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Wigvan J. Pereira dos Santos

Filósofo, professor com doutoramento em Ciências da Literatura e autor do livro “Palavras em Movimento”

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A arte de pensar em um mundo sem tempo

A Filosofia e a Arte são precisamente os campos nos quais a subjetividade floresce

Trânsito em São Paulo (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)

Em um mundo cada vez mais acelerado: ainda há lugar para aquilo que exige pausa? Sempre é muito tentador defender a importância da Filosofia e das artes pelo viés da utilidade, por aquilo que elas podem contribuir para o mundo e para o gênero humano como um todo, e apelar pelo seu caráter elevado que é irradiado sobre aqueles que as praticam e os tornam, também, melhores. Mas talvez possamos pensar em uma resposta pela defesa da abertura de espaço para aquilo que é, de alguma forma, inútil.

No momento em que vivemos, em que tudo é medido pelo resultado, um resultado que deve ser rápido, sobretudo, parece ser uma proposta muito ousada e até utópica defender que abramos espaço em nossas rotinas para a atividade do pensamento. Pensar é uma atividade bastante exaustiva, que demanda tempo, solidão e silêncio, três coisas cada vez mais escassas.

Nesse sentido, também é tentador defender a importância da Filosofia e das artes em um contraponto com as redes sociais, cada vez mais velozes e ruidosas e que mobiliza nossa atenção de forma ininterrupta, como se estivéssemos em constante companhia de todos os outros que cruzarem nosso caminho algorítmico. A velocidade das redes sociais cria uma ilusão de um tempo contínuo, em que as horas não passam e, por contraditório que pareça, engole de uma só vez todos os nossos minutos enquanto nem nos demos conta disso. Isso é semelhante ao que ocorre nos shoppings, com suas luzes intensas que confundem a percepção e nos fazem esquecer de que, lá fora, os ponteiros dos relógios ainda correm. Ponteiros, não, pois quase não se usa mais relógios de ponteiros.

Também não acredito, no entanto, que colocar a responsabilidade nas tecnologias solucione o problema. Na verdade, isso parece mais um desvio de olhar, como fazem os truques de mágica, para que não coloquemos nossa atenção em um problema real, pois os problemas são reais são mais difíceis, mas conseguimos pensar em alguma forma de contorná-los. Os falsos problemas apenas nos deixam presos em uma roda que consome a nossa energia e não nos leva a lugar algum. Por exemplo, dizer que o problema da falta de pensamento é a existência das redes sociais não nos aponta uma linha de saída, porque as redes sociais continuarão a existir e a capturar a atenção de todos.

Com o avanço das inteligências artificiais generativas, muitos se levantam contra ela como se ela representasse o fim de toda a atividade intelectual no planeta Terra, sendo que aqueles estudantes que querem ler um livro, vão ler um livro mesmo que exista uma inteligência artificial que o resuma, e aqueles que não querem sempre driblaram essa exigência de diversas formas. Exemplo disso é o documento conhecido como Os tempos da escola, redigido c. 2.000 a.C., na Suméria, que trata justamente de um jovem escriba que, desmotivado por punições corporais do professor aos seus erros, passa a negligenciar suas tarefas escolares.

Se o problema não são as ferramentas, como as inteligências artificiais, nem as novas formas de lazer e de comunicação, de que maneira enfrentar a questão? Se a tecnologia é apenas o desvio de olhar do mágico, o problema real é a lógica que rege o espetáculo inteiro: um imperativo de utilidade que nos convence de que nosso valor reside unicamente em nossa capacidade de produzir e consumir.

O desafio, portanto, não é lutar contra as ferramentas que nos são oferecidas, mas contra a mentalidade que nos leva a usá-las apenas para fins produtivos, esvaziando os espaços de respiro. É justamente aqui que a defesa do inútil ganha sua força. Se o problema é um sistema que instrumentaliza tudo, a resposta não pode ser outra senão a reivindicação radical de um tempo e um espaço que não precisem servir para alguma coisa – a não ser para nos constituir como sujeitos.

Ao abandonarmos a busca por um culpado externo, como as tecnologias, somos forçados a voltar o olhar para dentro e para a cultura que nos molda. Percebemos, então, que o verdadeiro adversário não é um aplicativo ou um algoritmo, mas a pressão internalizada por um desempenho constante, uma produtividade que não admite pausas. A questão deixa de ser "como escapar das redes sociais e das inteligências artificiais?" e passa a ser "como cultivar um espaço interior que não seja colonizado pela lógica da eficiência?". É nesse ponto que a Filosofia e a Arte, com sua aparente inutilidade, revelam seu poder subversivo.

O espaço do inútil é o espaço da liberdade. É o espaço no qual não somos definidos por nossas funções em relação à produção e ao consumo, mas somos desafiados a nos constituirmos como sujeitos capazes de pensar nossa existência, de pensar contra as tendências de pensamento do presente, de pensar até mesmo contra nosso próprio pensamento, contra aquilo que nos ensinaram sobre o mundo e sobre nós mesmos.

No momento em que uma atividade não precisa se justificar por um resultado financeiro ou prático, ela se torna um fim em si mesma. É nesse território livre da instrumentalização que podemos experimentar o mundo de forma que vai além do uso. A arte, em todas as suas formas, nos possibilita ver para além da função de um objeto, a sentir texturas e arestas, a nos emocionarmos com uma melodia que não serve para nada, a não ser para nos conectar com nossas próprias emoções e, por consequência, com nossas existências, pois somos aquilo que fazemos, sentimos e pensamos. A Filosofia, por sua vez, nos convida a pensar para além da próxima tarefa, a questionar as próprias estruturas que definem o que é necessário e urgente e, mais ainda, nos lembrar de que as dúvidas, e não as certezas, é o que move o mundo.

Além de possibilitar que entremos em contato com sentimentos, ao provocá-los, a arte também nos coloca em contato com o outro. Ao ler um escritor goês, como Laxmanrao Sardessai, por exemplo, ou ao ver a obra de um artista moçambicana, como Reinata Sadimba, ou ao escutar um gênero musical que não conhecíamos, como o batuko cabo-verdiano, somos deslocados para fora dos nossos territórios de pensamento, somos lançados em um modo de viver e sentir o mundo ao qual nunca teríamos acesso a não ser pela arte.

Não podemos estar no lugar do outro – Einstein já nos lembrava de que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço –, o outro sempre inacessível, mas podemos ouvi-lo a falar de si mesmo e tentar ver o mundo pelos seus olhos – o que é a arte se não o exercício de comunicar nosso olhar único sobre a realidade comum?

Se fazemos apenas aquilo que é necessário, acabamos por adiar tudo aquilo que nos torna uma pessoa. E o que nos torna uma pessoa, senão a capacidade de nos assombrarmos com o mundo, de nos questionarmos sobre o nosso lugar nele e de criarmos novos significados para a nossa existência?

A Filosofia e a Arte são precisamente os campos nos quais essa subjetividade floresce. A importância da Filosofia e da Arte não reside no que eles podem produzir, mas nos espaços que abrem. Em um mundo obcecado por respostas rápidas, elas nos devolvem o direito à pergunta lenta. Em uma cultura que valoriza a eficiência, elas celebram a pausa. Pelo contrário, elas nos oferecem algo muito mais valioso e raro: a qualidade da pergunta, a profundidade da percepção e a coragem da investigar a si mesmo.

Talvez, o lugar da arte e da filosofia seja justamente este: o de resguardar um espaço para tudo aquilo que nos lembra de que estar vivo é muito mais do que apenas ser útil e que nos ampara quando precisamos enfrentar a questão sobre aquilo que estamos fazendo de nós mesmos, dos outros e do mundo no tempo que nos resta.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.