata alinhado ao FMI e à França. Reeleito em 2019, tornou-se um dos principais parceiros de Paris na África, abrindo o país a novas prospecções de petróleo e gás, campos estratégicos nas águas de Saint-Louis e Sangomar, explorados por gigantes como Total, BP e Kosmos Energy.

Hoje, o Senegal é apresentado pelo Ocidente como um “modelo de estabilidade democrática”. Mas sob o brilho das conferências internacionais e do crescimento do PIB, a realidade é mais dura. O desemprego juvenil é massivo, o custo de vida dispara, e a juventude senegalesa, a mesma que sonhava com o Atlântico como rota de fuga, começa a despertar politicamente. Em 2023, a repressão a protestos estudantis e à oposição de Ousmane Sonko revelou o rosto autoritário do regime.

Dominado pelo imperialismo, o Senegal é uma joia nas mãos da França. O país abriga mais de trinta grandes empresas francesas, que controlam bancos, telecomunicações, energia e mineração. Seu subsolo guarda ouro, fosfato, ferro, petróleo e gás, e é desse solo que Paris extrai bilhões, enquanto o povo luta por pão.

O Tehran Times resumiu com precisão a tragédia: “Enquanto o povo senegalês mal consegue sobreviver, a França continua a lucrar bilhões de dólares com a riqueza do Senegal.” A frase poderia ter sido escrita há cem anos, e ainda assim permaneceria atual.

O Senegal é, para o império francês, aquilo que o Egito foi para os britânicos: uma vitrine e um bastião. Mas cada vitrine, quando a luz incide forte demais, revela as rachaduras no vidro. E nas ruas de Dakar, onde poetas e pescadores se misturam, já se ouve, abafado, o rumor de que o tempo da submissão está chegando ao fim.

Um fio de terra se estende como uma serpente líquida, cortando o coração de Senegal: é a Gâmbia, o menor país da África Ocidental e, paradoxalmente, um dos que mais sofreram com o peso da história. O rio que lhe dá nome foi, durante séculos, uma artéria aberta por onde se escoaram corpos, marfim e ouro, sugados pelas embarcações do Atlântico.

Muito antes dos europeus, comerciantes muçulmanos já haviam se estabelecido ali, no século X, formando caravanas que cruzavam o Saara e teciam os primeiros fios do comércio transaariano. No entanto, foi com o século XVII, e com ele a chegada dos britânicos, que o destino gambiano se selou: o rio se tornou uma rota imperial, um corredor de escravos rumo às plantações das Américas. O comércio negreiro não apenas moldou a geografia, mas também o próprio imaginário da região, o rio, de fonte de vida, transformado em trilho da servidão.

Sob domínio britânico, a Gâmbia permaneceu uma possessão marginal, uma estreita língua de terra cercada por Senegal, uma anomalia geográfica nascida das disputas coloniais entre França e Inglaterra. Enquanto os franceses moldavam Dakar, os ingleses construíam Bathurst (hoje Banjul), um entreposto menor, mas estratégico.

A independência, em 1965, veio acompanhada de um gesto de continuidade: a rainha Elizabeth II permaneceu como chefe de Estado. Só em 1970 o país se declarou uma república, e seu primeiro-ministro, Dawda Kairaba Jawara, assumiu como presidente. Homem educado sob o modelo britânico, Jawara guiou o país com uma política de moderação e cooperação regional, especialmente com Senegal, cuja influência se tornaria decisiva no futuro do pequeno Estado.

Em 1981, no entanto, a calmaria colonial deu lugar à tempestade: um golpe de Estado irrompeu nas ruas de Banjul, liderado por Kukoi Samba Sanyang, do Conselho Nacional Revolucionário de Esquerda. O levante tinha um caráter popular e militar, apoiado por socialistas e pelos escalões mais baixos das forças armadas. O governo Jawara pediu socorro, e o exército de Abdou Diouf, presidente senegalês, cruzou a fronteira para restaurar a “ordem”. A intervenção reprimiu o golpe e selou a dependência gambiana.

Da crise nasceu o projeto de união política entre os dois países: a Confederação Senegâmbia, criada em 1982 com o sonho de uma integração africana. Mas o sonho logo se dissolveu, afogado em desconfianças e interesses divergentes. Em 1989, a Senegâmbia desfez-se sem deixar rastros além de acordos militares e memórias frustradas.

Cinco anos depois, o exército voltaria ao centro da cena. Em 1994, o tenente Yahya Jammeh, então com apenas 29 anos, liderou um golpe de Estado que depôs Jawara e instaurou uma ditadura militar. Jovem, carismático e brutal, Jammeh prometia moralizar o país, acabar com a corrupção e afirmar a soberania nacional. O Ocidente reagiu de imediato: Estados Unidos e União Europeia suspenderam a ajuda internacional. Jammeh, em resposta, acusou-os de “neocolonialismo” e proclamou que a Gâmbia não seria “colônia de ninguém”.

Na prática, seu regime misturou misticismo islâmico, autoritarismo e nacionalismo retórico. Fundou o partido Aliança para Reorientação e Construção Patriótica (APRC) e governou por mais de duas décadas, sustentado por eleições controladas e uma rede de clientelismo militar. Em 1996, realizou um referendo constitucional que lhe deu legitimidade, e dali em diante venceu pleitos sucessivos, 2001, 2006, 2011, todos sob denúncias de fraude e repressão.

Seu governo também se alimentava de contradições: enquanto se apresentava como anti-imperialista, mantinha negócios com empresas ocidentais e reprimia opositores com mão de ferro. Tentativas de golpe, como a de 2006, foram esmagadas. Ndure Cham, o coronel que tentou derrubá-lo, fugiu para Senegal, e de lá jamais retornou.

Com o passar dos anos, Jammeh se isolou. Em 2013, retirou o país da Commonwealth, acusando Londres de hipocrisia e dominação. Dois anos depois, declarou a Gâmbia uma república islâmica, buscando legitimidade interna e apoio de países árabes conservadores. Em 2016, anunciou a retirada do país do Tribunal Penal Internacional, chamando-o de “instrumento colonial contra africanos”.

Mas o tempo do coronel terminaria da forma como começou: em meio a pressões estrangeiras e mobilização popular. No fim de 2016, as eleições deram vitória a Adama Barrow, um empresário desconhecido apoiado por uma coalizão de oposição, e, nos bastidores, pelo imperialismo ocidental. Jammeh recusou-se a deixar o poder. Foi então que a CEDEAO, com o apoio dos Estados Unidos, da ONU e de Senegal, interveio militarmente, invadindo a Gâmbia e forçando o ditador ao exílio na Guiné Equatorial.

O novo governo, liderado por Barrow, restaurou as alianças com o Ocidente. Em 2021, foi reeleito sob a bandeira da “democracia liberal” e do “reestabelecimento das parcerias internacionais”. A CIA descreve o país, sem rodeios, como “um aliado estratégico em programas de educação, capacitação militar e fortalecimento da democracia”, eufemismos que escondem a velha relação colonial sob novos nomes.

Hoje, a Gâmbia vive em paz, dizem. Mas é uma paz de quartéis treinados por Washington, de ONGs que substituem o Estado, e de jovens que partem em barcos improvisados rumo ao Mediterrâneo. O país parece repousar sobre o mesmo rio que o fundou, calmo na superfície, mas sempre arrastando em suas águas o peso do passado.

Ao oeste e ao sul de Senegal e Gâmbia erguem-se, como fragmentos de rocha perdida no Atlântico, Cabo Verde e Guiné-Bissau, as duas jóias lusófonas da África Ocidental, colonizadas não pelo comércio da pólvora e do algodão, mas pela obstinação metódica dos navegadores de Lisboa. Cabo Verde, um arquipélago vulcânico isolado entre o vento e o sal, foi durante séculos ponto de reabastecimento de baleiros, entreposto do tráfico negreiro, escala dos navios que cruzavam o triângulo do horror. Quando conquistou a independência em 1975, foi como se o fogo adormecido sob as ilhas tivesse finalmente encontrado sua forma política.

O primeiro presidente, Aristides Maria Pereira, homem de fala calma e convicção granítica, vinha da mesma cepa que Amílcar Cabral, o engenheiro agrônomo e guerrilheiro poeta que deu ao sonho de libertação africana um rosto e um verbo. Juntos fundaram o PAIGC, Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, e com ele imaginaram uma só pátria, unida pela língua e pelo destino, dividida apenas pela maré. A união política, contudo, nunca se concretizou: Guiné-Bissau, mais turbulenta, mergulhou nas espirais dos golpes e das purgas internas; Cabo Verde seguiu com a serenidade do arquipélago que aprendeu a dialogar com o deserto e com o mar.

Nos anos que se seguiram à libertação, as ilhas tentaram erguer um socialismo possível, uma revolução sem armas, sustentada pela reforma agrária, pelo esforço educativo e por uma certa ternura africana na relação com a União Soviética. Aristides Pereira conduzia o país como quem carrega água em cabaça: com paciência e medo de que o líquido se perca. O vento, porém, virou na década de 1980, o bloco soviético enfraquecia, as secas assolavam as plantações, a dívida externa inchava, e as promessas de autossuficiência tornavam-se poeira. Ainda assim, o governo logrou enfrentar a desertificação e a fome com um rigor quase moral, à custa de abrir brechas para o capital privado.

Em 1991, o socialismo cabo-verdiano cedeu lugar ao pluralismo liberal: António Mascarenhas Monteiro, do Movimento pela Democracia (MpD), venceu as primeiras eleições multipartidárias. Dez anos depois, o antigo partido revolucionário, agora rebatizado PAICV, retornou ao poder com Pedro Pires, o mesmo primeiro-ministro dos anos fundadores, e presidiu o país até 2011, quando a alternância política se consolidou com Jorge Carlos Fonseca, do MpD. Desde 2021, o PAICV governa novamente, sob José Maria Neves, num revezamento quase civilizado entre dois partidos que já não se distinguem por ideologia, mas por estilo e retórica.

Hoje, o antigo partido de libertação, antes símbolo da negritude emancipada, é uma força conservadora, dócil aos ventos de Bruxelas e Lisboa. Cabo Verde, cuja moeda primeiro se atrelou ao escudo português e depois ao euro, vive mais ligado à Europa que à África. A economia respira ao ritmo das remessas enviadas por sua imensa diáspora, porque há mais cabo-verdianos espalhados pelo mundo do que nas ilhas.

Em julho de 2023, o país ausentou-se da Cúpula Rússia-África. O presidente declarou tratar-se de um “sinal de protesto”. Protesto contra o quê? Talvez contra o espetáculo da história que, como diria Marx, se repete ora como tragédia, ora como farsa. Cabo Verde não toma partido, apenas sobrevive, entre o mar e o euro, entre a nostalgia da revolução e a necessidade do turismo. Um arquipélago que aprendeu, desde o século XV, que quem vive em ilhas precisa escolher cuidadosamente onde ancorar suas lealdades.

A história da Guiné-Bissau é uma daquelas que parecem escritas a facão, com linhas abruptas, rasgos de sangue e pausas longas entre um golpe e outro. Antes de o nome português se fixar sobre o território, aquelas terras eram domínio de grandes reinos africanos, o Império do Mali, o Reino de Kaabu, que, com o tempo, fragmentaram-se em chefaturas e feudos, rendidos à lógica das caravanas e ao brilho fácil do ouro. No século XVI, chegaram os portugueses: não com cruzes e tratados, mas com espelhos, pólvora e porões de navio. Construíram feitorias, negociaram escravos, compraram chefes e venderam reinos. À medida que o comércio crescia, a penetração lusitana se fazia mais profunda, até que, no século XIX, a Guiné-Bissau foi definitivamente engolida pelo império colonial.

Mas como em toda colônia que sangra, cedo ou tarde surge alguém que decide dar nome à ferida. Amílcar Cabral foi esse nome, engenheiro agrônomo, intelectual de precisão matemática e verbo incendiário. Fundador do PAIGC, ele sonhou com uma África que não se limitasse a trocar de bandeira, mas de destino. Assassinato o silenciou em 1973, pouco antes da vitória sobre os portugueses, como se a história, impaciente, o matasse para confirmar o mito.

O poder, herdado em meio à poeira da luta, coube a Luís Cabral, irmão de Amílcar, que tentou construir uma Guiné-Bissau socialista com o apoio de Moscou e Pequim. Em 1980, porém, o país ainda tateava na sombra quando João Bernardo “Nino” Vieira, seu primeiro-ministro, marchou sobre Bissau com tanques e retórica de libertador. Derrubou Cabral, suspendeu a constituição e instaurou um Conselho Militar Revolucionário, uma dessas ironias africanas em que as palavras “revolucionário” e “militar” se anulam mutuamente.

Vieram os anos oitenta, e com eles, a rotina do golpe. Tentativas frustradas, purgas silenciosas, lealdades que se vendiam como o amendoim nos mercados da capital. Em 1994, numa atmosfera de cansaço e promessa, realizaram-se as primeiras eleições multipartidárias. “Nino” venceu, agora de terno e urna, mas o velho exército nunca deixou de rondar. Quando perdeu o apoio dos generais, o país mergulhou numa guerra civil, e em 1999 ele foi derrubado e exilado em Portugal.

As décadas seguintes foram uma coreografia de quedas: Malam Bacai Sanhá, Kumba Ialá, Henrique Rosa, Nino Vieira de novo (que voltaria como independente em 2005 e cairia morto em 2009, alvejado pelos mesmos militares que o reconduziram). Depois veio Sanhá outra vez, eleito e falecido em 2012; e outro golpe, interrompendo as eleições antes do segundo turno. Um governo de transição, mais um ciclo, mais uma promessa. Até que, em 2014, José Mário Vaz foi eleito e, pela primeira vez, um presidente guineense conseguiu o feito inédito de terminar seu mandato, o que, em Bissau, é quase um milagre político.

Em 2019, Umaro Sissoco Embaló, general e ex-primeiro-ministro, venceu as eleições pelo Madem G15, um partido de dissidentes do PAIGC. O pleito foi contestado, e ele tomou posse à revelia da Suprema Corte, num ato que muitos chamaram de golpe branco. Só um ano depois sua presidência seria reconhecida oficialmente. Desde então, Embaló sobreviveu a uma tentativa de golpe, dissolveu o parlamento e mantém um frágil equilíbrio entre os interesses locais, os generais e as potências estrangeiras.

Sua diplomacia é a de quem caminha sobre destroços: fala com os europeus, ouve os americanos, acena para Moscou e Pequim. A Guiné-Bissau de Sissoco tenta, como tantas outras da região, sair da orfandade imperialista. Mas cada gesto de aproximação tem o cheiro de barganha, e cada promessa de desenvolvimento, o gosto amargo da dependência. Entre a nostalgia da revolução traída e o pragmatismo do presente, o país continua suspenso, um pequeno Estado que, desde Cabral, tenta provar que é possível existir sem ser colônia de ninguém.

Mas talvez, como escreveu Marx sobre outro continente, “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem”. E na Guiné-Bissau, essa história ainda se escreve ao som dos tiros que ecoam de tempos em tempos em Bissau, lembrando que, aqui, o poder é sempre provisório, e a independência, um verbo que nunca se conjuga no passado.

Serra Leoa, nome que soa como promessa de força e ferida, a “montanha do leão” onde os séculos rugem em silêncio, é um pequeno país no litoral oeste africano, ao sul da Guiné-Bissau, onde o chão esconde diamantes e a história, cicatrizes. Terra de ouro, ferro, bauxita e titânio, coberta por selvas antigas e densas como a própria memória africana, Serra Leoa viveu, por mais de dois milênios, relativamente isolada dos impérios da savana e dos reinos do Sahel. Sua floresta, ao mesmo tempo refúgio e prisão, guardava os povos e suas tradições debaixo da umidade verde e impenetrável.

No século XVII, os britânicos chegaram como quem fincava um prego no horizonte. Fundaram um entreposto onde hoje está Freetown, nome que soa como ironia amarga, “cidade livre”, erguida pelos mesmos que fizeram do tráfico negreiro o motor de seu comércio. Madeira e marfim abriram caminho para o que logo se tornaria o tráfico de homens. No século XIX, o domínio britânico empurrava-se para o interior, até que Serra Leoa se tornou oficialmente colônia da coroa, uma peça discreta, mas vital, no tabuleiro imperial.

A independência, em 1961, veio como uma cerimônia formal, mais um ato de diplomacia do que de ruptura. O país trocou de bandeira, mas não de dono. Em 1971, o velho Siaka Stevens assumiu o poder com um discurso que soava paradoxal: socialista para os africanos, aliado para os ingleses. Mantinha embaixadas em Cuba, Pequim e Pyongyang, enquanto apertava as mãos de Londres. Governou com punho de ferro e astúcia de comerciante, equilibrando-se entre ideologias e diamantes, até renunciar em 1985, quando o tempo o venceu antes que o povo pudesse fazê-lo.

Seu sucessor, Joseph Saidu Momoh, herdou um país exaurido e uma economia saqueada. Sob sua gestão, Serra Leoa se tornou metáfora viva do subdesenvolvimento imposto: a riqueza do solo contrastando com o abismo da miséria. Em 1991, no interior abandonado, irrompeu a guerra. A Frente Revolucionária Unida (RUF), liderada por Foday Sankoh, armada e treinada com ajuda da Líbia e dos rebeldes liberianos de Charles Taylor, proclamava o fim da servidão sob o lema: “No More Slaves, No More Master, Power and Wealth to the People.”

Mas o idealismo da RUF logo se afogou em sangue e contradições. O comércio de diamantes financiava a guerra, e o que começou como insurreição popular degenerou em pilhagem e terror. Enquanto isso, Momoh, acuado, abriu o país ao multipartidarismo e foi deposto por seus próprios soldados. Valentine Strasser, um jovem capitão de 25 anos, tomou o poder em 1992, contratou mercenários sul-africanos e tentou restaurar a ordem à bala. Três anos depois, foi ele quem caiu, substituído por Julius Maada Bio, hoje novamente no comando do país.

Bio prometeu paz, convocou eleições sob mediação da ONU, e Ahmad Tejan Kabbah, do Partido do Povo de Serra Leoa (SLPP), foi eleito. Mas a calma durou pouco: em 1997, Johnny Paul Koroma liderou um novo golpe, criando um governo conjunto com a RUF, um pacto entre militares e insurgentes, unidos apenas pela ruína. A resposta veio rápida: tropas da CEDEAO, sob comando nigeriano e bênção de Londres e Washington, derrubaram o regime e recolocaram Kabbah no poder em 1998.

A guerra civil terminou em 2001, depois da intervenção direta do Reino Unido, o antigo senhor voltava, agora com a bandeira da “paz”. O país se pacificou, mas à custa de sua soberania. Desde então, Serra Leoa vive sob a alternância calculada entre os dois grandes partidos, o SLPP e o APC, enquanto o controle real de suas minas e finanças segue nas mãos de empresas estrangeiras.

Em 2007, o APC, com Ernest Bai Koroma, aprofundou a dependência do país ao capital britânico, e a China entrou em cena como novo investidor. Mas em 2018, com o retorno de Julius Maada Bio, o pêndulo voltou à velha Londres. Bio cancelou um empréstimo chinês de 400 milhões de dólares para construir um novo aeroporto, um gesto de lealdade à metrópole que o país nunca deixou de servir.

Reeleito em 2023, entre violência e acusações de fraude, Bio agora ensaia um flerte com Moscou. Buscou nos russos não uma nova ideologia, mas um novo patrono, alguém disposto a investir na agricultura, nas minas, na energia, onde o Ocidente vê apenas extração e lucro. Em abril de 2023, Serra Leoa e a Rússia anunciaram acordos de cooperação. Mais um capítulo dessa dança secular entre o leão e suas correntes.

Hoje, as selvas de Serra Leoa ainda escondem diamantes, e as crianças que os extraem ainda cantam canções de liberdade. Talvez, como diria John Reed, “os povos não se levantam por capricho, mas por necessidade”. E ali, onde cada revolução termina em golpe e cada golpe termina em tratado, o povo parece condenado a tentar outra vez, até que Freetown, enfim, faça jus ao nome que carrega.

Ao sudeste do continente, a Libéria representa uma anomalia histórica na formação política da África moderna. Diferentemente das demais nações africanas, forjadas sob o jugo direto do colonialismo europeu, a Libéria foi concebida como um projeto de engenharia social e geopolítica do nascente imperialismo norte-americano. No fim do século XVIII, a Revolução Americana e a progressiva abolição da escravidão no Norte trouxeram à tona o que os dirigentes estadunidenses chamaram de “problema dos negros livres”: uma população emancipada, mas indesejada dentro das fronteiras da república que proclamava a liberdade como fundamento.

Assim, em 1816, um grupo de proprietários e políticos brancos fundou a Sociedade Americana de Colonização (ACS, em inglês), um instrumento da elite escravocrata e dos interesses mercantis dos Estados Unidos, que pretendia simultaneamente “resolver” o impasse interno e expandir sua influência para além do Atlântico. A colonização de uma faixa costeira da África Ocidental, transformada em colônia modelo para negros libertos, foi o resultado direto desse cálculo. A nova colônia foi administrada sob as leis dos Estados Unidos, com um agente da ACS exercendo poder efetivo, e cercada por fortalezas erguidas para subjugar as populações indígenas. Em 1822, fundou-se Monróvia, batizada em homenagem ao presidente James Monroe, símbolo da doutrina expansionista que levaria seu nome.

A proclamação da independência, em 1847, formalmente desvinculou o país da Sociedade de Colonização Americana, mas não de sua tutela econômica e política. A Libéria se tornou o espelho do mito liberal norte-americano, um Estado negro com alma branca, guiado por elites afro-americanas que reproduziram internamente o mesmo regime de exclusão que as havia oprimido. O reconhecimento diplomático pelos Estados Unidos só veio em 1862, mas a relação de dependência já estava consolidada: a Libéria era uma peça do tabuleiro do imperialismo, um posto avançado de interesses estratégicos e financeiros na África Ocidental.

No século XX, o domínio da minoria descendente dos colonos manteve o país num estado de latente tensão étnica e social. As rebeliões dos povos nativos foram sistematicamente esmagadas, enquanto o governo seguia fiel à política externa de Washington. Nos anos 1970, sob o presidente William Richard Tolbert, esboçou-se um tênue movimento de autonomia, aproximações com a União Soviética e uma postura crítica em relação a Israel, que rapidamente despertaram a reação norte-americana. Em 1980, sob o pretexto das tensões étnicas, os Estados Unidos apoiaram um golpe sangrento liderado por Samuel Kanyon Doe, o primeiro chefe de Estado oriundo da população nativa, que instaurou uma ditadura alinhada em todos os pontos à Casa Branca.

Entre os muitos personagens trágicos da história liberiana, poucos são tão emblemáticos quanto Charles Taylor. Ex-aliado de Doe, acusado de corrupção e exilado nos Estados Unidos, Taylor fugiu da prisão com ajuda de agentes da CIA, segundo relatos jamais desmentidos. Na Líbia de Muamar Gaddafi, recebeu treinamento militar e apoio logístico, convertendo-se em peça-chave da estratégia líbia de solidariedade pan-africana e oposição ao imperialismo ocidental. Envolvido posteriormente no golpe que derrubou Thomas Sankara em Burkina Fasso, Taylor operava na intersecção entre os projetos revolucionários africanos e as infiltrações da Guerra Fria, num continente que era palco e vítima dos conflitos entre impérios.

Em 1989, à frente da Frente Patriótica Nacional da Libéria (NPFL), invadiu o país a partir da Costa do Marfim, mergulhando-o em uma guerra civil devastadora. Um ano depois, um grupo dissidente liderado por Prince Johnson capturou e executou Samuel Doe. O colapso do Estado liberiano abriu caminho para a intervenção da CEDEAO, sob comando da Nigéria e com respaldo dos Estados Unidos. Um frágil acordo de paz permitiu eleições em 1997, vencidas por Taylor, cuja presidência foi marcada por novos conflitos e por denúncias de tráfico de diamantes e apoio a rebeldes em Serra Leoa.

A segunda guerra civil, deflagrada em 1999, reuniu contra Taylor uma ampla frente de guerrilhas armadas e governos vizinhos, patrocinados pelo imperialismo ocidental. Em 2003, sob pressão internacional e intervenção direta dos Estados Unidos, Taylor renunciou e foi posteriormente entregue ao Tribunal Penal Internacional. O poder foi transferido a um governo de transição supervisionado por organismos multilaterais e militares estrangeiros.

Em 2005, a reconstrução política da Libéria culminou na eleição de Ellen Johnson Sirleaf, economista formada em Harvard, funcionária do Banco Mundial e do Citibank, celebrada pela imprensa internacional como “símbolo da nova África democrática”, mas comprometida até a medula com o receituário neoliberal e com o controle financeiro norte-americano. Reeleita em 2011, Sirleaf consolidou a reinserção da Libéria na órbita imperialista. Seu sucessor, o ex-jogador de futebol George Weah, eleito em 2017, prometeu continuidade e reconciliação nacional, mas governou entre as contradições de uma economia dependente, uma sociedade fragmentada e a sombra persistente da ingerência estrangeira.

Hoje, a Libéria segue como um espelho, não da liberdade prometida por seus fundadores, mas das ambiguidades do pós-colonialismo africano, onde a soberania nacional é uma miragem projetada sobre os escombros de uma história escrita à sombra do império.

Na encruzilhada política e econômica da África Ocidental, a Costa do Marfim ocupa um papel que transcende suas fronteiras. Ex-colônia francesa, o país foi moldado desde o início como um protetorado econômico de Paris, um espaço de extração e controle político disfarçado sob o verniz da independência formal. Ainda no século XIX, os franceses consolidaram sua presença sobre os antigos reinos locais, convertendo uma sociedade fragmentada em zona de plantação e exportação. A independência de 1960 não rompeu essas amarra, apenas as formalizou.

O primeiro presidente, Félix Houphouët-Boigny, figura central da política africana francófona, representou por três décadas a continuidade do poder colonial sob outra bandeira. Sua relação com a França não era apenas de dependência: era de simbiose. O “velho” de Yamoussoukro se orgulhava de sua lealdade a Paris, e Paris retribuía com estabilidade, crédito e proteção. Sob sua administração, a Costa do Marfim viveu o que alguns chamaram de “milagre marfinense”, um crescimento econômico baseado na exportação de cacau, café e madeira, sustentado pela mão de obra barata e pela repressão política. O país se tornou vitrine da Françafrique, o sistema neocolonial que permitia à França governar indiretamente suas ex-colônias por meio de elites locais dóceis e corruptas.

Com a morte de Houphouët-Boigny em 1993, o edifício político começou a ruir. Henri Konan Bédié, seu sucessor, herdou um Estado dependente, endividado e corroído pelas reformas neoliberais impostas por Paris e pelos organismos de crédito internacionais. Para conter o descontentamento popular, recorreu à manipulação étnica, a “ivoirité”, política que excluía grande parte da população muçulmana do norte da participação política plena, dividindo o país entre “verdadeiros marfinenses” e “estrangeiros” internos. Ao mesmo tempo, acelerou a privatização de setores estratégicos, incluindo a Companhia de Energia Estatal, entregue à francesa Eranove sob orientação do Banco Mundial. Era a globalização com sotaque francês: a soberania nacional dissolvida nos relatórios de Washington e nas decisões corporativas de Paris.

O descontentamento explodiu em 1999, quando o general Robert Guéï liderou um golpe militar. A queda de Bédié inaugurou uma era de instabilidade permanente. Guéï prometeu eleições, mas tentou se manter no poder pela força. Em 2000, foi derrotado por Laurent Gbagbo, líder de esquerda e antigo opositor de Houphouët-Boigny, que assumiu a presidência em meio a um país fragmentado. Dois anos depois, o exército se dividiu: rebeldes comandados por Guillaume Soro tomaram o norte, e o país mergulhou numa guerra civil. No sul, Gbagbo governava sob cerco político e econômico, acusado de “antifrancês” e “populista” pela imprensa ocidental, adjetivos que na África francófona quase sempre significam “inconveniente para Paris”.

O acordo de paz de 2007, que unificou formalmente o país, foi mais uma operação de reacomodação imperial: Soro tornou-se primeiro-ministro e as forças rebeldes foram incorporadas ao exército nacional. O equilíbrio, no entanto, era artificial. As eleições de 2010 resultaram em nova convulsão. O candidato pró-ocidental Alassane Dramane Ouattara, ex-diretor do FMI e homem de confiança da elite financeira global, foi declarado vencedor sob forte contestação. Quando Gbagbo se recusou a reconhecer o resultado, a França e as Nações Unidas intervieram militarmente. Tanques franceses atravessaram Abidjan e capturaram o presidente eleito. O poder voltou a ser administrado diretamente pela metrópole, por meio de Ouattara, seu administrador eficiente.

Com o apoio das potências imperialistas, Ouattara consolidou um regime de “estabilidade”, o eufemismo diplomático para repressão e dependência. Reeleito em 2015 e novamente em 2020, apesar do limite constitucional de dois mandatos, seu governo perpetua o controle francês sobre os setores estratégicos do país, energia, mineração, agronegócio, e mantém a Costa do Marfim como centro operacional da Françafrique contemporânea.

A absolvição de Laurent Gbagbo pelo Tribunal Penal Internacional, em 2021, e seu retorno ao país foram apresentados como gesto de reconciliação. Na prática, serviram para legitimar o sistema que o havia derrubado. O imperialismo, ao contrário dos regimes, não perdoa, apenas reconfigura. Gbagbo e Ouattara, sentados à mesma mesa, simbolizam não a paz, mas o esgotamento de qualquer alternativa independente sob o domínio das potências estrangeiras.

Hoje, a Costa do Marfim segue dividida entre o brilho artificial das cifras de exportação e a sombra persistente da dominação neocolonial. O país é, simultaneamente, espelho e advertência: um laboratório do capitalismo dependente, onde cada tentativa de emancipação é sufocada antes de amadurecer. Como observou certa vez um analista africano, “as guerras civis da Costa do Marfim foram, em essência, o retorno das plantações à pólvora, a explosão de um modelo imposto a ferro e cacau”.

Ao leste da Costa do Marfim, Gana se ergue como uma das colunas políticas e econômicas da África Ocidental, um país cuja história condensa o drama e a esperança do continente. Nascida da fusão entre a antiga Costa do Ouro e o território fiduciário da Togolândia, Gana é uma nação multiétnica, rica em recursos naturais e marcada por uma tradição de resistência e ambição. Desde o século XII, o ouro de suas terras alimentava redes de comércio que uniam caravanas do Sahel aos navios europeus. No século XVIII, floresceu ali o poderoso Império Asante, um Estado africano centralizado, militarizado e diplomático, que controlava o comércio regional de escravos e ouro. Armados com mosquetes europeus, os Asante construíram uma hegemonia que resistiu por quase dois séculos, até ser tragada pelo avanço imperial britânico no final do século XIX.

Em 1957, Gana rompeu as correntes coloniais, tornando-se o primeiro país subsaariano a conquistar a independência. À frente do processo estava Kwame Nkrumah, um intelectual marxista e pan-africanista que sonhava com a unificação do continente. Em sua visão, o “Socialismo Africano” seria a síntese entre a tradição comunitária do continente e o planejamento econômico moderno, um projeto de emancipação política e econômica diante do imperialismo ocidental. Nkrumah nacionalizou indústrias, investiu em educação e infraestrutura, e fez de Acra um centro do movimento panafricano. Mas em 1966, enquanto visitava o Vietnã e a China, foi derrubado por um golpe militar apoiado pela CIA, que inaugurou uma longa era de instabilidade e golpes sucessivos.

Durante as décadas seguintes, Gana oscilou entre regimes militares e civis até a ascensão de Jerry Rawlings, um jovem tenente que, em 1981, tomou o poder diante do colapso econômico e da corrupção política. Rawlings instituiu uma junta revolucionária, combinando oficiais e civis, e buscou reviver o ideal socialista de Nkrumah. Reatou relações com a Líbia de Muammar Gaddafi, aproximou-se de Cuba e da Nicarágua sandinista, e implantou políticas de controle estatal sobre importações e exportações, congelamento de preços e criação de Comitês de Defesa do Povo, organismos de base inspirados em modelos populares latino-americanos. Seu projeto, contudo, enfrentou as contradições da economia dependente: o controle de preços prejudicou os camponeses, a inflação cresceu e, isolado, o país recorreu ao FMI e ao Banco Mundial.

Mesmo com resistência, Rawlings acabou cedendo a reformas neoliberais, mantendo um verniz de soberania estatal. A partir de 1992, com o fim da Guerra Fria e a crise do bloco soviético, Gana institucionalizou o multipartidarismo e realizou eleições, Rawlings venceu duas, em 1992 e 1996, até ser impedido de concorrer novamente. Sob John Kufuor (2001–2009), o país viveu sua primeira transição pacífica de poder e passou a seguir rigidamente a cartilha da austeridade fiscal, enquanto atuava como mediador nas crises da Libéria, Serra Leoa e Guiné-Bissau.

Nos governos seguintes, John Atta Mills, John Mahama e Nana Akufo-Addo, Gana consolidou sua imagem de “democracia estável” da África Ocidental, mas sob crescente dependência financeira. O endividamento com o FMI e a queda do cedi mergulharam o país em nova crise. Como observa o Financial Times (Aanu Adeoye, How Ghana’s economy became a cautionary tale for Africa, 14/5/2023), “Gana, antes exemplo de sucesso, tornou-se símbolo de advertência”, após declarar default em 2022 e recorrer novamente a um pacote de resgate de US$ 3 bilhões.

O peso das dívidas levou o país a abrir negociações com credores liderados pela França e pela China. Pequim, que já financiara US$ 2 bilhões em infraestrutura em troca de 5% das reservas de bauxita, passou a ver Gana como peça estratégica em seu xadrez geopolítico africano. Em 2021, Gana tornou-se o maior parceiro comercial da China na África, com uma dívida superior a US$ 17 bilhões, sinal de que o país se encontra novamente no fio da navalha entre duas potências.

Os Estados Unidos reagiram rapidamente: a vice-presidente Kamala Harris e a embaixadora Linda Thomas-Greenfield visitaram o país em 2023, tentando reafirmar a influência americana diante da expansão chinesa e russa. Washington prometeu investimentos e “cooperação democrática”, mas o gesto soou mais como contenção geopolítica do que solidariedade.

Hoje, Gana se equilibra entre dois polos, de um lado, o FMI e o dólar; de outro, os créditos e a diplomacia chinesa. O sonho de Nkrumah, de uma África autônoma e unida, reaparece nas entrelinhas das crises contemporâneas. Entre o ouro que primeiro atraiu o europeu e as novas promessas de “parceria estratégica”, o país revive o dilema que atravessa todo o continente: o de ser, ao mesmo tempo, o berço e o espelho do mundo pós-colonial.

Por fim, estão Togo e Benim, dois países que, embora pequenos em território, sintetizam séculos de pilhagem imperialista, resistência popular e a longa disputa entre o passado colonial e o sonho de soberania africana.

O Togo, entre os séculos XVI e XVIII, foi um dos grandes centros do comércio atlântico de escravos, uma ferida que atravessa sua história. Em 1884, foi anexado pela Alemanha, e, após a Primeira Guerra Mundial, passou ao domínio francês, de onde só se libertaria formalmente em 1960. Mas a independência foi logo sequestrada: em 1967, um golpe militar levou o general Gnassingbé Eyadéma ao poder, onde permaneceu por quase quarenta anos como um fantoche do imperialismo francês. Após sua morte, em 2005, o poder passou para seu filho, Faure Gnassingbé, consolidando uma das mais longas dinastias políticas da África contemporânea.
Sob o manto da democracia formal, o país permanece uma neocolônia francesa: em 2019, quase cinquenta subsidiárias francesas operavam em setores-chave, logística, agricultura, construção, energia, extraindo lucros imensos e deixando ao Togo migalhas anuais. Como sintetiza o Tehran Times (“African Domino”, 27/9/2023), “as empresas francesas estão no país desde a independência; o que o Togo ganha com isso é insignificante diante do que perde em soberania e riqueza”. Não por acaso, as ruas de Lomé têm sido tomadas por protestos contra o regime e as péssimas condições de vida impostas por décadas de dependência e autoritarismo.

Ao leste, o Benim guarda outra faceta do mesmo drama. O antigo Reino do Daomé, potência regional nos séculos XVIII e XIX, cresceu com o comércio transatlântico de escravos e só foi subjugado pelos franceses em 1894. Em 1960, conquistou a independência, mas o verdadeiro ponto de inflexão veio com o golpe de Mathieu Kérékou, em 1972, que proclamou a República Popular do Benim e adotou o marxismo-leninismo como ideologia de Estado. Kérékou rompeu com o imperialismo, nacionalizou bancos e o petróleo, criou cooperativas agrícolas e declarou guerra ao tribalismo, alinhando-se aos países socialistas e apoiando movimentos de libertação africanos, como a Frente Polisário.

Mas, como em tantos outros países africanos, o sonho revolucionário esbarrou nas correntes da dependência econômica. A crise capitalista mundial e a degeneração dos Estados operários empurraram o Benim ao FMI, e as privatizações e concessões ao capital estrangeiro abriram o caminho para a restauração capitalista. Kérékou, após ser deposto nas urnas em 1991 por Nicéphore Soglo, homem do Banco Mundial, voltou ao poder em 1996, apenas para administrar a transição neoliberal. Desde então, o país tem alternado entre civis e empresários, culminando no atual presidente Patrice Talon, magnata reeleito em 2021, que se apresenta como modernizador enquanto persegue opositores.

A França, antiga metrópole, mantém influência direta sobre as estruturas econômicas e políticas; mas, ciente do esgotamento do neocolonialismo francês, Talon tenta se aproximar da China, defendendo “um modelo próprio de democracia” e firmando acordos no âmbito da Nova Rota da Seda. Pequim promete ferrovias, fábricas e industrialização; Paris oferece austeridade e tutelagem. Entre ambas, o Benim busca um caminho de desenvolvimento nacional que, preso à lógica do capital, permanece ilusório.

Hoje, tanto Togo quanto Benim exemplificam o impasse das burguesias nacionais africanas e de suas juntas militares: incapazes de romper com o imperialismo, oscilam entre potências rivais, buscando recursos e crédito enquanto perpetuam a dependência e a desigualdade. Nenhum desses regimes, nem o “socialismo de Estado” de Kérékou, nem os autoritarismos herdeiros do colonialismo francês, foi capaz de levar adiante uma verdadeira transformação social.

A lição histórica é clara: não é a burguesia nacional, nem o oficialato vacilante, quem pode conduzir a revolução africana. Assim como ensina a teoria da revolução permanente, de Trotsky, as tarefas democráticas e nacionais nos países atrasados, como a libertação do jugo imperialista e o desenvolvimento independente, só podem ser completadas sob a direção da classe operária, à frente das massas camponesas e populares.

O futuro da África, e da própria humanidade, dependerá da construção de uma organização anti-imperialista, operária e internacional, que una as lutas de Acra a Bamako, de Cotonou a Kinshasa, sob uma mesma bandeira. Pois o imperialismo, em sua fase de decadência, já não tem nada a oferecer aos povos do mundo senão fome, dívida e guerra. E é apenas das mãos da classe trabalhadora, africana e mundial, que poderá nascer uma nova aurora, socialista, internacionalista e verdadeiramente livre.

A lição histórica é clara: não é a burguesia nacional, nem os oficiais fardados, quem pode conduzir a revolução africana. Todas as experiências do pós-independência, dos “socialismos africanos” de Kwame Nkrumah e Julius Nyerere aos regimes militares de inspiração nacionalista, demonstraram a incapacidade das elites locais em romper com o imperialismo. Essas camadas, formadas sob a tutela colonial e integradas à economia mundial como intermediárias, não têm nem o interesse nem a estrutura social para levar adiante a emancipação nacional. Como observou Andrés Nin, o revolucionário catalão assassinado pelo stalinismo, “a burguesia nos países atrasados é incapaz de realizar as tarefas da revolução democrática, pois está orgânica e economicamente ligada ao capital estrangeiro”.

O socialismo africano, em suas diversas formulações, representou a tentativa das massas recém-libertadas do jugo colonial de construir um caminho próprio, fundindo o legado comunitário pré-colonial com o ideal moderno de justiça social. Ainda que muitas dessas experiências tenham sido desviadas ou derrotadas, elas legaram uma tradição teórica fundamental ao pensamento revolucionário do continente.

Kwame Nkrumah, primeiro presidente de Gana, afirmava que “o socialismo africano é a expressão política da vontade de restaurar a dignidade humana perdida sob o colonialismo”. Em obras como Consciencism (1964), Nkrumah procurou demonstrar que o socialismo era a única via para resolver as contradições herdadas do colonialismo, a coexistência de elementos tradicionais, islâmicos e europeus, e transformar a independência formal em uma verdadeira libertação econômica e cultural.

Julius Nyerere, da Tanzânia, com sua teoria do ujamaa (“família estendida”), defendia que o socialismo africano não seria importado, mas uma retomada das formas de solidariedade comunitária e igualdade que caracterizavam as aldeias africanas antes da colonização. Em seu ensaio Ujamaa: The Basis of African Socialism (1962), Nyerere via na coletividade camponesa o núcleo moral da reconstrução nacional, embora, na prática, o ujamaa tenha sido corroído pela pressão imperialista e pelas contradições de um Estado burocrático.

Amílcar Cabral, teórico e dirigente da luta de libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, foi talvez o mais profundo pensador dessa corrente. Para ele, o socialismo africano não podia ser apenas uma ideologia de governo, mas um processo de transformação das próprias relações de produção e da consciência nacional. “A libertação nacional é um ato de cultura”, dizia Cabral, e sem a mobilização consciente das massas trabalhadoras, nenhuma independência seria real. Ele advertia contra o perigo das burguesias nacionais que substituem o colono europeu apenas para perpetuar a exploração sob nova bandeira.

Patrice Lumumba, mártir da revolução congolesa, sintetizou o mesmo princípio em termos históricos: “A independência não é um fim, mas o começo de uma nova luta, uma luta pela libertação econômica, pela dignidade e pela construção de uma sociedade justa.” Sua execução, em 1961, pelas forças imperialistas com cumplicidade da ONU, simbolizou a violência com que o sistema capitalista mundial respondeu a qualquer tentativa autêntica de emancipação socialista no continente.

Em todos esses pensadores, há um traço comum: a compreensão de que o socialismo africano não é mera importação teórica, mas uma exigência prática da libertação nacional. No entanto, como apontariam mais tarde autores como Frantz Fanon e Thomas Sankara, essas experiências só poderiam se consolidar plenamente se vinculadas a um movimento revolucionário continental e internacional, capaz de romper não apenas as correntes do colonialismo, mas também as do capitalismo global.

Assim, o socialismo africano, em sua melhor expressão, é parte da tradição internacionalista da luta dos povos oprimidos, um elo entre o passado comunitário e o futuro socialista, entre a aldeia africana e a comuna universal.

Essa constatação, elaborada em termos clássicos por Leon Trótski em sua teoria da revolução permanente, conserva plena atualidade. Para Trótski, nas formações dependentes e coloniais, as tarefas históricas inacabadas, independência nacional, reforma agrária, libertação social, não podem ser cumpridas pela burguesia, mas apenas pela classe operária, que, ao tomar o poder, não se detém nas fronteiras da democracia burguesa e avança para as medidas socialistas. É uma revolução que, sendo nacional em sua forma, é internacional em seu conteúdo e destino.

Essa ideia encontrou ecos profundos no continente africano. Frantz Fanon, em Os condenados da terra, advertiu que a burguesia nacional nascente, ao conquistar o Estado colonial, rapidamente se converte em “uma burguesia de comerciantes, de compradores e intermediários”, incapaz de criar uma economia autônoma ou de atender às necessidades do povo. “O colonialismo não se retira sem deixar traços; ele molda uma elite que imita os colonizadores e mantém o povo em servidão.” Fanon via na mobilização das massas camponesas e proletárias o verdadeiro motor de uma libertação que não poderia limitar-se ao controle do aparato estatal, mas deveria transformar a estrutura econômica e mental herdada do colonialismo.

Essa posição se aproximava, ainda que por caminhos distintos, do pensamento de Thomas Sankara, líder revolucionário de Burquina Fasso, que compreendeu, como Trótski, que o desenvolvimento independente de seu país só seria possível mediante a ruptura com o imperialismo, a mobilização popular e a planificação socialista da economia. “A escravidão voluntária ao FMI e ao Banco Mundial é a morte das nossas revoluções”, advertia Sankara, pouco antes de ser assassinado em 1987 por forças ligadas ao neocolonialismo francês. Sua morte simbolizou o destino trágico de todos os que tentaram romper o cerco imperialista dentro dos limites nacionais e sem uma base internacional organizada.

A África de hoje, dividida entre as garras da União Europeia, dos Estados Unidos e da China, confirma o que Nin e Trótski anteciparam: a revolução não pode ser nacional em sua essência; ela é, por necessidade histórica, internacional. As burguesias africanas, civis ou militares, não são a ponte, mas o obstáculo entre o povo e sua libertação.

Por isso, o futuro da África, e da própria humanidade, dependerá da construção de uma organização anti-imperialista, operária e internacional, que una as lutas de Acra a Bamako, de Cotonou a Kinshasa, sob uma mesma bandeira. Uma organização que retome o fio vermelho interrompido das revoluções coloniais e o enlace à luta mundial contra o capital. O imperialismo, em sua fase terminal, já não oferece desenvolvimento, mas fome, dívida e guerra.

E é apenas das mãos da classe trabalhadora africana e mundial, consciente de seu papel histórico e liberta das ilusões nacionalistas e reformistas, que poderá nascer uma nova aurora, socialista, internacionalista e verdadeiramente livre, como sonharam Trótski, Fanon, Sankara, Nin e tantos outros combatentes que viram, na emancipação dos oprimidos, a única via possível para a emancipação de todos.

REFERÊNCIAS IMPORTANTES:

NYERERE, Julius.
Ujamaa: The Basis of African Socialism. Dar es Salaam: Government Printer, 1962.

NKRUMAH, Kwame. Consciencism: Philosophy and Ideology for Decolonization. London: Heinemann, 1964.

TEHRAN TIMES. African Domino. Teerã, 27 set. 2023.

FINANCIAL TIMES. ADEOYE, Aanu. How Ghana’s economy became a cautionary tale for Africa. Londres, 14 maio 2023.

REUTERS. 20 maio 2016.

TEHRAN TIMES. African Domino. Teerã, 26 set. 2023.

AMIN, Samir. Neo-Colonialism in West Africa. New York: Monthly Review Press, 1974.

SANTOS, Cláudio. A Razão Africana: Filosofia, Identidade e Política no Pensamento Contemporâneo. São Paulo: Todavia, 2020.

THOMAS, Charles-Robert Ageron (org.). História da África Contemporânea. São Paulo: Ática, 1992.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.